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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FUNÇÕES DO ESTADO

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FUNÇÕES DO ESTADO

§5. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FUNÇÕES E PODERES DO ESTADO

 

1.O conceito de Administração Pública só pode compreender-se a partir da sua evolução histórica, a qual implicou a realização imperfeita da doutrina da separação dos Poderes do Estado, que nunca corresponderam à separação de funções, por mais que os poderes se pretendessem como os órgãos do Estado constituídos para exercer as diferentes funções.

Ou seja, a Administração Pública do Estado, estando alojada no Poder Executivo, não exerce apenas a função administrativa.

 

Ela é não só destinatária e executora, como também criadora e aplicadora de normas jurídicas. Portanto, neste plano, tem poderes materialmente idênticos aos dos Poderes Legislativo e Judicial, o que a faz ser o mais poderoso de todos os poderes do Estado.

 

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2.Na origem do constitucionalismo, os poderes normativos da Administração Pública eram muito limitados e, pelo contrário, a sua posição em face dos tribunais era mais forte do que agora, apesar de ainda manter importantes poderes quase-jurisdicionais, como o privilégio de decisão unilateral e executório e poderes sancionadores.

 

No plano normativo, a Administração foi conquistando paulatinamente um papel importante ao abrigo de leis de plenos poderes, de técnicas de delegação de poderes, da deslegalização de matérias, atribuição de poderes legislativos concorrenciais, como o uso de decretos-lei, o poder regulamentar autónomo ou o monopólio da iniciativa legislativa, chegando mesmo a conseguir, nalguns países, a titularidade exclusiva da função legislativa em certas matérias, que exerce através de regulamentos independentes (vg. em França, por força dos artºs. 34º e 37º da Constituição de 1958) ou com as Leis Orgânicas do Governo, em Portugal.

 

No plano jurisdicional, o estatuto histórico privilegiado da Administração, iniciado com o artº. 13º da Lei francesa da Organização Judicial, de 16 e 24 de Agosto de 1790, justificado teoricamente com o argumento de que «julgar a Administração é também Administrar», explica-se realmente pela necessidade de a Revolução impedir a interferência dos juízes conservadores, herdeiros dos «parlamentos judiciais» do Antigo Regime, que já haviam sido os responsáveis pelo bloqueamento das reformas progressivas pretendidas pelas Administrações Reais que precederam a Revolução.

É esta lei protectora da Administração que, pelas circunstâncias históricas apontadas, marca em França e no continente europeu uma evolução distinta da ocorrida no Reino Unido, ao consagrar o princípio da independência da função administrativa, cujos actos se tornam insindicáveis pelos tribunais.

 

E é esta evolução no sentido da insindicabilidade judicial que levou ao aparecimento, em 1799, por obra de Napoleão, de uma «jurisdição» especial, inserida na própria Administração, constituída pelo Conselho de Estado e pelos Conselhos de Prefeitura.

 

A separação da Administração e dos tribunais passou pela proibição dos tribunais civis e penais conhecerem a título prejudicial quaisquer questões administrativas; pela impossibilidade de julgarem, sem autorização administrativa prévia, acções de responsabilidade de funcionários por actos relacionados com o exercício dos cargos públicos; pela atribuição da presunção de legalidade e de carácter executório às decisões da Administração, configurando-as às sentenças judiciais, passíveis de recurso mas sem efeito suspensivo; pela atribuição de poderes sancionatórios crescentes com a omni-abrangência interventora da Administração; tudo protegido por um sistema de conflitos, institucional e procedimentalmente, dominado pela própria Administração.

 

Hoje, só em França esta jurisdição administrativa especial continua a ser um foro da Administração, através do Conselho de Estado, que, no entanto, tem vindo, em geral, a integrar-se no sistema jurisdicional como uma jurisdição especializada, a cargo de magistrados regidos por um estatuto judicial.

 

Os tribunais comuns podem livremente julgar os funcionários públicos em acções de responsabilidade civil ou criminal, podem conhecer a título prévio ou prejudicial de questões administrativas e a Administração Pública tem perdido a posição privilegiada no sistema de resolução de conflitos jurisdicionais, que passa por uma comissão ou tribunal misto e paritário.

 

Mantém-se um dado poder de natureza «jurisdicional», traduzido na auto-tutela declarativa e executória, que lhe permite alterar situações possessórias através de procedimentos administrativos sem recurso aos tribunais, o poder sancionatório e o privilégio da execução das sentenças judiciais que lhe são dirigidas, com admissão de situações de não cumprimento das mesmas.

 

3.Hoje, em Portugal como na generalidade dos países de Estado de Direito, podemos considerar que a Administração Pública é um sujeito de direito que actua, com respeito pelo direito, mas com uso de um direito diferente do direito aplicável aos cidadãos em geral, o direito administrativo (embora também possa socorrer-se do direito privado quando o considere oportuno e o legislador o não interdite), e que utiliza também poderes normativos e jurisdicionais, o que lhe permite impor sem mais a sua vontade aos particulares, embora sujeita a posterior fiscalização dos tribunais, com o que, no entanto, os cidadãos nem sempre logram o cumprimento atempado e «em espécie» da legalidade, devendo contentar-se com indemnizações, pelo facto.

 

4.Tudo visto, a tarefa histórica da construção de um Estado de Direito ainda não terminou, embora paradoxalmente ela se encontre, hoje, mais avançada nos Estados de regime administrativo, de matriz francesa, como Espanha ou Portugal, que, ainda, recentemente fez entrar em vigor um Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com quase plena aplicação do princípio da tutela judicial efectiva, do que nos Estados de ordenamento jurídico anglo-saxónico, em que a «existência do direito administrativo» e das preocupações garantísticas em face dele e dos novos poderes da administração pública intervencionista começaram mais tarde.

 

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5.Por último, há que destacar que a ieoria sobre a distinção entre as Funções do Estado surgiu com intenções garantísticas, dado que a separação orgânico-pessoal daquelas funções visava assegurar a liberdade e a segurança individuais.

 

Foi o dogma da redução do Estado ao Direito, assente no postulado de que o Estado e o Direito se identificam, que converteu a tripartição funcional em teoria das funções estaduais de pretensa validade universal.

 

Assim, a teoria política da separação dos poderes, consagrada, pela primeira vez, na Constituição dos EUA, de 1787 (embora divorciada da base social estamental, em que MONTESQUIEU a pretendia enquadrar, em face do esquema político-social vigente em França, e que servia essencialmente à conservação de um poder próprio do monarca, como se verificou na sua aplicação na Constituição Alemã de 1871, com distribuição não paritária do poder) aparece confundida com a teoria das funções jurídicas do Estado, o que perpassa ainda na actual Lei Fundamental de Bona.

 

Mas, ainda, sobre o princípio da separação dos poderes, que significaria que a cada órgão ou complexo orgânico unificado, ou seja, a cada Poder caberia uma função estadual caracterizável por critérios materiais distintos, importa referir que, na classificação material das funções do Estado, teríamos inicialmente as seguintes distinções: a função legislativa era a actividade caracterizada por constituir ou modificar o ordenamento jurídico por meio da criação de normas gerais, abstractas e innovadoras; a função jurisdicional era a actividade caracterizada por visar a conservação ou tutela do ordenamento jurídico por meio de decisões individuais e concretas dele dedutíveis e enquadradoras dos factos que lhes estão subjacentes, e a função executiva ou administrativa seria a actividade caracterizada por materializar a realização dos objectivos do Estado por meio de decisões e operações materiais enquadráveis dentro das normas jurídicas.

 

Mais tarde, em 1845, esta classificação substancial das funções do Estado evolui, por obra de SCHMITTHENNER, para uma classificação formal-subjectiva dessas funções, superadoras da constatação de que aos diferentes poderes não correspondiam estritamente aquelas funções, ou seja, de que havia órgãos estaduais diferentes a realizar actos materialmente caracterizáveis numa mesma função, o que exigia um critério não material dos diferentes actos.

É, assim, que, formalmente, se vem a considerar como legislativa toda a actividade realizada pelo Parlamento, mesmo que não caracterizável materialmente como produção normativa; jurisdicional, a actividade dos juízes, mesmo que se trate de administração patrimonial, de jurisdição voluntária ou de produção de sentenças normativas; e executiva, a actividade desenvolvida pelos órgãos executivos.

 

Assim, deparamos com a dogmática da tripartição funcional, em que a teoria das funções do Estado se limita a distinguir actos de valor formal diferente, separáveis segundo um critério de origem dos actos, que implica a procura da fonte, da entidade que os produz.

 

No entanto, partindo do mesmo postulado da redução do Estado ao Direito e limitando a análise ao jurídico, HANS KELSEN concluiu diferentemente que as funções do Estado são apenas duas: a legislação e a execução da lei, ou seja, a criação e aplicação do direito, o que eliminava a autonomia funcional da função administrativa do Estado.

E, porque qualquer acto estadual comunga das duas funções, não há distinção substancial ou material, em termos absolutos, das funções do Estado, o que acabava com a teoria da separação dos poderes, enquanto teoria da diferenciação intrínseca das funções jurídicas do Estado.

 

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Em termos de Funções e Poderes do Estado, importa entender perfeitamente o significado relativo do princípio constitucional da separação de poderes.

 

A divisão de poderes tem a sua origem doutrinal em LOCKE[1] e MONTESQUIEU[2].

 

O autor inglês pretendeu criar uma teoria política limitadora da monarquia restaurada, procurando distinguir entre um poder que faz direito (leis e sentenças), que apelida de poder legislativo, e os dois poderes que mexem com a coacção organizada, o poder executivo, para impor a ordem interna, fazendo respeitar as decisões do legislativo, e o poder federativo, actuando na sociedade internacional, para assegurar a independência face aos outros Estados (fazer alianças, a guerra, a paz, etc.), seguindo, neste aspecto, na linha da monarquia dual espartana.

 

Esta estrutura tripartida será contestada inicialmente por MONTESQUIEU, que começa por distinguir entre o poder legislativo e o poder executivo (em que integrava os tribunais) e que acabará por a aceitar, unificando os poderes executivo interno e externo, que LOCKE designava por federativo, e criando finalmente o poder judicial, à custa do seu poder executivo inicial e de parte do poder legislativo de LOCKE.

De qualquer modo, este poder executivo tem unicamente uma função de relação e defesa interna ou internacional, com exclusiva detenção da coacção organizada.

 

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A acção do Estado desdobrar-se-ia, pois, em:

- criação de normas, que pré-determinam, em termos genéricos, os comportamentos dos membros da comunidade política (normação);

- decisão concreta de conflitos inter-subjectivos de interesses entre os membros da comunidade ou na relação destes com a própria comunidade (jurisdição);

- execução concreta de medidas adequadas à satisfação das necessidades colectivas (administração).

 

Mas é patente que o poder executivo nunca se conformou com as doutrinas da separação dos poderes e conservou sempre outras funções do Estado que se foram reforçando com o seu crescimento interventivo na sociedade.

 

De qualquer modo, as funções do Estado têm classicamente aparecido atribuídas aos três Poderes: o Poder Legislativo, o Poder Judicial e o Poder Executivo.

A função legislativa e a função jurisdicional são actividades exclusivamente jurídicas, visando directamente a concretização da vontade reguladora do Estado ou a aplicação ou declaração casuística da mesma, ou seja, destinam-se a criar ou a aplicar normas, enquanto a função executiva é acção sujeita ao ordenamento jurídico.

 

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A função legislativa consiste em criar, por via geral e obrigatória, normas por que se devem pautar os comportamentos dos membros da comunidade política assim como normas da organização desta, ou seja, normas de comportamento e normas de natureza constitucional.

 

As características fundamentais das normas são a generalidade e a obrigatoriedade.

O acto normativo enquadra as situações a regular de modo impessoal.

 

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A função jurisdicional consiste num juízo aplicador da norma aos casos concretos que necessitam de uma solução.

O acto do juiz declara o direito aplicável ao caso pessoal em apreciação judicial.

A jurisdição visa imediatamente o respeito pela ordem jurídica, restabelendo-a em caso de violação e resolvendo os conflitos de interesses entre os diferentes sujeitos, de acordo com as normas objectivas de direito e critérios da sua interpretação e prevalência em face da sua sucessão no tempo e eventuais antinomias.

 

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A função executiva consiste em actuar, dentro do direito supranacional, da Constituição, das leis e dos regulamentos vigentes, para a subsistência da comunidade política e a satisfação das necessidades colectivas.

 

De qualquer modo, há que constatar que não há simetria entre as Funções e os Poderes do Estado.

Por quê?

Os actos executivos visam dar cumprimento ao disposto nas normas e nas sentenças dos juízes (vg., cumprimento de pena em prisão, etc.), mas são materialmente acções que realizam as decisões dos outros poderes que necessitem de actos concretizadores, eles próprios são também sempre sujeitos ao direito.

 

Acontece que, se o Poder Legislativo exerce funções legislativas e o Poder Judicial exerce funções jurisdicionais, já o Poder Executivo, isto é, o Governo e a sua Administração, não exercem só a função executiva.

 

E, por isso, é difícil dar uma definição material positiva da actividade da Administração Pública, dado que o conceito de Administração Pública ligado ao Poder não se identifica com uma dada função material do Estado.

Nem sequer corresponde, residualmente, a toda a actividade estadual que não seja enquadrável nas funções legislativa e judicial.

Até porque nela se integram actos normativos e actos materialmente jurisdicionais.

 

 

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[1]   Two Treatises of Government, 1690.

[2]   L’Ésprit des Lois, 1747.