Lições de DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

Lições de DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

FERNANDO DOS REIS CONDESSO

DIREITO INTERNACIONAL.
Direito das Relações entre Estados e Organizações Internacionais (Fundamentos conceptuais, políticos, filosóficos e históricos do DIP Teoria das fontes formais de direito internacional Fontes do direito da Comunidade Europeia Aplicação do direito internacional na ordem jurídica portuguesa).

LISBOA

  

 «A expressão do direito internacional público só muito imperfeitamente consegue caracterizar o ramo de direito a que se aplica» TRUYOL, António – Noções fundamentais de Direito Internacional. Tradução de Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1952, p.13.

 

INTRODUÇÃO

1. Este texto resulta da agregação de um conjunto de prelecções, efectuadas aos alunos do 3.º ano da Licenciatura de Estudos Europeu, na área de Relações Internacionais, e do 2.º ano da Licenciatura de Direito, ministradas no ano de 1992, e de um posterior estudo, realizado em 1998, no âmbito da FD da URJC de Madrid, sobre a aplicação do direito internacional na ordem jurídica portuguesa.
O tema da aplicação do direito internacional aparece tratado no número quatro das Lições apenas com considerações básicas e muito sucintas, mas foi posteriormente desenvolvido em estudo de 1998, constante da terceira parte. São prelecções e estudo que só agora se organiza, em texto único, mas mantendo o conteúdo dos textos originários, ou seja, tal como foram produzidos e distribuídos aos alunos nessa altura. Tudo isto, naturalmente, sem prejuízo de actualizações, que, no ensino oral dos anos seguintes, não deixou necessariamente de se operar, quer no que concerne à renumeração de normas, imposta pelas revisões posteriores da Constituição, quer quanto à explicitação da evolução doutrinal nas matérias consideradas.

2. Diga-se, a propósito, que, logo no início desta década, o próprio autor acabou por aderir totalmente, nos seus escritos, a uma teoria não nacionalista nem constitucionalocênctrica das fontes, de cariz pluralista, não positivista, com afirmação de uma hierarquização que parte claramente do princípio do primado do direito intergovernamental e supranacional. Ou seja, não só no âmbito já considerado do direito comunitário europeu, da União Europeia (como se constata por textos publicados, em que a matéria é referida e a supremacia sobre todo o direito aplicável é totalmente assumida, v.g., Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2001), sendo certo que a jurisprudência pretorianamente fixada (como elemento do acervo comunitário que nos comprometemos a cumprir e aliás o texto constitucional já veio expressamente reconhecer), nos impõe o seu respeito, como do próprio direito internacional. E isto, numa linha há muito defendida (em que a supremacia da Constituição é naturalmente resituada no topo das fontes de criação nacional, mas não do ordenamento jurídico em geral internamente aplicável), e, ainda recentemente, reafirmada, designadamente nas Lições policopiadas sobre Introdução ao Estudo do Direito.

3. Quer nos aspectos descritivos quer nas reflexões e argumentações conaturais à ciência jurídica, pensamos que os textos, que ora se apresentam com uma lógica articulada, possam ser úteis a quem se dedica ao estudo das relações e do direito internacional.

4. O título que demos a este conjunto de lições e textos de aprofundamento das mesmas, «direito internacional público», reconhecemos que é muito imperfeito para «caracterizar o ramo de direito a que se aplica», tal como refere ANTÓNIO TRUYOL, logo a abrir a sua exposição sobre Noções Fundamentais de Direito Internacional, publicadas em Portugal em 1952. Acontece que, como melhor se explicitará na primeira lição, a designação de direito das relações internacionais ou direito interestadual (Staatenrecht, Direito dos Estados, na proposta de Kant) é restritiva, desde logo porque o ramo do direito tratado se alargou (qual «direito constitucional» universal e regional, v.g., Declarações de Direitos, tribunais internacionais e organizações da sua aplicação), não só em termos de subjectividade imediata do indivíduo, e, cada vez mais, se aplica a um número crescente e poderoso de organizações intergovernamentais e supranacionais e à sua normação e decisões, como, além disso, já longe do tradicional conceito da soberania estadual hegemonizador das relações entre entidades públicas de diferentes Estados, vai aparecendo um novo direito de normas de conflito, já não civilístico para regular a solução normativa a aplicar nas relações jurídicas intersubjectivas privadas, mas de natureza pública, verdadeiro direito internacional, que poderíamos chamar direito tranfronteiriço, e que, na Europa, se vai afirmando com base em Convenções internacionais (Convenção Europeia e consequente Convenção Luso-Espanhola sobre a Cooperação entre Entidades e Autoridades Transfronteiriças), viabilizando Acordos directos entre entidades infra-estaduais, à revelia dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e dos dispositivos constitucionais normais de comprometimento internacional dos Estados. Por tudo isto, dada a dificuldade da arranjar melhor designação, não parecendo dever voltar à tradicional denominação latina de Direito das Gentes (ius inter gentes, ius gentium, expressão ainda tão cara a GROTIUS), dada o caminho já feito pela designação anglo-saxónica, introduzida por BENJAMIM BENTHAM, nos finais do século XVIII, e que é já a mais usada também em Portugal.

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I- LIÇÕES SOBRE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

1.OS FUNDAMENTOS CONCEPTUAIS E METODOLÓGICOS DA CIÊNCIA DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

1.1. O DEBATE TERMINOLÓGICO

O conjunto das normas jurídicas objecto da nossa análise é conhecido com várias designações, de que destacamos as principais: -Direito das Relações Internacionais; -Direito inter-estadual ou Direito dos Estados (Staatenrecht); -Direito Internacional (expressão adoptada já no século XVIII, pelo inglês BENTHAM: International Law) ou Direito Internacional Público; -Direito das Nações; -Direito Intersocial (LÉON DUGUIT); -Direito dos Povos ou Direito das Gentes (na acepção pós-romana); -Direito Universal da Humanidade ou Direito Mundial.

Em considerações sumárias, há que referir o seguinte:
a)-As expressões Direito Internacional ou Direito das Nações Estas expressões não são boas, por uma dupla razão: - não traduzem a distinção, consagrada durante o século XIX, entre Estado e Nação; e - não traduzem, igualmente, a realidade global dos sujeitos da produção e da destinação deste ramo de direito. Esta designação referida a nação ou nacional, internacional, nunca poderia ser operativa por, neste sentido, o direito das nações ou direito entre as nações só ter expressão na medida em que elas sejam Estados. Falar em direito internacional só pode, assim, significar uma referência ao direito que regula as relações entre Estados e não entre Nações em geral.
Mas, mesmo assim, a questão não fica resolvida, bastando atentar: - quer na emergência da subjectividade alheia ao estado, do próprio indivíduo na sociedade internacional, como titular directo de direitos, - quer na importância do direito implicando Organizações Internacionais, elas próprias com personalidade jurídica internacional, e muitas vezes criadoras directas de direito, e das relações entre estas para ficar em causa esta releitura terminológica. Aliás hoje, a própria sociedade internacional (ou a Humanidade) começa a aparecer não apenas como a soma dos seus componentes, mas também como sujeito de Direito Internacional Público, como titular de direitos e deveres, embora por falta da capacidade do seu exercício directo, necessitando de se vestir de forma organizacional, sem poder prescindir da intermediação dos seus elementos constitutivos, Estados ou Organizações.
Mas a evolução parece ser no sentido de dotar a sociedade internacional de um estatuto jurídico próprio, abrangendo pelo menos o direito de utilização da reclamação internacional e a sujeição directa a responsabilidade, desde logo, quando uma dada organização aja em seu nome, em situações concretas que envolvam danos, embora nenhuma responsabilidade directa lhe pode hoje ser pedida. De qualquer modo, já não pode negar-se que a Humanidade, enquanto tal, tende a ter uma certa personalidade jurídica internacional, apesar de traduzida em direitos limitados e numa subjectividade restrita, porque naturalmente balizados pelo próprio Direito Internacional Público e, portanto, em grande parte, por uma vontade limitadora concertada dos Estados. Seja como for, é a expressão que corresponde à designação histórica corrente em Portugal.
Por outro lado, é a que traduz o conjunto de normas jurídicas que se reportam à sociedade designada por «sociedade internacional», às relações designadas também de «relações internacionais». E, por isso, também, aparece designado como Direito das Relações Internacionais, embora esta expressão se ligue a um âmbito mais restrito.
Além de que esta expressão concretizadora do conceito de internacionalidade, sempre seria hoje incorrecta porquanto o Direito Internacional Público, mais do que um direito de relações internacionais, mesmo em sentido amplo, não puramente orgânico, é cada vez mais um direito de factos internacionalmente relevantes (v.g. direitos internacionais do homem, que, como ius cogens, se impõem como valores transcendentes às próprias constituições estaduais, num claro primado de ordenamentos).
De qualquer modo, só teria verdadeiro sentido questionar a expressão direito internacional se à partida se tivesse questionado e ultrapassado a expressão sociedade ou comunidade internacional, elemento decisivo na identificação e caracterização do Direito Internacional Público É, também, corrente a junção da palavra público, dando origem ao uso da expressão Direito Internacional Público, embora ela parta de um pressuposto incorrecto: o de que existem outros direitos internacionais, como o classificado «direito internacional privado», expressão criada por STORY, no seu Commentaries of conflits of Laws, em 1834 e que, depois, ganhou grande voga, sendo certo que o ramo da ordem jurídica que, desde então, se tem chamado assim é apenas o ramo do direito estadual que regula os conflitos de aplicação de leis nacionais de Estados diferentes.
O conteúdo do direito internacional privado é formado por um sistema de normas que permitem que um dado direito estadual resolva os conflitos de leis que regulam as relações de direito privado que, por qualquer dos seus elementos, estão em contacto com mais do que uma ordem jurídica. São leis sobre leis, pois visam determinar o regime de relações privadas de direito interno e não regular relações internacionais. Só se os Estados acordarem em estabelecer direito uniforme de normas de conflitos de leis através de Tratados é que temos direito internacional. E o que se diz do direito internacional privado, aplica-se igualmente às regras de resolução de conflitos normativos, na aplicação jurisdicional do direito penal, administrativo, etc., quando elas não sejam objecto de tratados internacionais, pois neste caso, tal como no âmbito do direito privado, passarão a ser de direito internacional público.
É apenas a abordagem pragmática resultante da necessidade prática de demarcação de disciplinas coexistentes nas licenciaturas em direito nos vários países que pode explicar o aditamento da palavra público, e portanto o uso da expressão Direito Internacional Público.
b)-A expressão direito intersocial Esta expressão está ligada a uma doutrina de aceitação restrita: a doutrina solidarista de Léon Duguit, que baseia todo o direito, nacional ou internacional, no facto da independência entre os homens, completada pelo sentimento individual de justiça, o qual é anterior e superior à vontade humana.
c)-A expressão kantiana de direito dos Estados. Esta expressão, que visava afastar a conotação deste direito com as nações, não merece melhor acolhimento, por excluir outros componentes (na expressão de JÚLIO GONZÁLEZ CAMPOS) da sociedade internacional, sujeitos ao cumprimento deste direito.
d)-A expressão Direito das Gentes ou Direito dos Povos (na expressão corrente na Alemanha (Völkerrecht) Esta expressão tem merecido reservas, além do mais, por poder ser confundida com a concepção clássica dos romanos, para quem o jus gentium era o direito comum a todos os povos do império. No entanto, sempre foi utilizada ao longo dos tempos e hoje continua a ter grande voga, fazendo concorrência com as expressões direito internacional e direito internacional público.
e)-A expressão Direito Mundial, Esta expressão, tal como outras de sentido idêntico, é pouco utilizada, sendo certo que só uma parte das normas de direito internacional pode ser considerada de aplicação geral a todos os Estados.
f)-A expressão direito transnacional Importa fazer uma referência à expressão direito transnacional, criada em 1956, por JESSUP, mas que não pretende ser mais uma expressão para designar o direito internacional, na medida em que engloba todas as normas disciplinadoras de factos que ultrapassam as fronteiras nacionais, ou seja, que implicam elementos de extra-estadualidade, sejam ou não de direito internacional público (v.g. normas referentes a contratos de Estado, etc.).

1.2.O CONCEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

1.2.1.Definição

O Direito Internacional ou Direito Internacional Público é o ordenamento jurídico da sociedade internacional, ou seja, o conjunto de normas jurídicas, quaisquer que sejam as matérias tratadas, criadas no âmbito da sociedade internacional e tendo em princípio como destinatários os sujeitos desta. Dito isto, vê-se que não existe aqui uma concretização dos sujeitos nem uma referência a matérias tratadas pelo Direito Internacional Público. O seu único elemento identificador passa pela localização da produção das suas normas.

No entanto, a doutrina não se entende acerca dos elementos integrantes da noção de Direito Internacional Público. Há vários critérios, com destaque para o que faz apelo aos sujeitos (critério subjectivo), ao conteúdo (critério material ou objectivo) ou ao modo de criação normativa (critério homogéneo).

Compreende-se que, neste século, tenha começado a ser posto em causa o critério dominante na história do Direito Internacional Público, o subjectivo. ç

A subjectividade internacional da Santa Sé e de certas organizações não impedia que se reconhecesse de facto que o Direito Internacional Público era um direito criado para disciplinar as relações entre os Estados, porque eles eram de facto os criadores e os destinatários das suas normas.

Em 1927, o Acórdão Lotus ainda pode perfilhar este critério. Mas, a partir de certa altura, a realidade internacional impõe o abandono deste critério, que é posto claramente em causa após a segunda guerra mundial, em que a personalidade jurídica internacional se pluraliza, com os Estados a deixar de monopolizar a criação do direito, pelo que a importância destes se relativiza, com entidades infra-estaduais, designadamente os particulares, empresas ou indivíduos e minorias, a ganhar significado permanente como destinatários das suas normas.

O critério subjectivo tornou-se elástico e incaracterístico, só admitindo uma definição subjectiva de tipo formal, que nada significa, como a que CHARLES ROUSSEAU perfilhou, segundo a qual o Direito Internacional Público seria o conjunto das normas jurídicas que regulam as relações entre os seus sujeitos. Além disso, o critério subjectivo só poderia ser usado se os sujeitos do Direito Internacional Público apenas tivessem personalidade jurídica internacional.

Ora, nada os impede de se relacionarem, em certos domínios, designadamente patrimoniais e contratuais, segundo regras jurídicas não internacionais, o que, de facto, acontece (v.g., um contrato privado de compra e venda, para a aquisição de um terreno no território de outro Estado, em ordem à construção de uma embaixada).

O critério que procura identificar as matérias tratadas na sociedade internacional pressupõe que existem matérias naturalmente internacionalizadas. De qualquer modo, o debate em ordem a delimitar as que são reguladas pelo Direito Internacional Público sempre teria que prescindir de uma abordagem de integração material, pois, quando muito, neste século, só poderiam identificar-se as matérias do domínio reservado dos Estados. E, mesmo assim, a omnicompreensividade material do Direito Internacional Público, poucas matérias deixa para tratamento exclusivo dos Estados. Basta ver a apetência internacional para tratar o próprio tema da nacionalidade, pese embora as tentativas frustradas de efectivação de uma Convenção neste âmbito. Neste plano, é pois preferível aceitar que o conteúdo normativo não pode definir o Direito Internacional Público, porque ele tende a poder tratar qualquer matéria.

O critério nomológico, assente na nomogénese das suas regras, tem a nossa preferência porque isola apenas o que é característico na distinção entre os direitos estaduais e o direito internacional, que passa apenas pelos procedimentos próprios de criação jurídica, pois o Direito Internacional Público tem os seus próprios e fontes, sendo este é o único critério que, no estado actual de evolução da sociedade internacional, permite claramente identificar as normas internacionais.

1.2.2.A distinção de outros conjuntos normativos

O Direito Internacional Público refere-se às regras e princípios que vinculam a convivência dos componentes da sociedade internacional. São normas que regulam, em grande parte, as relações internacionais em sentido amplo, ou seja, as relações entre Estados, entre Organizações internacionais, entre aqueles e estas, entre aqueles e os insurrectos reconhecidos e dos Estados e Organizações internacionais com particulares (indivíduos ou pessoas colectivas de direito interno dos Estados).

As suas regras são criadas pelos Estados ou por Organizações internacionais de que os Estados são membros São normas jurídicas, ou seja, de carácter jurídico, o que significa que dele só fazem parte normas jurídicas e não outras extra-jurídicas, que também vigoram nas relações internacionais: as normas morais ou das praxes de cortesia internacional (os costumes e os usos sociais constituindo a comitas gentium) e as regras de política internacional.

A moral abrange também o plano do relacionamento internacional, pois os Estados e os governantes têm também deveres na sociedade internacional. Estão sujeitos a normas de moral internacional que definem os seus deveres na condução das relações internacionais.

Os Estados que sofrem uma catástrofe nacional devem ser auxiliados pelos outros Estados se precisarem de ajuda internacional, etc. A cortesia pratica-se também entre pessoas no desempenho de funções ligadas a instituições e Estados diferentes, facilitando a convivência internacional e ajudando paulatinamente a criar costumes com valor jurídicos, como acontece com as normas de cerimonial político, as honras e homenagens prestadas aos agentes diplomáticos dos outros Estados.

As regras de política são fixadas por acordo ou resultam da prática ou tradição, que aconselham o seu respeito, muitas vezes com base em teorias filosóficas das relações internacionais, como a política de equilíbrio europeu, a política do balance of powers, a política do conceito europeu, a política da paz armada, a política do equilíbrio do terror, a política atlântica, a política da coexistência pacífica, etc.

Estas «normas» internacionais podem em dado momento passar a constituir direito internacional, assim como as normas deste podem passar a simplesmente ser normas não jurídicas. Por isso, se dizem fontes materiais de direito internacional positivo vigente, em grande parte resultante da consagração de normas pré-existentes não jurídicas. E o próprio direito internacional às vezes as manda aplicar (v.g. A Carta das Nações Unidas, nº 1, artigo 1º e nº 3, artigo 2º manda aplicar os princípios de justiça). Mas há normas jurídicas que regulam relações internacionais e pertencem aos direitos nacionais, públicos ou privados, dos diferentes países, como as referentes ao chamado direito transnacional. As normas internacionais não são produzidas por um Estado, por si só, através dos seus órgãos políticos próprios, como as suas normas internas, embora um Estado também possa obrigar-se na sociedade internacional por uma declaração unilateral, que passa a traduzir um acto jurídico internacional.

Quanto aos actos normativos, há os que são criadas num dado concerto supra-estadual, no âmbito de organizações, criadas por Estados ou por outras Organizações, quer as normas administrativas destas organizações, quer o direito derivado de competências atribuídas por Acordos entre os Estados, tendo estes ou os seus administrados como destinatários. A doutrina maioritária considera o direito interno das organizações como direito internacional.

Mas, importa desde já esclarecer que, no que diz respeito ao Direito Comunitário, da União Europeia, ele constitui uma ordem jurídica própria, autónoma do Direito Internacional Público. E se o Direito Internacional Público não é um direito produzido só pelos Estados, também não é um direito aplicável só aos Estados e, muito menos, só aos Estados soberanos, como acontecia no direito internacional clássico.

Há Estados não soberanos que participam nas relações internacionais, tendo até embaixadores, como aconteceu, mesmo no século XIX, com o Reino da Baviera, durante todo o Segundo Império Alemão, por acordo constitucional com a casa de Hollenzolern, ou a Ucrânia e a Bielo-Rússia, após a Segunda Guerra Mundial, com assento nas Nações Unidas, reconhecido na própria Carta, por exigência de Estaline. E há indivíduos e pessoas colectivas de direito interno a quem é aplicável directa e imediatamente o direito internacional, pois são titulares directos de direitos e sujeitos de deveres criados por normas de direito internacional, como acontece com funcionários de organizações internacionais, indivíduos em face do direito sobre a guerra, membros de minorias ou de territórios sujeitos a estatuto internacional especial (direito de petição), as comissões nacionais da Cruz Vermelha Internacional (direito a desenvolverem acções humanitárias, a favor de pessoas referidas no direito humanitário, consagrado na Convenção de Genebra de 12 de Agosto de 1949).

1.3. As características do direito internacional

O direito internacional é um direito com características especiais, que o distingue dos direitos estaduais. Para alguns autores, ele seria um direito de coordenação, por contraposição ao direito de subordinação, próprio das ordens jurídicas internas , um direito dos Estados e não acima deles . A verdade é que os Estados são destinatários deste direito, estando obrigados a observá-lo. Ou seja, os Estados estão subordinados ao direito internacional. Ele está acima dos Estados.

A sua especificidade prende-se com a diferente natureza dos seus destinatários, implicando diferenças de processo de formulação das normas. A predominância de sistemas de auto-tutela dos interesses dos destinatários e de sanções também marca a diferença. São os próprios destinatários deste direito que, geralmente, elaboram as normas. Mas nem sempre.

A tutela dos interesses é accionada por acção directa dos próprios interessados (auto-defesa, auto-tutela), mas também ocorrem hoje mecanismos de hetero-tutela dos interesses.

Quanto ao sistema sancionatório, ou seja, em matéria da natureza e da competência para a aplicação das sanções pelo incumprimento das suas normas, predomina a responsabilização colectiva e a auto-reintegração, mas também já ocorre a responsabilização individual e a hetero- tutela. Há normas que prevêem sanções que visam as comunidades humanas, a que pertencem as pessoas que praticam os factos anti-jurídicos, como há normas que visam individualmente os autores das infracções. E há normas que só são aplicadas pelos componentes da sociedade internacional, de acordo com o princípio da auto-tutela e outras que são aplicadas por órgãos públicos especializados da sociedade internacional, de acordo com o princípio da hetero-tutela. Ou seja, o direito internacional tanto segue um sistema de responsabilidade colectiva com auto-reintegração, como com heteroreintegração (normas de direito internacional que asseguram a integridade territorial e a independência política dos Estados: artigo 41º e seguintes da Carta da ONU, que permite ao Conselho de Segurança decidir e recomendar a aplicação de sanções contra o agressor). E há sistemas de sanção individual ou de outros sujeitos de direito interno dos Estados, a aplicar por órgãos especializados da sociedade internacional geral ou de sociedades internacionais parciais. Portanto, o direito internacional admite quaisquer formas de sanções dirigidas a sujeitos de direito colectivos ou individuais, com diferentes sistemas de aplicação e execução.

Na verdade tem sido, em geral, um direito dotado de menor eficácia do que o direito imposto na ordem jurídica interna dos Estados, embora esta característica resultante da descentralização da sociedade internacional esteja em mudança, verificada no século XX, sobretudo na sua segunda metade e mais ainda no início da década de noventa, após o fim da guerra ideológica entre o Ocidente e o bloco soviético, embora nem sempre em sentido incontestado. De qualquer modo, o direito internacional sempre foi um direito a que os Estados obedeceram. Senão não seria direito. Quando não respeitavam as suas normas sabiam que estavam infringindo regras obrigatórias da sociedade internacional e se sujeitavam a sanções.

É importante referir que o direito internacional tem imanente «mecanismos de ajustamento inicial, de adaptação na sua vigência e de dissuasão em situações de desajustamento conjuntural».

A inexistência de um poder legislativo próprio da sociedade mundial, não agregada federativamente, impõe a construção pelos Estados de um direito internacional, em larga medida, sujeito a um mecanismo de ajustamento aos seus interesses, porque os Estados o cria para si. Mesmo quanto aos costumes, é a sua observância que lhes dá força legal, implicando o direito consuetudinário a existência de mecanismos de adaptação à evolução da sociedade internacional, ao eliminar ou substituir as normas infringidas e tem ínsito um mecanismo de inibição, ao criar o receio do inaproveitamento futuro dessa norma, se ela deixar de existir, devido ao desuso, ou se o seu comportamento discordante vier a generalizar-se e a criar um precedente criador de direito de sentido diferente. Como diz SILVA CUNHA, tudo isto tem levado os Estados a sentirem-se inclinados a obedecer ao direito internacional mais facilmente do que se ele fosse imposto (criado e alterado) por uma entidade supra-nacional alheia.

As relações internacionais têm imanentes mecanismos de respeitabilidade, fundamentais para a vida dos Estados. A sociedade internacional é relativamente pequena e os Estados estão fixados inamovivelmente nos seus territórios, pelo que a actuação sistemática em desconformidade com as regras jurídicas internacionais lhes criariam problemas de relacionamento na sociedade internacional no seu todo, e especialmente na sociedade internacional regional, onde as relações de má vizinhança implicando evoluções autárcicas, podem acarretar prejuízos económicos consideráveis. E não são apenas os pequenos Estados que têm necessidade da reputação de cumpridores do direito, pois ela também é necessária para o desenvolvimento da política externa dos Estados mais poderosos, que têm que mostrar que mantêm os seus compromissos. Que interesse teria tido, durante este último meio século, um tratado de aliança militar defensiva como o que criou a Aliança Atlântica, se o comportamento internacional da ou das potências mais poderosas, no caso os Estados Unidos da América, sobre cujas forças armadas assenta a perspectiva de paz, isto é, a confiança dos aliados e a dissuasão dos adversários, não pudesse garantir «totalmente» o seu respeito pelo Tratado do Atlântico Norte?

De qualquer modo, o Direito Internacional contemporâneo tem evoluído em vários domínios, dando-lhe uma caracterização nova, de que se destaca os aspectos seguintes:
a)-As grandes potências vão adquirindo faculdades jurídicas, que começaram a exercer em termos de afirmação de uma autoridade, ou seja, de um poder internacional real, no âmbito de organizações internacionais, que se impuseram não só na sociedade mundial, como em sociedades internacionais regionais (ONU, NATO, UEO, CEE, etc.);
 b)-O exercício de uma diplomacia normativa, desenvolvida nos órgãos de estrutura parlamentar de Organizações Internacionais;
c)-O sistema de sanções, por violação do Direito Internacional, ultrapassou a simples auto-reintegração, com criação de órgãos internacionais especializados para o efeito, v.g., o Tribunal Penal Internacional.
d)-A criação de mecanismos internacionais, com efectivo exercício, de repressão da guerra e da violação dos territórios alheios ou de ataque à independência dos Estados.
e)-A aceitação da existência de tratados de aplicação geral, mesmo em relação aos Estados que não os ratificaram.
 f)-O reconhecimento da existência de costumes internacionais universais.
g)-A existência de um direito preceptivo (ius cogens), impondo-se mesmo contra a vontade dos Estados, na medida em que eles não o podem revogar ou modificar e se impõe a todos os sujeitos da sociedade internacional, mesmo ao poder constituinte interno, numa clara afirmação dos princípios do primado e da recepção plena, independentemente das cláusulas reguladoras internas.
h)-O reforço dos mecanismos internacionais de protecção dos direitos do homem, o que não só vem permitindo que os indivíduos possam litigar ou apresentar petições em instâncias internacionais contra os Estados, como admitindo a intervenção internacional nos Estados em sua defesa, ao abrigo de um princípio do dever de intervenção nos assuntos internos (em clara demarcação do princípio geral da «não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados», a que também se refere o n.º 1 do artigo 7.º da nossa Constituição) quando estejam em causa os direitos humanos, das pessoas e das minorias (Somália e Bósnia).

1.4.AS CLASSIFICAÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL

1.4.1.A classificação em função da sua aplicação

O Direito Internacional distingue-se em Direito Internacional geral e particular.

O Direito Internacional Público Geral, comum ou universal é o conjunto de normas consuetudinárias ou de princípios gerais de direito que obrigam todos os Estados.

O Direito Internacional especial, regional ou particular é o conjunto de normas, constantes predominantemente de tratados, mas abarcando também normas consuetudinárias, obrigando dois ou mais Estados e subordinando-se a normas imperativas de Direito Internacional geral, que fixe os princípios a observar por todos os Estados na criação de novo Direito Internacional.

 1.4.2.A classificação em função da importância das normas

O Direito Internacional imperativo ou preceptivo (ius strictum) é constituído por normas que são de cumprimento geral obrigatório e às quais as outras têm que se subordinar (jus cogens). O Direito Internacional dispositivo é constituído pelas normas que obrigam os membros da sociedade internacional, dispondo sobre os comportamentos a que devem respeito, enquanto as regras constantes dele não forem livremente alteradas.

1.4.3.A classificação em função da matéria regulada

O Direito Internacional pode ser designado através da matéria tratada, como acontece com as expressões Direito do Ambiente, Direito de Asilo, Direito dos Tratados, Direito do Mar, etc. Sempre que estas classificações se reportem a áreas que se encontrem autonomizadas em termos de codificação, estamos perante o que se designa por ramos do Direito Internacional, podendo hoje distinguir-se fundamentalmente as seguintes divisões: O Direito Internacional da Cooperação para o Desenvolvimento, que regula as relações entre os Estados industrializados e os Estados Subdesenvolvidos, hoje comummente designados como Estados em Vias de Desenvolvimento (PVD), quer no plano da assistência (cooperação), quer no plano do apoio ao desenvolvimento económico (desenvolvimento), que a nível da doutrina europeia se designa em geral como Direito Internacional da Cooperação para o Desenvolvimento, terminologia colhida pelo Parlamento Europeu que assim designa a sua Comissão especializada no tratamento destes temas. O Direito do Mar, que rege não só as comunicações marítimas mas também a utilização do mar para fins económicos e fixa os Direitos dos Estados nos espaços marítimos, criando pela primeira vez na história, uma autoridade mundial cujos poderes se sobrepõem aos dos Estados (Convenção de Montego Bay). O Direito Internacional Aéreo ou Direito do Ar, que regula quer a navegação aérea quer a utilização em geral do espaço atmosférico.

O Direito Internacional Ambiental ou Direito da Poluição, que cria regras para procurar evitar a poluição, proibindo a emissão de substâncias perigosas, quer no espaço aéreo quer no marítimo.

O Direito Internacional Espacial, que rege não só a utilização do espaço extra-atmosférico, quer para as comunicações, quer para fins científicos, como interdita o seu uso para fins militares.

O Direito Internacional das Comunicações, que regula as comunicações postais, telegráficas, rodoviárias e ferroviárias.

O Direito Internacional Humanitário, constituído pelas normas que os beligerantes devem observar na condução de operações militares, para evitar violências não necessárias ao objectivo militar e proteger os direitos do homem.

O Direito Internacional do Desarmamento, que engloba as normas que as potências signatárias devem tomar para reduzir os seus níveis de armas nucleares, clássicas e tropas.

1.4.4.A classificação em função do carácter da organização que o produz Segundo esta classificação temos, v.g: O Direito Onusino, constituído por normas do Tratado que cria a ONU ou produzido pelos órgãos competentes desta para emanar normas que vinculem os Estados.

O Direito Comunitário Europeu, formado por normas constantes dos Tratados Comunitários, hoje integrados no Tratado da União Europeia (direito originário) e as que derivam dos órgãos competentes para tomar deliberações nos termos destes Tratados e da jurisprudência do Tribunal da UE (direito derivado).

1.5.AS CIÊNCIAS AUXILIARES DO ESTUDO DO DIREITO INTERNACIONAL

Vejamos quais as áreas científicas cujos conhecimentos são importantes para a própria construção e análise do ramo do direito internacional, funcionando como suas ciências auxiliares:

1.5.1. As Teorias das Relações Internacionais

As Teorias das Relações Internacionais, enquanto estudo sociológico da sociedade internacional, revela o conjunto das causas de vária índole, que, de modo combinado, influenciam a evolução do Direito Internacional.

A análise científica da sociedade internacional, apesar de só ter ainda produzido análises parciais, permite, com a objectividade derivada da observação ou da lógica fundada em correlações, clarificar aspectos das relações internacionais tão importantes como a elaboração da política externa, a dinâmica armamentista, a evolução de uma crise ou o processo negocial internacional. Ultrapassada a concepção clássica, que identificava o campo das relações internacionais à actividade diplomática dos Estados, hoje estes englobam todos os factos sociais internacionalizados, ou seja, todos os fenómenos internacionais que, por natureza, ultrapassem as fronteiras das sociedades políticas, entre as quais sobressaem os mais complexos de todos, os factos políticos internacionais, mas não só.

Ao lado da política externa dos Estados e dos conflitos armados, temos as actividades económicas, com as estratégias industriais das firmas, as ideologias e as culturas, as acções do terrorismo internacional, a influência das religiões em certas regiões, mostrando que a unidade-base destas relações, na fase da transnacionalização da estrutura do conjunto do sistema político mundial, já não é o Estado, pois os indivíduos e os grupos emergem com uma força inultrapassável. Mas haverá uma ciência ou teoria das relações internacionais, passível de ajudar o internacionalista na análise da natureza da sociedade internacional?

Com efeito, constata-se que os paradigmas filosóficos de explicação geral dessa natureza têm sido vários ao longo da história, espelhando-se ainda hoje essencialmente em divisões profundas e até contraditórios, cristalizadoras de três grandes escolas: α)- A teoria clássica, quer na variante da defesa da tese do estado do direito natural e da anarquia internacional, quer na da defesa da tese do equilíbrio internacional, a que pertencem MAQUIAVEL, HOBBES, VATTEL, HUME, ROUSSEAU e CLAUSEWITZ e os nacionalistas europeus do século XIX, para quem a sociedade internacional não passa de uma sociedade relacionando os Estados soberanos e independentes, através do interesse nacional, de poder, da guerra ou dos equilíbrios. β)- A tese transnacionalista, quer na versão mais idealista, assente numa visão universalista do género humano, quer na visão mais realista, assente na explicitação das relações económicas, políticas, sociais, culturais, estabelecidas pelo homem independentemente das fronteiras e das diplomacias, a que pertencem o jusnaturalismo do século XVI, o cristianismo medieval, tal como, na antiguidade, os estóicos gregos e Cícero, para quem a sociedade internacional é uma comunidade universal composta de homens, sujeitos primordiais dela, que pré-existem dos Estados, combinando relações individuais e transnacionais. γ)- A teoria soviética, que assentava nas concepções dos revolucionários franceses de 1793, com expressão em autores do século XIX e XX, como HEGEL, MARX, ENGELS, BOURKHARINE, LENINE, segundo a qual a sociedade internacional é um sistema de poderes fácticos de dominação e exploração dos poderosos que fazem a história, sobre os fracos que a sofrem, criando relações internacionais de dependência política e económica, não passando da reprodução à escala mundial das relações sociais e políticas existentes nos Estados.

No entanto, o jusinternacionalista não tem que escolher entre as diferentes abordagens, porquanto todas são parcelares, acentuando certos aspectos, parecendo que a compreensão dos fenómenos internacionais e, portanto, da sociedade internacional, que também ele procura para reflectir sobre o Direito Internacional, será mais fácil se for procurada numa visão que não exclua a análise de nenhuma das teorias.

 1.5.2.A ciência jurídica estadual

A ciência jurídica estadual, que tem por objectivo o estudo científico dos vários ramos do direito interno dos Estados contribui com expressões, conceitos e princípios.

1.5.3.A Ciência Política

A Ciência Política, dado que tem uma íntima ligação não só com o Direito Constitucional dos Estados como com o Direito Internacional. Se todo o Direito positivo recebe a influência da política, esta tem especial relevância na formação dos tratados, que hoje são a principal fonte do Direito Internacional, sendo certo que os Estados, principais destinatários do Direito Internacional, tendem a marginalizar os interesses gerais da sociedade internacional que se lhes imponha, procurando apenas satisfazer os seus interesses.

1.5.4.A História

A História, desde a História do Direito Internacional e a História Diplomática até à História das Ideias Filosóficas e a História dos Fenómenos Políticos, permitindo conhecer, ao longo dos tempos, os fenómenos jurídicos internacionais e as formas por que se têm revelado, os fenómenos políticos internacionais, as ideologias que os influenciaram e as ideias filosóficas que os propiciaram, o que pode permitir compreender muitas normas de hoje, explicá-las ou até criticá-las, à luz de concepções do mundo e da vida dominantes.

1.5.5.A Diplomacia

A Diplomacia, ligada à representação dos Estados e à tutela dos seus interesses na sociedade internacional, permite conhecer os princípios e regras que regem a acção dos agentes diplomáticos, não totalmente enquadrada pelo Direito Internacional relativo às relações internacionais, pois haverá sempre sectores relevantes destas relações sem qualquer regime jurídico, o que permite a formação de costumes sociais, susceptíveis de originar a criação de Direito Internacional consuetudinário ou costumeiro.

1.5.6.A Economia

A Economia, num mundo de crescente interdependência, impõe fenómenos económicos internacionais que levam à produção de tratados, designadamente no plano da integração dos Estados em grandes espaços, como tem acontecido desde há meio século na Europa, para cuja interpretação a Ciência Política é preciosa.

1.5.7.As Ciências Naturais

As Ciências Naturais, como a Geografia (permitindo conhecer as condicionantes, naturais ou humanas, dos Estados), ou as Físico-Químicas, revelando a evolução dos conhecimentos técnicos propiciadores, em cada momento, da evolução dos tipos de armamento e, portanto, dos métodos da guerra ou dos verdadeiros equilíbrios, por impossibilidade de vitórias bélicas, ajuda à compreensão das relações internacionais e da positivação de muitas normas de Direito Internacional.

1.6.O método da ciência do direito internacional

O Direito Internacional é um ramo da ciência jurídica e, por isso, o seu método integra-se nos cânones gerais do método desta ciência.

O objectivo fundamental do estudo do Direito Internacional e, portanto, do jusinternacionalista são as normas em vigor na sociedade internacional. Mas dada a importância do costume neste ramo do direito, o cultor de Direito Internacional tem de analisar o Direito Internacional tal como ele é praticado, captando-o, sistematizando-o, interpretando-o e contribuindo para o seu aperfeiçoamento.

Com efeito, ele tem de saber quais são as normas que regem a sociedade internacional (o que nem sempre é fácil, sobretudo quando estão em causa normas costumeiras, pese embora o esforço de codificação crescente), para poder retirar delas, quer os princípios gerais e os conceitos que permitam uma visão global do ordenamento jurídico internacional, quer para o sistematizar em ordem a dar-lhe uma compreensão coerente. Ele tem de compreendê-lo para perceber a sua razão de ser, para ver o que é essencial, estável e por vezes até imutável para a vontade dos Estados designadamente pela sua inserção no âmbito dos direitos ligado à dignidade humana (ius cogens) e o que é dispositivo e pode até ser meramente conjuntural, o que exige a análise interdisciplinar, com incursões na Política, na Economia, na História, nas Relações Internacionais, na Filosofia, na Diplomacia, na Geografia e em outras Ciências Naturais, como a Física e a Química, sem o que não pode compreender o ambiente da criação do direito e interpretá-lo (os interesses, as condições de vida, as concepções culturais, as ideologias, os tratados anti-nucleares, anti-armamentistas e desarmamentistas, etc.).

Ele, finalmente, conhecendo as razões históricas que justificam as normas ou deviam justificá-las, deverá criticá-lo à luz da sua adequação ou não para o prosseguimento dos seus objectivos e, em geral, à luz de princípios superiores, que são anteriores e estão acima do próprio direito positivo, consubstanciando ideias de justiça ínsitas ao denominado Direito Natural e ao ius cogens, que se impõem aos Estados

1.7.A codificação do direito internacional

A codificação das normas do direito internacional é um meio para o seu aperfeiçoamento, ao tornar mais clara a existência e o conteúdo das normas consuetudinárias e ao propiciar a integração das lacunas, perceptíveis no momento da sua elaboração. Mas, no âmbito internacional, a codificação não se traduz apenas num trabalho técnico, visando ordenar um direito vigente, sob a forma de normas consuetudinárias geralmente aceites, de precedentes judiciais, de direito derivado de organizações competentes ou mesmo de resoluções onusinas sem carácter vinculativo («direito» parlamentar internacional), mas que possa aceitar-se como prova de direito consuetudinário.

Há questões de fundo, de regulamentação substancial a decidir, quer ao preencher lacunas, quer ao optar por normas concorrentes, ao dar precisão a princípios gerais abstractos de formulação incerta. Neste plano, trata-se de criar direito internacional, o que, impondo tomadas de decisões políticas, exige o acordo dos Estados.

Este acordo nem sempre é fácil, como se concluiu, em 1930, na Conferência para as Codificações, organizada em Haia, pela Sociedade das Nações, sobre o direito internacional da nacionalidade, sobre as águas territoriais e sobre os danos causados a estrangeiros no território de um Estado, apesar da presunção de êxito face à conclusão dos trabalhos preparatórios.

Quer a recusa em aceitar certas normas, quer a ratificação por poucos Estados de certas regras sobre a nacionalidade, permitem aos Estados porem em dúvida regras que até então eram geralmente aceites como pertencendo ao direito internacional consuetudinário geral.

No entanto, a Carta da Organização das Nações Unidas veio estatuir, no seu artigo 13.º, que a Assembleia-Geral encorajasse «o desenvolvimento progressivo do direito internacional e da sua codificação», em face do que foi criada, em 1948, a Comissão do Direito Internacional, eleita em Assembleia-geral, e composta de especialistas de direito internacional representativos das várias civilizações e ligados aos principais sistemas jurídicos mundiais. O seu Estatuto manda-lhe elaborar, indiferentemente, textos relativos a assuntos ainda não regulamentados, em que a prática dos Estados não permite dispensar um trabalho de desenvolvimento, a nível de codificação, e efectuar a formulação sistematizada do direito internacional em assuntos suficientemente disciplinados por uma prática estável dos Estados, pelos precedentes judiciais e pela doutrina, pelo que apenas há que elaborar textos de modo sistematizado, de direito internacional existente, com o preenchimento de lacunas, quando necessário, ou fazendo emendas impostas pelas novas condições históricas.

Quando a Comissão elaborar textos com um conteúdo que vá para além da mera codificação do direito costumeiro, no âmbito da sua competência para desenvolver progressivamente a regulação de um dado assunto de direito internacional, as suas propostas ficam sujeitas a deliberação da Assembleia-geral, no sentido de obter o acordo internacional, pelo que a Comissão deve preparar um projecto de Convenção para o efeito. Quando o seu trabalho é essencialmente «codificador», isto é, enunciando o direito existente, ou é publicado em Relatório ou é objecto, total ou parcialmente, de uma resolução da Assembleia-Geral da ONU.

Como principais textos de direito internacional hoje em vigor, importa destacar as Convenções de Viena sobre o Direito dos Tratados de 23 de Abril de 1969 (uma sobre os tratados celebrados entre os Estados e outra referente às organizações Internacionais) e a Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas de 18 de Março de 1961.

2.OS FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS E POLITOLÓGICOS DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

2.1.O debate sobre o fundamento do direito internacional público O direito internacional constitui um ordenamento jurídico. É o ordenamento jurídico próprio da sociedade internacional. Mas não existindo uma entidade supranacional à escala mundial que crie e imponha o cumprimento das normas deste direito, como se explica o seu carácter obrigatório? Esta questão leva-nos ao debate sobre o fundamento do direito internacional

Há várias teorias. a)- As concepções jusnaturalistas (HUGO GROTIUS, FRANCISCO SUÁREZ, GENTIL, VITORIA): Os princípios básicos do direito são princípios de justiça com validade universal, explicitados por força da razão. Esta ideia recebe por parte de alguns autores o nome de teoria do direito natural, segundo a qual, apesar da impossibilidade de qualquer comprovação empírica, o direito se funda na justiça. A conclusão lógica desta teoria teria de levar a uma negação do valor jurídico de uma norma positiva injusta e, portanto, à sua não aplicação concreta. b)- As concepções positivistas voluntaristas Segundo esta concepção, o direito e a sua força ou autoridade funda-se na vontade. Com CORNELIUS VAN BYNKERSHOER, no início do século XVIII, começa a reacção contra o jusnaturalismo, através da afirmação basilar de que direito e justiça são distintos, pois o direito é fundamentalmente construído pelo homem e, quanto ao direito internacional, é no comportamento dos Estados que se encontra o seu fundamento. - A doutrina da auto-vinculação limitadora dos Estados ou da vontade individual dos Estados (Escola de Bona e Escola Soviética)

O fundamento da obrigatoriedade das normas jurídicas internacionais encontra-se na vontade de cada Estado singular. Elas são obrigatórias porque cada um dos Estados reconhece, e na medidas em que o reconhece, a sua obrigatoriedade. O direito internacional é, assim, fruto da auto-vinculação, consequência de uma auto-limitação dos Estados, expressa em declarações unilaterais da sua vontade. O direito internacional é uma parte do direito interno de cada país. É o seu direito público externo de cada Estado. O alemão JELLINEK, no século passado, tal como o soviético E. KAROVIN, no século XX, concebiam a soberania dos Estados como um poder supremo tanto na ordem interna como na ordem externa. Esta doutrina, para ter de admitir o direito consuetudinário, teve que o conceber como produto de acordos tácitos dos Estados (tacitum pactum), que a realidade não permite aceitar. Como o Estado é um fim em si mesmo, a sua soberania é absoluta. A sociedade internacional vive em «estado de natureza», com os Estados acima dos acordos, podendo eles fazer-se livremente a guerra. Os Estados, tal como aceitam auto-obrigar-se, também podem rever a sua posição e desobrigar-se.

Cada Estado pode, a todo o tempo, suspender as normas de direito interno, revogá-las ou modificá-las. O direito interno subsequente tem primazia sobre as normas internacionais anteriores que se refiram à mesma matéria, o que corresponde à negação do direito internacional, enquanto ordenamento jurídico da sociedade internacional.

a)- A doutrina da vontade colectiva (HENRIQUE TRIEPEL)

O direito internacional funda-se na vontade comum de dois ou mais Estados, realidade diferente da vontade individual de cada um dos Estados intervenientes nos acordos internacionais.

O Estado, ao participar na criação do direito internacional, participa na objectivação, através das suas normas, de uma vontade superior, que não lhe permite desvincular-se unilateralmente dos compromissos aí consignados. Mas também esta doutrina teve que considerar o direito consuetudinário internacional como um conjunto de acordos tácitos. E como só se cria direito internacional através de uma vontade comum, ou seja, quando os Estados querem a mesma coisa, o processo de criar o direito internacional é a convenção, ou seja, o Tratado-Convenção (o Tratado-lei ou Tratado-normativo ou law making treaty) e não o tratado-contrato, de carácter sinalagmático, em que os Estados querem coisas diferentes, cada um estipulando prestações recíprocas divergentes. Esta doutrina conduz a não considerar de direito internacional os tratados de comércio, de aliança, de delimitação ou correcção de fronteiras, etc., distinção que não corresponde à realidade das concepções jusinternacionalistas.

Com efeito, estes Tratados obrigam igualmente os Estados a comportar-se de acordo com os seus compromissos e, por isso, são direito internacional, não havendo sequer qualquer hierarquia entre os vários tipos de tratados. c)- As concepções lógico-positivistas

b)- A doutrina dos direitos fundamentais dos Estados (GIDEL, PILLET, etc.)

A força vinculante do direito internacional deriva da essência dos Estados, da sua natureza. Os Estados, pelo facto de co-existirem juntamente com os outros, têm direitos naturais que o direito internacional garante. Em regra, os defensores desta corrente, no fundo de raiz jusnaturalista, admitem, pelo menos, cinco direitos fundamentais dos Estados: o direito à preservação, o direito à independência, o direito à igualdade, o direito de respeito mútuo e o direito de comércio internacional. Mas a verdade é que, por um lado, estes direitos não têm eficácia positiva como direitos senão enquanto e na medida em que os seus conteúdos são delimitados e regulados pelo direito internacional; e, por outro lado, a ordem internacional não se constrói só com os direitos dos Estados.

c)- A doutrina lógico-teorética (ANZILOTTI, PARASSI)

A obrigatoriedade do direito internacional resulta de uma norma logicamente pressuposta. Para esta versão do positivismo lógico, temos que supor a validade objectiva de uma norma segundo a qual os Estados devem obedecer aos acordos em que intervenham, dado que os vinculam ao direito internacional (pacta sunt servanda) -A doutrina da norma fundadora (HANS KELSEN, J. KUNZ, GAETANO MORELLI) Na mesma linha de pensamento, a força obrigatória dos tratados resulta de uma norma consuetudinária de direito positivo geral internacional: pacta sunt servanda, ou seja, os acordos devem ser respeitados. Só a força obrigatória do direito consuetudinário se funda numa norma fundamental hipotética, que obrigaria os Estados a comportar-se como consuetudinariamente se têm comportado.

d) A concepção eclética de Vattel EMERICH DE VATTEL concebeu uma doutrina superadora da divisão implicada pelas concepções jusnaturalistas e positivistas, procurando conciliar uma aceitação do jusnaturalismo quanto à afirmação dos direitos dos Estados e do positivismo quanto à aceitação dos deveres, proclamando uma perspectiva negadora do direito enquanto corpo global de normas vinculativas, na medida em que não há ordem onde os Estados podem, por sistema, evitar cumprir as obrigações que lhes desagradam e apenas se reservam defender os direitos que lhes são inerentes em face do direito natural.

2.2. A teoria da soberania

Será que estas concepções são compatíveis com a teoria da soberania?

A noção moderna da soberania dos Estados, regressando mais à releitura de JEAN BODIN, leva à rejeição da concepção do oitocentista JOHN AUSTIN, para quem o direito são as directivas gerais do soberano, apoiadas na ameaça de sanções, pelo que o direito internacional não teria carácter jurídico. A teoria da soberania não concebe o poder soberano como algo não limitado pelo direito. O conceito de soberania, na estrutura interna do Estado, reporta-se à relação de poder com os indivíduos dentro do Estado. E, no plano das relações internacionais, o Estado também não está acima do direito, pois a soberania do Estado nas relações com os outros Estados significa a não dependência de qualquer outro Estado, ou seja, o autogoverno, a independência. É esta soberania precisamente que justifica o aparecimento do direito internacional, pois só pode obrigar-se quem é soberano. E as faculdades para contrair compromissos internacionais não negam a independência dos Estados, pois ela «é precisamente um atributo da soberania do Estado» (Sentença do TPJI, 1923, caso Wimdleton, Série A,nº1, p.25).

O Estado obriga-se com direitos e deveres na sociedade internacional, devendo-lhes respeito. 2.3. A concepção dominante em Portugal A doutrina dominante em Portugal enquadra o fundamento da obrigatoriedade do Direito Internacional em termos jusnaturalistas.

Os princípios em que o direito se funda são princípios descobertos pela razão, constituindo esses princípios o direito natural, «flexível, maleável, capaz de se adaptar, na sua concretização, por intermédio do direito positivo, aos diferentes tipos de sociedade, em que, em cada época histórica, o homem se integra» (v.g., SILVA CUNHA –Direito Internacional Público, p.58). O direito natural funda-se numa norma supra-positiva, dedutível através dos princípios da lógica formal, ou seja, numa norma de direito natural. Há uma norma de direito natural da sociedade internacional, que obriga os Estados a observarem as normas de direito internacional positivo, provenientes de certas fontes de direito, designadamente do costume e dos tratados: consuetudines et pacta sunt servanda .

3.OS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

3.1.A matriz europeia original e a evolução renormartivizante

A compreensão do actual direito internacional só é possível com o conhecimento da sua evolução histórica. Ele é fruto de um processo inacabado, nascido das relações estabelecidas pelas nações europeias, que vem sofrendo a influência renormativizante dos Estados do Terceiro Mundo e da convivência estruturada pelas grandes organizações internacionais.

Estas são criadoras de uma diplomacia normativa, fonte de um direito prospectivo, que vai deslizando para a ordem jurídica internacional. Em causa está a imposição de uma nova abordagem nomológica do direito internacional, em que certas normas jurídicas marcam irreversivelmente uma ultrapassagem do direito internacional clássico, como direito de gestação costumeira ou direito escrito de base voluntarista e, em geral, de matriz cultural fundamentalmente europeia. Durante um longo período, que só termina no século XX, a história do direito internacional confunde-se com a história europeia, onde, no fim da Idade Média, aparece o Estado de fisionomia moderna.

É a partir daí que se vão elaborando ou aperfeiçoando instituições que pertencem ao direito contemporâneo, estendidas pelo fenómeno colonial a todo o mundo, onde irão ficar em vigor quando os europeus retornam ao Velho Continente. Mas, desde logo, começa a sua contestação. Portanto, o moderno direito internacional é originário da Europa Ocidental, onde se desenvolveu paralelamente à construção dos Estados modernos, ou seja, do sistema de Estados independentes, a partir do século XVI, apesar de, já desde a antiguidade clássica, existir um sistema rudimentar de direito internacional, fixando por exemplo a obrigatoriedade dos tratados e a inviolabilidade dos embaixadores. Ou seja, é necessário clarificar que muitas instituições internacionalistas se inserem, em muitos domínios, numa linha de evolução criativa, iniciada ainda antes da afirmação, na época moderna, da realidade estadual. Sem dúvida que, ao procurar elementos de internacionalismo na Antiguidade e na Idade Média, é necessário começar por referir a dificuldade em falar na existência de um Direito Internacional, em face da inexistência de Estados, na sua concepção moderna. No entanto, isto não permite negar que, nas épocas «pré-estaduais», aparecem muitas instituições de relacionamento entre povos e, desde logo, o tratado e a diplomacia, que estão na origem do actual direito internacional. Daí, que tenha de ser entendida em termos relativos qualquer afirmação de que o direito internacional nasceu no século XVI.

Como direito intersocial que é, próprio das relações entre sociedades políticas, mesmo de forma pré-estadual, ele regeu já as condutas de povos que preencheram as condições mínimas de relacionamento igual intergrupal. A estrutura de convivência política europeia, a que MAQUIAVEL chamou Estado, é uma realidade cultural recente (caracterizável na sua tridimensionalidade jurídica, social e ideológica), em que, desde logo, avulta a emergência da afirmação do poder central, assente no conceito bodiniano de soberania. Mas, antes, tivemos os impérios antigos, as cidades gregas, as monarquias helenísticas, a República Romana, o Império Romano e os principados feudais, tudo estruturas de convivência política afeiçoadas à ligação a diferentes modos de dominação e produção económica, desde a comunidade primitiva, o modo de produção asiático ou de despotismo hidráulico (WITTFOGEL), de despotismo oriental (CRICK), ou de despotismo de aldeia (CHESNAUX), esclavagista ou feudal. Apesar da ausência da instituição estadual, como conceito básico dessa relação, podemos encontrar já na Antiguidade os alicerces do actual Direito Internacional. Na verdade, o mundo antigo, feito de cidades e impérios para-autárcicos ou em preparação frequente para a expansão territorial, não viabilizava a criação de um sistema jurídico relacional, mas isso não impediu o aparecimento de instituições de direito dos povos.

Realmente, os Impérios do Oriente estabeleceram relações pacíficas com o mundo exterior, por razões de comércio. E celebraram verdadeiros tratados negociados em pé de igualdade. E esses acordos entre povos afirmam-se assentes no respeito do princípio fundamental de direito de que os pactos são para cumprir. Trata-se de tratados que versam naturalmente sobre o comércio, fronteiras, alianças militares, extradição e cooperação. E essas relações propiciam a criação de estruturas diplomáticas, beneficiando de privilégios especiais.

3.2.O direito «supra-estadual» na Grécia antiga Na Grécia clássica, estes instrumentos centrais das relações internacionais também existem, provando a existência de uma organização jurídica da sociedade supra-política (πολισ, cidade). Além disso, os gregos criaram outras instituições que ainda hoje se assumem como invenções válidas de direito internacional:

1ª- A criação de um direito da guerra, fundado em tratados em que coexistiam as preocupações de humanidade;

2ª- A criação da arbitragem internacional, como meio de solução pacífica de conflitos, quer de índole política (v.g., tratados de paz entre Atenas e Esparta, de 446 e 431, e o tratado de aliança militar entre Esparta e Argos, de 418), quer ligado ao comércio internacional;

3ª- A atribuição de direitos protegendo reciprocamente os comerciantes e os seus bens, através de tratados comerciais, que levou à criação da proxénia, estrutura de protecção consular; 4ª- A criação convencional de organizações internacionais, agrupando cidades gregas, dotadas de administração comum, de santuários religiosos (amphyctionies) ou visando a cooperação e assistência militar colectiva (symmachies), que estruturam alguns agrupamentos em termos federais, respeitadores da liberdade de associação e de igualdade das cidades (v.g., as ligas ou confederações atenienses de 476 e 378); e 5ª- A criação de regras sobre a interpretação dos tratados.

 3.3.O ius gentium e o ius fetale romano Roma também chegou a utilizar o ius tractatum em pé de igualdade (foedus aequum) com os seus vizinhos peninsulares ou mediterrânicos, v.g., na criação da Liga Latina com as outras cidades do Latium, no século V a.c., e com Cartago, no princípio do século IV a.c., chegando ao ponto de incluir normas de protecção recíproca de residentes originários da outra parte.

Mais tarde, as relações estabelecidas por Roma com os outros povos serão de supremacia (foedus iniquum), sem interesse para a temática do direito internacional. De qualquer modo, há um direito romano criado para regular as relações com os povos estrangeiros e que originará o ius fetale e o ius gentium, o primeiro de raiz religiosa, dando aos sacerdotes, tidos como verdadeiros legados, embaixadores, o benefício da inviolabilidade pessoal e fazendo a distinção entre guerra justa e guerra injusta. E o direito romano das gentes, originado no trabalho dos pretores do fim da República e início do Império, não é aplicável aos cidadãos (ius civile), mas sobretudo às relações comerciais e, portanto, privadas, estabelecidas entre romanos e não romanos, ou só entre estes, fundado sobre princípios ínsitos à razão universal (e, neste aspecto, próximo do direito natural de raiz helénica). Assim, GAIO considera-o como o direito estabelecido pela razão natural entre todos os homens. ULPIANO deixa-nos u

ma enumeração de matérias reguladas por ele, que incluem os Tratados, a guerra, a defesa, a paz e as tréguas, a ocupação do território, o respeito pelos legados, a captura de escravos, a construção de edifícios e a proibição de casamentos entre estrangeiros.

3.4.As relações internacionais medievais

Durante a Idade Média, após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, há uma interrupção na evolução do direito internacional, embora na segunda metade desta, reapareça a divisão entre direito da guerra e direito da paz, as noções de guerra injusta e injusta, a interdição de guerra privada e as represálias. De qualquer modo, não há um direito acerca das hostilidades, na medida em que a trégua de Deus e a paz de Deus são apenas instituições humanitárias. Aperfeiçoam-se as relações pacíficas, o uso dos tratados, sobretudo para fins comerciais e relações diplomáticas, e a arbitragem como meio de prevenir a guerra.

É no fim da Idade Média que se desenvolve a criação dos ministérios dos negócios estrangeiros e das embaixadas permanentes, com a concomitante criação de um direito europeu referente à função diplomática, com os respectivos privilégios e imunidades. Criam-se cônsules, para proteger os comerciantes no espaço extra-europeu. Aparece o direito do mar, devido ao incremento das relações comerciais, abarcando a protecção do comércio marítimo, o direito de visita, o contrabando, o regime dos corsários, o bloqueio, etc.. A segunda metade da Idade Média encerra a origem ou a configuração moderna de quase todas as instituições internacionais vigentes.

3.5.O direito internacional na época moderna

A evolução do direito internacional moderno pode dividir-se em três grandes períodos:

1.º O período de formação do «direito europeu», que vai desde o início da época moderna até ao fim do século XIX e que tem como principais eventos, na sociedade internacional, marcando fases evolutivas importantes, a paz de Westefália, de 1648, o congresso do Viena e o Tratado da Santa Aliança de 1815, onde se explicitam os princípios de cooperação da nova ordem económica internacional, e a Declaração de ocupação efectiva do continente africano pelas potencias coloniais, de 26 de Fevereiro de 1885.

2.º O período de maturação deste direito internacional de origem europeia, que dura até à II Guerra Mundial, em que importa destacar essencialmente a convenção sobre a limitação do uso da força para a cobrança de dívidas contratuais, assinada em Haia a 18 de Outubro de 1907, o Pacto de Paris de 27 de Agosto de 1928 sobre a interdição da guerra e a institucionalização da sociedade internacional, iniciada com a Declaração de WILSON de 8 de Janeiro de 1918, a criação da Sociedade das Nações em 1919 e, finalmente, a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945.

3.º O período da mundialização do direito internacional, objecto de acomodação às influências extra-europeias, que se acentua sobretudo desde a descolonização, a partir de 1960, fruto de uma tensão conservadora-revolucionária, marcado pelo labor onusino, através da releitura de conceitos tradicionais e da convivência de normas que ainda não são direito, normas que já não são direito e um direito eivado de normas que são mal recebidas pelos Estados mais antigos e desenvolvidos do mundo. A partir do fim da Idade Média, há dois fenómenos, a consolidação estadual e os progressos em matéria de navegação marítima, que vão acelerar o desenvolvimento das relações internacionais e do fragmentado movimento normativo, com destaque para o princípio da liberdade dos mares, as normas sobre ocupação de terras extra-europeias e a navegação marítima, o direito da guerra em terra e no mar e regras sobre a neutralidade dos Estados.

Com o tempo, estas normas dispersas evoluem para um sistema inter-estadual, com a criação de um verdadeiro direito internacional, que ainda hoje vigora com a designação de direito internacional clássico. É necessário referir a importância fundamental dos Tratados de Westefália, que põem fim à Guerra dos 30 anos, o Tratado de Osnabrück e o de Münster de 14-24 de Outubro de 1648, os quais constituem a «Carta Constitucional da Europa», iniciando o «direito público europeu», reconhecendo a soberania e a igualdade dos Estados como princípios fundamentais das relações inter-estaduais, prevendo um método convencional para resolver os conflitos e criando um mecanismo de manutenção da ordem europeia, pelo que constituem a base de toda a evolução do Direito Internacional Público.

Os grandes teóricos fundadores da ciência do direito internacional aparecem entre os séculos XVI e XVIII. Devem destacar-se como grandes doutrinadores desta fase, os autores da Escola Espanhola do Direito Internacional (com destaque para FRANCISCO DE VITÓRIA, FRANCISCO SUÁREZ e DOMINGO DE SOTO), a Escola do Direito Natural e dos Povos, de HUGO GROTIUS, e uma linha de transição, expressa por WOLFF e VATTEL, combinando naturalismo com positivismo. Em Salamanca, FRANCISCO VITÓRIA, nas suas Relectiones Theologicae, transpõe para a sociedade internacional as concepções jusnaturalistas dos clássicos e do tomismo. Ele admite a liberdade dos Estados, mas limitando-a por um direito natural, que é superior à sua soberania. E que se impõe às relações entre eles, numa comunidade de existência necessária. E, portanto, implicando a necessidade de um ius inter gentes, que a discipline (independentemente das vontades soberanas), de aplicação universal. Segundo ele, o direito positivo está subordinado ao direito internacional, que traduz o direito natural, acima dos Estados. E será FRANCISCO SUAREZ quem, no ensino coimbrão (transcrito em 1612 para o Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore), virá fazer a distinção entre o direito natural e o direito internacional. O primeiro é considerado necessário e imutável. O segundo, contingente e evolutivo, de natureza para-positiva, na medida em que resulta da apreciação subjectiva que os Estados vão fazendo acerca do conteúdo do direito natural. Mas foi HUGO GRÓCIO, em 1625, no livro De Iure Belli ac Pacis , quem apresentou a primeira exposição metódica do direito internacional. Na sua concepção geral, a soberania dos Estados aparece limitada e subordinada ao direito natural, entendido como um direito racional contendo princípios, enquanto o direito voluntário, assente no princípio do direito natural «os pactos devem ser respeitados», engloba as regras construtivas efectivamente aplicáveis às relações internacionais.

Além desta concepção, viabilizadora do direito internacional, que faz com que os autores o considerem como o pai deste, ele criou todo um quadro conceptual que deu unidade às variadíssimas normas internacionais nascidas do costume. De qualquer modo, o sistema pós-Westefaliano não aceitou a teoria da subordinação estadual. A obra fundamental de VATTEL foi publicada em 1758, com o título O direito dos povos ou princípios da lei natural aplicada á conduta e aos assuntos das nações e dos soberanos. Para ele, é o Estado o intérprete soberano do direito natural, que é o direito necessário da sociedade internacional, formado por Estados iguais. Esta concepção dá a cada Estado a total liberdade de configurar o que é o direito natural da cada época, tornado uma noção subjectiva, dado que implica a procura da criação de um conteúdo jurídico aceitável para todos.

Este direito positivo aparece como fruto da vontade modificadora dos Estados. Mas se é assim, há que concluir que os Estados não estão subordinados ao direito natural. Com MOSER e os seus Princípios do Actual Direito das Gentes, de 1750 e 1752, e GEORGES FRÉDÉRIC DE MARTENS, autor dos Elementos do Moderno Direito das Gentes da Europa fundado sobre os Tratados e o Costume, publicados em 1788, aparecem os protopositivistas Estes autores pretendem analisar o direito internacional com que, realmente, se conformam os Estados. Não se afastam completamente do direito natural. E permitem-nos tirar conclusões sobre o sistema internacional clássico, saído do Antigo regime, no fim do século XVIII.

O século XIX viverá do voluntarismo positivista, que atingirá o seu apogeu com a escola positivista clássica do fim do século assente no estadualismo e no voluntarismo, reduzindo ao Estado e à sua vontade toda a fonte do direito, eliminando completamente o direito natural, que ainda convivia no sistema inter-estadual de VATTEL e no Antigo Regime. Neste século XIX, a produção normativa toca no direito da guerra e no direito das comunicações internacionais, e começa a regular questões ligadas ao direito humanitário e ao direito comercial, enformado pelas concepções das grandes potências.

Quanto ao direito tradicional da guerra, ele é completamente um direito da neutralidade perpétua e um direito da guerra marítima (Tratado de Paris de 1856). O direito das comunicações passa a abranger o princípio da liberdade dos estreitos e dos canais inter-oceânicos (Convenção de Constantinopla de 1888) a liberdade de circulação nos rios internacionais, a regulamentação dos transportes ferroviários, as relações postais e telegráficas. A humanização do direito da guerra começa com a Convenção da Cruz Vermelha de 1864. Em 1890 é abolida a escravatura. Aparecem já tratados sobre matérias referentes à saúde, à protecção da propriedade industrial (Tratado de Paris de 1883) e das obras literárias e artísticas (Tratado de Berna de 1886).

3.6.O direito internacional no século XX No século XX, surgem outras teorias, produzidas pela escola normativista de Viena, iniciada por HANS KELSEN e a sua teoria pura do direito, a escola objectivista ou sociológica de GEORGES SCELLE, inspirada na concepção solidarista de LÉON DUGUIT, erigindo-se contra o positivismo, defendendo uma teoria do direito internacional dos indivíduos e procurando uma explicação global para o Direito Internacional Público. Simultaneamente, aparecem releituras de doutrinas anteriores, como o positivismo pragmático e o neo-jusnaturalismo. Trata-se de um sistema internacional de Estados soberanos e iguais, sem a existência de qualquer poder superior, regido por um direito inaplicável aos indivíduos, resultante do consentimento expresso (tratados) ou tácito (costume) de Estados.

É este sistema com que, em grande parte, nos deparamos ainda hoje, com um sistema internacional dominado ainda pelos Estados soberanos, que os novos países saídos da descolonização não contestam, pois apenas problematizam o direito tradicional. E isto, apesar de se verificarem reais progressos no plano da sua institucionalização, desde logo com a Carta da ONU e os poderes do Conselho de Segurança, e da produção normativa, omnicompreensiva, acelerada, e que se impõe, muitas vezes, independentemente da inexistência do consentimento dos Estados. E em que as Conferências Intergovernamentais regulam normalmente os grandes problemas da sociedade internacional. No início do século XX, a produção normativa é ainda dominada pelo ius in bello, com as Conferências de Haya a elaborar 16 Convenções sobre a prevenção da guerra, a condução das hostilidaddes e o regime da neutralidade, embora avance também o ius ad bellum com proibição da agressão armada parcial, no Pacto da Sociedade das Nações e total, com o Pacto Briand-Kellog, de 1928.

De qualquer modo, realizaram-se grandes progressos no domínio do direito humanitário. E quer a Sociedade das Nações quer a Organização Internacional do Trabalho levaram à conclusão de muitas Convenções técnicas e sociais. Após a segunda guerra mundial, a explosão normativa levou à criação de ramos distintos de direito internacional sobre muitas matérias novas e outras redensificadas. Assim, quanto às matérias tradicionais, reenquadra-se a disciplina do direito da guerra, da neutralidade, do direito do mar (primeiro, através das quatros Convenções de Genebra, e depois através da Convenção de Montego Bay, entrada em vigor na década de noventa passada), o direito aéreo, o direito diplomático e consular e os direitos dos tratados.

E, quanto às matérias novas, que começaram, nesta segunda metade do século, a ser tratadas na sociedade internacional, devido à diversificação do direito internacional, aparece o direito da economia, o direito da cooperação para o desenvolvimento, o direito do espaço, os direitos do homem, o direito administrativo internacional, o direito das organizações internacionais, o direito da cooperação científica e técnica, o direito do ambiente, etc. Sintomático da evolução recente do direito internacional, quanto aos seus princípios, métodos criativos e valor do direito internacional é o facto de a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados ter efectivado o reconhecimento da existência de um ius cogens (em que se integrariam a maior parte dos princípios gerais de direito e as normas sobre os direitos humanos). Este ius cogens está colocado acima do poder dispositivo dos Estados. Mesmo no plano constitucional e a sua imposição jurídica afirma-se face a todos os Estados, designadamente quando consta de tratados não consentidos por alguns ou de Resoluções nascidas com valor de simples recomendação no seio da Assembleia-Geral da ONU, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e muitas regras do direito do desenvolvimento, o que importa destacar, assim como a rapidez temporal como certas práticas se transformam em direito internacional consuetudinário.

Hoje, há um direito internacional universal, aparecido depois da primeira guerra mundial, após a generalização da autodeterminação dos povos no hemisfério sul, fazendo terminar um ciclo de hegemonização mundial por parte da Europa, atingido por volta de 1880, com o culminar da conquista de quase todos os povos não europeus, e que permitiu que este sistema de direito internacional universal começasse por ser o direito internacional da sociedade europeia (a qual destruíra os sistemas jurídicos regionais da época anterior à colonização), e que tem vindo a ser revisto em ordem a se aproximar dos interesses dos Estados do Terceiro Mundo.

Com a descolonização, os novos Estados afro-asiáticos, saídos da dominação europeia durante o período da criação do moderno direito internacional, e, por isso, sem ter desempenhado nenhum papel nos seus processos formativos, revelaram uma perfeita demarcação dos antigos sistemas locais de direito internacional, anteriores à colonização, não podendo nem ressuscitá-los nem reformular o direito internacional europeu, de acordo com os princípios conservadores e retrógrados daqueles. Aceitaram a maior parte das normas do direito internacional vigente, exigindo apenas a modificação de algumas, ora procurando recorrer a processos de tratados unilaterais ou conferências intergovernamentais, ora procurando codificar o direito existente na perspectiva de aproveitamentos reformistas, ora procurando utilizar a assembleia onusina, para aprovar resoluções que consagraram princípios mais favoráveis, muitas das quais, apesar de despidas de valor jurídico enquanto tais, não deixam de constituir elementos de prova do direito internacional ou criar novo direito consuetudinário. A maior parte das normas consideradas contrárias aos interesses do Terceiro Mundo foram assim sendo alteradas, com o acordo originário ou não dos países ocidentais.

4.AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO DE FONTE INTERNA DOS ESTADOS

4.1. A noção de direito interno e relações de influência entre direito internacional e de direito interno

Direito interno é a expressão utilizada em direito internacional para designar o ordenamento jurídico de cada Estado, ou seja, para os direitos estaduais. As relações estabelecidas entre o direito internacional e o direito interno dos Estados são relações de influência e relações de sistema.

Com efeito, quanto às relações de influência, o direito internacional é influenciado pelo direito interno, quer porque a ele tem ido buscar conceitos e figuras que procura adaptar às necessidades jurídicas da sociedade internacional, quer porque ele é utilizado como prova de um costume internacional ou de princípios gerais de Direito, quer porque remete certas decisões para normas de direito interno, v.g., no domínio da atribuição da nacionalidade das pessoas. As relações sistémicas processam-se tanto no plano doutrinário, como ao nível da análise prática das coordenações dos diferentes direitos internos com o direito internacional, que ora segue uma orientação que repudia à priori qualquer enquadramento, ora o pressupõe. Neste domínio da interrelação entre as ordens jurídicas, a regra geral do direito internacional é que um Estado não pode invocar uma norma ou uma lacuna do seu direito interno como defesa perante uma reivindicação assente no direito internacional.

4.2.Os modelos relacionais doutrinários

Na concepção dualista, o direito internacional e o direito interno constituem dois sistemas jurídicos iguais, independentes e separados, pelo que, para cada conjunto, as normas do outro sistema não passam de puros factos. Esta conclusão seria imposta pela diversidade de fundamento, de fontes e de destinatários. Mas onde está a diversidade do fundamento do direito consuetudinário e dos princípios gerais de direito?

Não há uma origem comum perante a fonte de direito que é o costume? E como aceitar logicamente que o direito internacional e o direito interno, ambos vigentes e aplicáveis pelo Estado, possam ser e não ser, ao mesmo tempo, direito ou facto conforme o ângulo jurídico de análise? O direito internacional fundar-se-ia na vontade comum dos Estados (TRIEPEL) ou na norma segundo a qual os factos devem ser respeitados, pacta sunt servanda (ANZILOTTI), enquanto o direito interno se funda na vontade do legislador. O direito internacional teria por fonte formal o tratado e nele o costume sempre teve ascendente inegualável, enquanto o direito interno nasceria da lei. Mas como desconhecer as normas consuetudinárias que, nalguns países, como no Reino Unido, sempre desempenharam uma função importante, mesmo relativamente superior à lei?

O direito internacional teria por destinatários os Estados, enquanto o direito interno teria por destinatários os indivíduos. Mas, na ordem internacional, não há normas cujos destinatários são indivíduos ou pessoas colectivas de direito interno, enquanto nos direitos internos a maior parte das normas de direito público se dirigem ao próprio Estado, seus órgãos e agentes?

4.3. O modelo monista

O direito constitui uma unidade, pelo que só há um sistema jurídico, em que uma das ordens jurídicas se subordina à outra ou em que elas têm igual valor. Esta concepção foi sendo afirmada com duas variantes muito distintas, que se expõem:

a)- A solução de unidade jurídica com supremacia do direito interno

O direito internacional está subordinado ao direito interno, dado que é das normas constitucionais deste que nasce a obrigatoriedade do direito internacional, uma vez que não existe qualquer autoridade internacional superior. O direito internacional seria um direito estadual externo, disciplinando as relações externas do Estado . Mas como explicar o fundamento do costume internacional, formado à revelia do direito interno? E como explicar a sujeição imediata dos Estados recém-formados ao direito costumeiro universal, pelo facto da sua simples existência? E como justificar a manutenção da vigência do direito internacional mesmo com alterações introduzidas no direito interno ?

b)- A solução de unidade jurídica com supremacia do direito internacional

É esta a versão de princípio que perfilhamos. A ordem jurídica internacional está hierarquicamente acima do direito interno, que lhe está subordinado, de uma maneira absoluta ou relativa. Na concepção verdrossiana, com o seu monismo extremo, as normas internas seriam simples derivações do direito internacional, pelo que as contradições implicam a nulidade do direito interno. Na concepção monista moderada, a subordinação geral dos direitos internos não impede a aplicação generalizada do direito interno, pois as normas internas contraditórias não são nulas, dando apenas origem, quando sejam aplicadas, a responsabilidade do Estado por infracção ao direito internacional e à possibilidade de impugnação em instância internacional.

c)- A aplicação interna do direito internacional

Os mecanismos de interiorização das normas internacionais nos direitos estaduais são vários. As Constituições da maior parte dos Estados democráticos atribuem aos Parlamentos e aos Governos um papel próprio no processo de aprovação dos Tratados, ou transformando os textos negociados num acto legislativo interno (sistema de transposição), ou dando-lhes vigência directa (cláusulas de recepção plena), pelo que os Tratados passam a produzir simultaneamente efeitos quer em direito interno quer em direito internacional.

A Constituição Federal Norte-Americana, no seu artigo 6º, determina a nulidade das leis constitucionais ou ordinárias dos vários Estados que sejam contrárias aos «Tratados celebrados ou que se celebrem», incluídos na expressão da «lei suprema do País» (EUA). A Constituição Francesa, no seu artigo 55º, declara que os Tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados têm, a partir da sua publicação, uma autoridade superior às leis. A Constituição Federal Alemã, no seu artigo 25º, diz que as regras do direito internacional «constituem parte integrante do Direito Federal» e prevalecem sobre as leis e delas resultam directamente direitos e deveres para os habitantes do território alemão.

A Constituição Portuguesa tem várias normas sobre o tema. No seu artigo 8º, que tem como título Direito internacional, ela determina que «as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português» (nº 1º), do mesmo modo que «as normas constantes de convenções internacionais (regularmente ratificadas ou aprovadas) vigoram na ordem interna, após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português» (nº 2).

Aqui, o termo «convenção» designa tanto os tratados celebrados em forma solene, como os acordos na forma simplificada. Exige-se, quanto aos tratados em forma solene, que devam vigorar por força da cláusula de recepção plena, prevista no nº 2 do artigo 8º, a ratificação do Chefe do Estado. Quanto aos acordos em forma simplificada, que são tratados que, nos termos constitucionais portugueses, não devem ser assinados sem reserva de aprovação posterior, pois o Estado português apenas se deve vincular na sociedade internacional através de aprovação do Governo ou da Assembleia da República, conforme a entidade competente na matéria (alínea i) do artigo 161.º da CRP), bastando tal para que eles vigorem na ordem jurídica interna, sem necessidade de ratificação (desde logo, alínea b) do artigo 135.º: competência nas relações internacionais).

O n.º 6 do artigo 7º (Relações internacionais) veio permitir que Portugal pudesse, «em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial, de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da União Europeia».

Por sua vez, os n.º 3 e 4 do artigo 8.º acrescentam o seguinte: «3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos; 4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Ou seja, independentemente da incorrecção do articulado, que fala em normas (e aqui não apenas nos termos do tratado mas também da jurisprudência comunitária: as directivas e as decisões dirigidas aos Estados, quando adquiram efeito directo) quando devia falar em actos (pois as decisões individuais e concretas também são directamente vinculativas para os particulares), nos termos do nº 3 do artigo 8º, há que entender que também as normas, actos administrativos e sentenças, ou seja, o direito emanado ou declarado pelos órgãos competentes das organizações internacionais (Comunidade Europeia, UE ou ONU), em que Portugal participa (nos termos previstos nos respectivos tratados constitutivos), é directamente aplicável na ordem jurídica interna. Tudo visto, há que concluir que, em face do próprio texto da Constituição, resulta que o Direito Internacional Consuetudinário (devendo entender-se também aqui previsto o direito convencional que venha a ser tido como imperativo) é parte integrante do direito português: quer o direito consuetudinário universal quer o regional, quer o bilateral, apesar de erradamente o nº 1 da Constituição da República Portuguesa o não dizer expressamente, sendo certo que tal resulta da concepção monista moderada com supremacia do Direito Internacional Público, que hoje se impõe perfilhar.

Com efeito, apesar de o n.º 1 do artigo 8.º só se referir aos princípios gerais do direito internacional e às normas com carácter geral ou comum, por igual razão e independentemente da tese perfilhada quanto às relações de sistema entre o Direito Internacional Público e os direitos nacionais, sempre deverá considerar-se integrado o direito consuetudinário particular, ou seja, todo o direito consuetudinário. Não é pelo facto de um costume jurídico não ser geral que, desde que seja aplicável a Portugal (v.g., direito europeu ou direito que envolva Portugal com outro ou outros sujeitos da sociedade internacional, onde quer que se situem), tem natureza diferente para Portugal em relação ao direito consuetudinário universal.

No debate efectivado na Assembleia Constituinte , constata-se a intenção do legislador de resolver no artigo 8º a questão da aplicação de todo o direito internacional público na ordem jurídica portuguesa. JORGE MIRANDA diz textualmente «congratular-se com a formulação clara que este artigo dá a uma regra fundamental que deve estar na base da recepção do direito internacional na ordem interna portuguesa e congratular-se com a ideia de que nós explicitamente afirmamos o primado do direito internacional sobre o direito interno e de que, independentemente de uma recepção específica, as normas de direito internacional público, quer as de direito internacional geral comum quer as do direito internacional convencional, valem no direito português». Reconheça-se que, em face do objectivo, o texto não ficou perfeito e daí que no processo de revisão constitucional, em 1994, eu tenha proposto uma reformulação do nº 1, como aliás de todo o artigo 8º (v.g. Actas da Comissão de Revisão Constitucional, de Setembro-Outubro 1994), o que não avançou pois este processo abortou sem lei de revisão aprovada, por primeiro ter sido suspenso sine die e depois ter sido dado sem efeito .

A Constituição da República Portuguesa estabelece pois a recepção automática de todo o direito consuetudinário. Estas normas, tal como os princípios gerais (quer os princípios gerais do direito comuns aos vários direitos estaduais, v.g., o princípio da boa fé, o princípio da segurança jurídica, do respeito pela confiança legítima, da propriedade privada, etc., estabelecidos nos grandes sistemas jurídicos, como o romano-germânico e anglo-saxónico e o islâmico, quer os princípios gerais do próprio direito internacional, como o princípio (relativo) da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, da autodeterminação dos povos, etc.) são fontes autónomas do nosso direito interno, sem necessidade de transformação deles em actos legislativos nacionais, pelo que são directamente aplicáveis pelas autoridades e tribunais portugueses, devido à sua incorporação automática. E, como referi atrás, dado que o nº 1 se refere a normas do direito internacional público geral ou comum devem também considerar-se aqui incluídas todas as normas de direito «constitucional» da sociedade internacional, ou seja, as normas de aceitação generalizada na sociedade internacional e, portanto, as normas constantes de tratados universais ou quase universais, aceites como direito geral (Carta da ONU, Declaração Universal dos Direitos do Homem e os dois Pactos de desenvolvimento de 1966, que aliás devem considerar-se jus cogens (direito imperativo para os sujeitos da sociedade internacional) e por isso de respeito obrigatório pelos direitos internos dos Estados, incluindo as suas constituições, dado que são portadores de valores transconstitucionais, sobretudo quando relacionados com a defesa da dignidade humana. Quanto às convenções, quer se trate de tratados formais ratificados pelo Presidente da República, quer de tratados em forma simplificada apenas aprovados pelo Governo ou Parlamento, eles vigoram na ordem interna enquanto obrigarem o Estado português na ordem jurídica internacional; dizendo o nº 2 do artigo 277.º, dispositivo referente à fiscalização da constitucionalidade, que os tratados celebrados em forma solene se aplicam na ordem interna mesmo que feridos de inconstitucionalidade orgânica ou formal, desde que regularmente ratificados e não tenha sido violada nenhuma disposição fundamental.

É assim claro que os tratados em forma simplificada, ou seja, os acordos internacionais, aprovados pelo Governo, em forma de decreto, tal como os de necessária aprovação parlamentar, não são aplicáveis na ordem interna quando feridos de qualquer tipo de inconstitucionalidade. E, pelo contrário, os tratados que exigem o acto de ratificação propriamente dito, traduzido no acto de ratificação do Presidente da República, se esta se verificou, produzem todos os efeitos na ordem interna, mesmo que tenha havido vícios no processo formativo da resolução de aprovação parlamentar ou da proposta governativa que criou a iniciativa da resolução.

Ou seja, no caso de tratados sujeitos a ratificação do Chefe de Estado, a inconstitucionalidade formal ou orgânica não os torna ineficazes, desde que não haja «violação de uma disposição fundamental», expressão que não pode deixar de ser interpretada em sentido concordante com o disposto na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Assim, há recepção automática de direito internacional convencional não geral, mas de modo condicionado, dado que o nº 2 do referido 8º diz que «as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificados ou aprovados vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português». Portanto, as normas convencionais (cujas características não os façam integrar no nº 1, artigo 8.º), ratificadas ou aprovadas de acordo com as normas constitucionais aplicam-se directamente na ordem jurídica interna logo que passem a vincular o Estado na sociedade internacional, se já tiverem sido publicadas no Diário da República ou, então, logo após essa publicação .

A questão coloca-se em relação às convenções que não tenham sido «regularmente ratificadas ou aprovadas», nos termos exigidos pelo n.º 2 do artigo 8.º. Quid Juris? Desde que se trate de tratados «regularmente ratificados»... salvo se tal inconstitucionalidade resultar de «violação de uma disposição fundamental», diz o n.º 2 do artigo 277.º que, neste caso, «a inconstitucionalidade orgânica ou formal ... não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa». Como interpretar o vocábulo «regularmente»? Aqui, o termo regularmente, só tem sentido se interpretado como reportando-se a tratado ratificado, nos termos constitucionais, pelo Presidente da República, sob pena de a norma não ter sentido quanto aos tratados solenes.

Quanto aos acordos em forma simplificada, a inconstitucionalidade produz efeitos, mesmo a orgânica ou formal, mesmo que regularmente assinados pelo Presidente da República. Quanto à inconstitucionalidade material, a vontade do legislador constituinte foi fazê-la relevar em todos os tratados internacionais. Isto é, segundo se pode deduzir da construção do sistema da fiscalização da inconstitucionalidade, o legislador constitucional pretendia que o direito internacional tivesse um valor infra-constitucional. E, quanto à legislação ordinária do Estado português, o direito internacional público prevalece sobre ela ou não? JORGE MIRANDA, na Assembleia Constituinte, defendia que «deverá entender-se que (as normas de direito internacional) têm legalidade superior à legalidade das leis», mas acrescentando que «tal não se encontra explicitamente afirmado», e, por isso, será «matéria provavelmente para estudo técnico, mas a formulação tal como se encontra no artigo 8.º levará a esse entendimento». Ou seja, «As normas do direito internacional prevalecem sobre as normas de direito interno, sobre as leis» .

Há supremacia do direito internacional recebido convencional sobre o direito interno ordinário. E, na medida em que surgisse uma norma de direito interno que contrariasse o direito internacional, ela seria inconstitucional, nula, porquanto entraria em contradição com o n.º 2 do artigo 8.º, que impõe a vigência (e, portanto, a manutenção da vigência na ordem interna, ou seja, a não revogação da sua vigência), do direito internacional, que vincula o Estado Português no plano internacional?

Ou ela deverá, meramente, considerar-se não aplicável, de vigência suspensa, a partir do momento em que surja uma norma internacional contrária? E o direito internacional consuetudinário também teria primazia, pois a lei interna que afastasse a sua vigência na ordem jurídica interna contrariaria o texto constitucional que integra automaticamente este direito internacional no direito português (n.º 1 do artigo 8.º), sendo certo que a lei que o contrariasse, o «desintegrava» do direito português. Portanto o direito interno anterior ou posterior à criação da norma internacional, que contrariasse o direito internacional, seria ilegal ou mesmo inconstitucional. A questão a colocar, em face de tal conclusão, é saber se o direito interno que eventualmente venha contrariar posteriormente o direito internacional está realmente submetido ao regime referido anteriormente? O que significaria a sua não vigência por força de impossibilidade superveniente, ou por invalidade ou suspensão normativa consequente.

Como se disse, o direito internacional integrado de natureza convencional dispositivo teria valor supra-legislativo, mesmo que infraconstitucional, dado o disposto no n.º 2 do artigo 277.º, que excepciona da aplicação na ordem interna, desde logo, todos os tratados feridos de inconstitucionalidade material e do n.º 3 do artigo 280.º, alínea a) do nº 1 do artigo 281.º, aquele mencionando directamente a recusa judicial da aplicação de normas constantes de convenções internacionais (embora sem a possibilidade de se entrar no processo de declaração com força obrigatória, após 3 declarações de inconstitucionalidade da mesma norma em casos concretos, por ela ser de fonte supra-nacional, não podendo, por isso, o Tribunal Constitucional agir como «legislador negativo» (ou em jurisdição eliminadora da norma), pese a previsão geral, não excepcionada para os tratados, dessa declaração para quaisquer normas, a requerimento das entidades referidas no n.º 2 do artigo 281.º. Será assim?

E as convenções de conteúdo imperativo, materialmente constitucional, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, mandando a própria Constituição aplicar o Direito internacional público referente aos direitos fundamentais e, até, mandando integrar as lacunas constitucionais e mesmo interpretar as normas constitucionais de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, constante de uma Resolução da Assembleia-geral da ONU, sobretudo se se entender que não é direito convencional, tendo quando muito as normas do tratado natureza de prova de direito internacional consuetudinário ou sendo as disposições da Resolução onusina a base parlamentar de um costume posterior vinculante? No mínimo, estaríamos aqui confrontados com um problema de natureza paritária hierárquico-normativa?

No entanto, repare-se que não é o direito internacional público que é mandado interpretar de acordo com o direito constitucional, mas o contrário. O que significa que, independentemente da questão pontual, explicitada pela sua importância em face da cláusula aberta dos direitos fundamentais, há uma aceitação do carácter supra-constitucional de certas normas de direito internacional. Importa referir que a Declaração Universal dos Direitos do Homem entrou no direito internacional público ou por força do Pacto de 1966 ou por via consuetudinária e faz mesmo parte hoje do jus cogens.

Aliás, importa concluir que:

1.º- Em relação ao direito internacional recebido na ordem jurídica interna, por força do n.º 1 do artigo 8.º, sem qualquer condição para a sua integração no direito português e onde se englobam as normas consuetudinárias, os princípios gerais do direito internacional público e as normas dos tratados de carácter geral (universal), há que atribuir-lhe carácter supra-constitucional, pelo que aos tribunais fica vedado efectuar a fiscalização da sua constitucionalidade, pese embora o disposto no sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade, que assim se vê reduzido ao plano de direito convencional particular, que se integra no direito português, em termos condicionados, por força do n.º 2 do artigo 8.º.

2.º- Todo o direito internacional vigora em Portugal ao abrigo de uma cláusula geral de recepção plena. E quanto às normas emanadas das organizações internacionais de que Portugal faz parte? As Resoluções de certos órgãos da ONU, regulamentos e outros actos normativos das Comunidades Europeias têm primazia sobre o direito interno?

O n.º 3 do artigo 8.º manda aplicá-las directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos, a que deve acrescentar-se por força da obrigação de aplicar todo o acervo comunitário as decisões jurisdicionais sobre o efeito directo de actos que não teriam expressamente aplicabilidade directa segundo os tratados. Há, portanto, também uma recepção automática deste direito derivado das organizações internacionais. As Directivas comunitárias obrigam, mas passam por transposição para actos internos. E o Tribunal de Justiça das Comunidades tem considerado aplicável o princípio do primado do direito comunitário não só sobre o direito nacional ordinário mas mesmo sobre o direito constitucional dos Estados membros , invocando a «autonomia, superioridade, unidade e efectividade» da ordem jurídica comunitária , sem o que a própria ideia de Comunidade supra-nacional é irrealizável. É óbvio que nunca poderá estar sujeito à fiscalização preventiva, porquanto este direito derivado dos tratados não depende de ratificação interna.

No entanto, segundo alguns autores, a sua aplicação poderia ser afastada da aplicação na ordem jurídica interna com fundamento em inconstitucionalidade porque não é «admissível a imunidade constitucional de quaisquer normas vigentes na ordem jurídica portuguesa» . E se os órgãos comunitários editarem actos normativos que derrogam leis portuguesas com orientação material diferente, qual o seu valor? E as leis poderão posteriormente adoptar normas contrárias a esse direito derivado? E quanto ao direito originário, primário, destas organizações, constante dos tratados? A maior parte da doutrina atribui valor supra-legislativo (tal como ela faz com o direito internacional clássico) ao direito derivado comunitário, dando-lhe prevalência de aplicação . De qualquer modo, este direito teria um valor infra-constitucional, em nome das razões que alguns autores resumem, dizendo que se assim não fosse a Constituição seria supérflua, a revisão da constituição ocorreria sem respeito pelas regras consagradas nela e dar-se-ia a superação dos limites materiais da revisão constitucional indicados no artigo 288.º .

Independentemente da argumentação desta doutrina, a falta de uma norma constitucional que o esclareça, sendo certo que não têm que ser as constituições estaduais a auto-limitar-se (mesmo em Estados federados), onde essa limitação resulta das regras fundamentais de carácter supra-nacional, do ordenamento jurídico comunitário, a argumentação utilizada não é decisiva, além de que não é aceite pelo Tribunal da Comunidade. E Portugal está obrigado pelos Tratados a aceitar todo o acervo jurídico da União, mesmo o jurisprudencial. Desde logo, quanto aos limites materiais de revisão, tal como as normas concretas do texto constitucional, ou eles estão de acordo com os princípios «constitucionais» comunitários ou então só há dois caminhos para superar o conflito: ou, realmente, o Estado português vai alterando a reboque a Constituição (com ou sem expedientes, meramente processuais, de dupla revisão) ou, então, as autoridades internas não têm outro caminho senão «integrar» o direito constitucional de acordo com o direito comunitário, o que implica atribuir-lhe um estauto superior ou, pelo menos, igual, uma vez que estão obrigadas a cumpri-lo.

Quanto à utilidade ou não da Constituição, ela não se mede apenas pela gestão da posição do direito supra-nacional, o que implicaria a inexistência de Constituições nos Estados Federados, onde, sem dúvida, o seu interesse é, por vezes, muito menor do que no contexto de União de Estados, onde o âmbito comunitário ou supra-nacional é relativamente diminuto, em face do âmbito de acção intergovernamental ou, quando muito, transnacional .

A Constituição exprime, no plano normativo, o exercício de direitos de soberania nacionais, que se forem transferidos ou delegados numa organização internacional, não deixam subsistir essa regulamentação constitucional ou a sua possibilidade futura, enquanto essa delegação se mantiver. Em conclusão, importa referir que a própria ideia de Direito Comunitário exige uniformidade de aplicação e de interpretação em todo o espaço jurídico a que se aplica, e, por isso, ele tem de ter supremacia sobre todo o direito, infra-unionista, constitucional ou não, que perde a sua eficácia perante ele, na medida em que o direito interno deixe de se aplicar.

Mas isso significa que é supra-constitucional. E o n.º 3 devia apenas tratar da «limitação» dos direitos soberanos, permitindo a sua transferência ou delegação na União Europeia. E a manter-se a regular a integração do direito comunitário, então devia referir os actos em geral das instituições da União e não apenas as normas (pois, como dissemos, as «decisões» previstas no artigo 189.º do Tratado Comunidade Europeia são actos jurídicos individuais que obrigam e podem ser invocados pelos particulares, quando se lhes dirigem, ou seja, são aplicáveis directamente, tal como os regulamentos).

E o artigo 189.º do Tratado só prevê a aplicação directo dos regulamentos e não das Directivas, obrigando-os a legislar, em conformidade com os seus objectivos, sendo certo, no entanto que elas passam a ter na mesma efeito directo, se, tal como as Decisões que se dirijam aos Estados, não forem criadas normas ou em geral cumpridas as suas orientações de acordo com os objectivos ou comandos apontados, podendo ser invocadas pelos particulares quando qualquer norma de direito interno a contradiga ou não viabilize a sua aplicação, desde que contenham enunciados precisos, claros e incondicionados, passíveis de exequibilidade imediata, sem necessidade estrita de outra intermediação normativa. Ora, acontece que esse efeito directo não está previsto no n.º 3 do artigo 8.º .

5.AS LIMITAÇÕES DO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL

5.1.A ausência de autoridade supranacional e eficácia relativa

O direito internacional é uma ordem jurídica dotada de eficácia, mesmo que relativa, apesar de, em termos genéricos, se considerar que, na sociedade internacional, não existe parlamento, nem governo, nem tribunais, não existe autoridade; isto é, não existe nem «legislador, nem juiz, nem polícia». Realmente, não existe ainda um poder ou autoridade superior aos Estados, que possa fixar, autoritariamente, normas gerais e abstractas reguladoras das relações internacionais e possa resolver compulsivamente os litígios, pela aplicação dessas normas, impondo sanções e reintegrando os interesses ofendidos, se necessário através da força. Apesar de o direito internacional estar acima dos Estados, que lhe estão subordinados, é a eles que cabe ou pode caber, à falta de outros meios, sozinhos ou em coordenação com outros, definir os prejuízos sofridos ou exigir a reintegração e determinar e promover a sanção aplicável, num sistema de auto-tutela declaratória, executória e sancionatória. Apenas o recurso à força, fora dos casos de legítima defesa, lhes está hoje vedado pela Carta da Organização das Nações Unidas, à qual, em certos casos, foi atribuída competência para decretar ou autorizar esse meio.

5.2.A legislação das organizações internacionais de natureza supranacional

No entanto, também, já há um direito internacional autónomo dos Estados, produzido por certas organizações internacionais, a quem foi atribuída pelos Estados, competência para o efeito, nos próprios Tratados constitutivos, constituindo como que uma legislação internacional. Trata-se de disposições do tipo das de fonte interna, com características de normação materialmente legislativa, e portanto de autêntica legislação internacional, cujo primeiro exemplo constatado foram as normas editadas pela antiga Comissão Europeia do Danúbio, a que hoje se podem acrescentar resoluções várias de órgãos de organizações internacionais, como a ONU, que aliás assumem também muitas vezes poderes decisórios concretos.

5.2.1.Os actos da Comissão Europeia do Danúbio

Este fenómeno da afirmação de legislação internacional começou a ocorrer com a criação de normas pela antiga Comissão Europeia do Danúbio, instituída pelo Tratado de Paris, de 30 de Março de 1856.

5.2.2.Os actos do Conselho de Segurança e das Comunidades supranacionais regionais

Hoje, temos as resoluções imperativas do Conselho de Segurança, tomadas nos termos do artigo 39.º e seguintes da Carta, as decisões derivadas dos artigos 108.º e 109.º da Carta, os regulamentos de alguns órgãos principais da ONU, as resoluções dos organismos especializados, os actos dos órgãos das Comunidades Europeias e as decisões de outras Organizações, cujos Tratados-Fundação ou Tratados-Constituição lhes atribuíram poderes para tal, como acontece, ou seja em geral quaisquer disposições ou decisões tomadas por maioria dos membros ou órgãos de uma organização internacional que as edite nos termos das saus competências convencionadas ou estatutárias, v.g., com as decisões dos órgãos competentes da Convenção de Lomé (UE-ACP).

5.2.3.A questão do controlo contencioso do ilícito internacional e do poder jurisdicional internacional

E não existe um poder judicial supra-estadual, ou seja, um complexo orgânico dotado de competência jurisdicional compulsória, que funcione como o sistema da composição judicial dos litígios e do controlo jurisdicional da observância da lei , uma vez que a competência do Tribunal Internacional de Justiça depende do consentimento ad hoc dos Estados.

5.2.4.A constatação do normal respeito e eficácia do direito internacional público

No entanto, o direito internacional é naturalmente observado. E, nos Tratados celebrados entre os Estados, é frequente a inclusão de uma cláusula de sujeição à resolução do Tribunal Internacional de Justiça das controvérsias sobre interpretação e aplicação das normas dos Tratados. E há Estados que declaram, no momento da adesão ao seu Estatuto ou mais tarde, reconhecer prévia e genericamente, sob condição de reciprocidade, a jurisdição do Tribunal em todos os litígios jurídicos.

Quer esta cláusula facultativa, quer as cláusulas de sujeição celebradas nos Tratados conferem ao Tribunal competência para decidir os conflitos que lhe sejam apresentados, sem necessidade de um acordo especial, caso a caso.

E mesmo quando os Estados não estão sujeitos à jurisdição do Tribunal nem consentiram na apreciação do litígio por este, não deixam de se desencadear outros processos de composição de conflitos, desde a conciliação por via diplomática, a aceitação dos bons ofícios, o recurso à mediação por uma terceira potência ou através de um acordo de arbitragem. Assim, é claro que as deficiências de princípio ligadas ao controlo contencioso do ilícito internacional não impedem a existência de um processo judicial. E não só este constitui alternativa de recurso à auto-tutela, legítima na sociedade internacional, desde que não assuma a forma de recurso à força armada. Há, portanto, ainda, em ordem à solução pacífica dos conflitos, os processos diplomáticos e arbitrais.

5.2.5. A questão da coação e das sanções na vida do direito internacional público E quanto às sanções, em direito internacional não há um órgão internacional específico de carácter geral para exercer a coacção, com atribuições e força necessária para executar as sanções decididas pelos órgãos de composição de conflitos ou pelos Estados. A sociedade internacional não está dotada de um órgão jurisdicional e em consequência, de um procedimento judicial obrigatório. A maior parte das sanções impostas pela sociedade internacional derivam do recurso à auto-tutela, possível apenas por parte dos Estados, com todos os perigos de uso abusivo desta prerrogativa ou impossibilidade de uso por Estados claramente mais fracos. E mesmo este recurso deixou de ser lícito na forma de utilização da força armada, excepto em legítima defesa contra um ataque armado. O uso da força armada como meio para sancionar comportamentos ilícitos internacionais, só é possível no âmbito do direito onusino.

5.2.6.A auto-reintegração e heteroreintegração. Retorsão e represálias

A auto-reintegração, hoje, só é, em princípio, praticável sob as formas de retorsão e represálias.

A retorsão e as represálias distinguem-se porquanto as represálias se traduzem em actos, em si, ilícitos, que só o comportamento anterior de outro interveniente na sociedade internacional pode legitimar. As represálias podem concretizar-se em actuações em domínios diferentes dos que foram objecto de um comportamento ilegal pela outra parte, mas têm de traduzir um prejuízo proporcional ao dano causado.

Assim, se um Estado Estrangeiro nacionalizar, sem pagamento da devida indemnização, uma fábrica de um cidadão português, Portugal pode expropriar nas mesmas condições uma fábrica ou um terreno de valor semelhante a um cidadão líbio ou confiscar recursos financeiros depositados na sua banca em valor aproximado do prejuízo causado ao cidadão português. E há também represálias pacíficas, quando um Estado apreende bens particulares do Estado ofensor, proíbe exportações ou importações fixadas num acordo comercial, etc. A retorsão visa, sem qualquer actuação que infrinja qualquer regra de direito internacional, prejudicar objectivamente um interveniente nas relações internacionais, que cometeu um acto ilícito. Assim, Portugal pode retirar o exequator a cônsules ou chamar embaixadores; romper relações diplomáticas; mas também pode limitar-se a cortar apoios financeiros ou em bens de outra natureza, que esteja a fornecer gratuitamente a um país, ou o envio de cooperantes, no âmbito da sua política de cooperação ou do apoio ao desenvolvimento em relação a um Estado em Via de Desenvolvimento, v.g., no caso de este ter infringido uma norma de um tratado bilateral entre a União Europeia e esse país, que nos atribui direitos de pesca nas suas águas. Acontece que a retorsão e as represálias podem também prejudicar o Estado que pretende apenas sancionar as infracções. E a possibilidade de heteroreintegração do Estado ofendido, através da utilização de meios desencadeados pelo Conselho de Segurança da ONU, é enquadrada em circunstâncias limitadas e sujeita quer ao voto da maioria quer, sobretudo, ao direito de veto dos Cinco Grandes.

6.AS FONTES FORMAIS DE DIREITO INTERNACIONAL

6.1. A noção, a razão de ser e a enunciação das fontes formais de direito

As fontes formais de direito internacional são os processos de criação de normas na ordem jurídica internacional. São razões muito diversas que estão subjacentes ao desencadeamento deste processo de produção e de revelação normativa (fontes materiais).

O que significa que a nomogénese internacional está intrinsecamente ligada ao próprio fundamento do direito internacional. Na sociedade internacional não existe uma soberania universal, que de raiz se afirme independentemente de delegações ou transferências de parcelas do seu exercício, pelo que a sua inultrapassável nomocracia tem origem em exigências ligadas à própria coexistência e necessidade relacional dos Estados e organizações intergovernamentais e supra-estaduais por eles criadas.

Mas o artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, cuja missão é dirimir litígios que surjam na sociedade internacional e lhe sejam submetidos pelos seus membros, é comummente aceite, na doutrina, como a base de reflexão nomológica para a explicitação científica das fontes formais jusinternacionais, partindo do princípio de que a sua enumeração das fontes, que é clássica, não só é orientativa, ou seja, meramente exemplificativa, como de índole evolutiva e sujeita ou revisível, face aos dados impostos pela ciência jurídica. Neste aspecto, desde já, importa acrescentar a esse elenco os actos jurídicos unilaterais dos sujeitos de direito internacional, sejam Estados, sejam organizações Internacionais, que criem obrigações comportamentais para essas entidades, no futuro.

6.2. O costume internacional

O costume foi sempre a mais importante fonte de direito internacional e, ainda hoje, mesmo com a proliferação das fontes escritas, muitas das quais são transcrição e até mesmo codificação do direito consuetudinário, este continua a ter valor autónomo e, por isso, não só a ser aplicado pela jurisdição internacional, como a não tornar imprescindível a adesão dos Estados aos tratados que se limitem a consagrá-lo. Nos termos da al.b) do n.º 1 do artigo 38.º, o costume internacional é referido «como a prova de uma prática geral aceite como sendo direito», o que significa que a sua processualidade ôntica, em que ele não é apenas prova de existência de uma norma, mas um dos modos da sua formação, corresponde à do direito costumeiro no direito interno, implicando, existencialmente, uma prática geral (uso: elemento material) e uma aceitação dessa prática pelos destinatários, como sendo de direito (convicção de obrigatoriedade desse uso: opinio iuris ou opinio iuris vel necessitatis). Na sua criação, importa menos a vontade dos Estados, que pode não existir por parte de alguns, e, sobretudo, a realidade constatada de ele surgir espontaneamente, pelo facto de ter começado a existir, numa prática que se foi reiterando, até adquirir força própria, que não está sufragada na vontade dos membros da sociedade internacional. Ou seja, ele afirma-se independentemente dessa vontade, através de actos contra legem, que preencham os mesmos requisitos do fenómeno da sua imposição no direito interno.

O costume pode mesmo afirmar-se tendo como base de partida aplicativa textos escritos sem valor vinculativo ou até normas de tratados, que apesar de não ratificados ou não assinados por uma dada parte, começaram posteriormente por ela a ser aplicadas, podendo por esta via escrita chegar mesmo ao ponto de revogar ou alterar todo o tipo de normas costumeiras, embora, segundo a Convenção sobre o Direito dos Tratados, tal não fosse permitido se tais normas de tratados enquanto tais pretendessem interferir com normas do jus cogens internacional, que são normas sobre as quais os Estados não têm livre disposição convencional (domínio de superlegalidade internacional que integra, desde logo, as normas sobre liberdades individuais, cujo primado implica a existência de uma hierarquia de normas de direito internacional). Na formação e vigência do costume geral, não é necessário a participação criativa de todos os Estados que lhe ficam sujeitos, bastando que a convicção de obrigatoriedade seja constatável na grande maioria dos Estados (concepção objectivista, e não voluntarista, ou do pacto tácito sobre os fundamentos do direito consuetudinário) para que os outros, e mesmo os novos Estados que surgiram posteriormente na cena internacional, lhe fiquem vinculados. A existência de um costume pode ser revelada pela prática de órgãos dos Estados, quer na sua actividade internacional, quer no plano interno, quer de órgãos de organizações internacionais (v.g., contra o disposto no artigo 27.º da Carta da ONU, a prática impôs que a abstenção de uma grande potência não valesse como veto: costume contra legem), quer mesmo de entidades privadas (v.g., empresas multinacionais), quando tais usos sejam tolerados pelos Estados.

O costume deve ser geral e constante, embora a medida da sua generalização e da sua reiteração dependa das circunstâncias de cada caso e tenha evoluído com o tempo, em face do próprio crescente dinamismo das relações jurídicas na sociedade internacional. Quanto aos critérios jurisprudenciais para tal identificação de uma prática transmutada em uso obrigatório, aponta-se para as seguintes conclusões : Essa prática, embora possa ser desrespeitada pontualmente como é próprio de toda a norma, não deve traduzir-se em excessivas incertezas, pelas flutuações comportamentais, polémicas ou discordâncias consistentes sobre a sua reiteração ou mesmo contradições materiais densificadoras da mesma, pois tal não permite concluir sobre a existência de um uso constante. Ou seja, é necessário que se possa concluir que uma certa prática tem sido em geral admitida. No que diz respeito ao tempo necessário para se formar um costume jurídico, se há situações em que tal parece exigir uma duração de quase ou mais de um século, outros há (v.g. o caso de direito internacional referente à soberania dos Estados sobre o seu espaço aéreo sobre o seu território; ou as declarações dos Estados, a seguir à do Presidente dos EUA, em 28 de Setembro de 1945, contra a liberdade de utilização e, portanto, pelo direito exclusivo de exploração e pesquisa na plataforma continental marítima, subjacente ao alto mar, ou seja para além do limite das águas territoriais, em que bastaram poucos anos). Em geral, constata-se que, mais do que a quantidade ou espécie dos comportamentos, activos ou omissivos, ou a sua duração, que tem sido relativamente desvalorizada, sobreleva a uniformidade das condutas, mais ou menos repetidas.

Ou seja, a prática sempre que os estados tiveram, relacionalmente, a oportunidade de agir ou não agir numa determinada matéria. No que se refere à generalidade da prática, basta que ela se constate num número significativo de Estados, podendo o costume geral, universal, criar-se independentemente de uma vontade generalizada. O que significa que só o costume bilateral ou local necessita da prova de uma participação expressa ou tácita dos Estados cuja sujeição a essa prática se exige.

De qualquer modo, o costume geral pode surgir de actos ou omissões reiterados, praticados por poucos ou mesmo apenas por um Estado, que afectem os outros Estados, sem que ocorram protestos destes. E, de qualquer modo, basta que um Estado proteste, enquanto se considere que tal prática ainda não é obrigatória (ainda não é costume jurídico), para que o costume, formado quanto aos outros, não lhe possa ser imposto. Em verdade, o que mais releva é a prática constante e uniforme e menos a sua duração ou generalidade . Quanto à exigência da convicção de obrigatoriedade ou elemento psicossocial cuja exigência é contestada por vários sectores da doutrina, e que apenas aparece no Estatuto do TIJ, não se considerando antes exigível senão o elemento material, importa referir que, pelo menos, tal existirá no caso sa «diplomacia normativa» (v.g., Resoluções da ONU, que nascendo sem valor formalmente vinculativo, o vão ganhando).

Esta exigência visa, de facto, tentar permitir que se possa distinguir o costume vinculante de outras práticas legais e constantes, seguidas nas relações internacionais, que não sejam de considerar obrigatórios, mas apenas usos ou normas de cortesia De qualquer modo, não sendo um elemento material, e, portanto, oficialmente contestável, a jurisprudência considera-o, por princípio, como existente se o membro da sociedade internacional que invocar a sua falta, não demonstrar que o uso em causa tem assentado apenas em razões de conveniência ou oportunidade e nunca por se considerar obrigatório (presunção juris tantum, ou seja elidível), transferindo o ónus de prova de quem alega a existência do direito segundo o costume para quem o contesta.

6.3. Os princípios gerais do direito e o jus cogens

O direito Internacional integra regras e princípios, que lhe são, em geral, anteriores, e permitem que ele funcione com um sistema, quer conformando quer articulando normas entre si, designadamente em termos de interpretação e aplicação, fazendo parte natural do ordenamento jusinternacional.

Caracterizam-se por não terem, em geral, existência explicitada nos textos, sendo mais gerais do que as regras e, portanto, com um grau maior ou menor de indeterminação na densificação do seu conteúdo Desde logo, a base fundante da própria ordem jurídica internacional é um princípio geral de direito, pacta sunt servanda, e outros que foram positivados, v.g., no artigo 2.º da Carta da ONU e seu Preâmbulo. Especial destaque merecem os princípios considerados de jus cogens, que, em geral, é constituído por normas que não estão na disponibilidade modificativa dos membros da sociedade internacional, tendo força jurídica a se, invalidando todos os actos jurídicos que os contrariem ou pretendam revogar. O reconhecimento internacional da existência e relevância de um direito com tais características encontra-se quer em textos pretorianos (v.g., caso Krupp, Acórdão do Tribunal de Nuremberg e Acórdão do TIJ), quer em textos normativos (Carta da ONU, Convenções de Genebra revistas em 1949, Resolução e pactos da ONU sobre Direitos do Homem, criação do Tribunal Penal Internacional em 1998) e, sobretudo, em geral, as Convenções de Viena sobre o Direito dos Tratados. de 1969 e 1986 (art.53.º, 64.º e 71.º e, ainda, o n.º 5 do art. 44.º (indivisibilidade de tratado atentatório do jus cogens), o n.º 5 do art. 60.º (manutenção de cláusulas em tratado de direito humanitário) e alínea a) do art.66.º (interpretação e aplicação de normas de ius cogens).

Destas normas, podemos concluir que o seu regime é o seguinte: Uma norma de ius cogens reconhece-se pela aceitação por parte de sociedade internacional (que, assim, transforma uma parte do direito natural em direito internacional positivo), de que não pode ser derrogada nem modificada por tratado. A sua modificação (segundo a Convenção) é possível apenas por obra de uma norma costumeira geral da mesma natureza (n.º 2 do art. 53.º), o que sendo uma contradictio in terminis, deve ter-se como dispositivo irrelevante, a não ser que vise prever alterações de aprofundamento densificador do direito em causa, o que, de qualquer modo, sempre há que ter-se como possível, até mesmo pela via convencional do tratado (v.g., Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Qualquer tratado que seja concluído contendo normas incompatíveis com o jus cogens é nulo, tal como se torna nulo qualquer tratado que supervenientemente se venha a revelar como contendo normas que passaram a ser incompatíveis com a nova norma de jus cogens entretanto nascida (n.º 2 do art. 53.º e 64.º da CVDT).

Ou seja, o ius cogens tem uma força jurídica supra-ordenada e supra-ordenadora de todo o ordenamento jurídico internacional. As consequências da nulidade dos tratados com normas desconformes ou incompatíveis com o ius cogens são diferentes no caso de nulidade originária ou nulidade derivada, face à superveniência de direito imperativo. Se o tratado nasceu nulo, as Partes devem eliminar as consequências de qualquer acto baseado na norma contrária ao ius cogens e a reenquadrar as suas relações de acordo com a norma ofendida (n.º 1 do art.71.º), enquanto que, se o tratado nasceu válido e apenas cessou a sua vigência por se ter tornado nulo supervenientemente, as partes deixam de estar obrigadas a executá-lo, após tal ocorrência. E, embora tal invalidade não tenha qualquer implicação em direitos ou obrigações, em geral em qualquer situação jurídica, criados anteriormente em sua execução, ela não se manterá, a partir daí, na medida em que for incompatível com a nova norma de ius cogens (n.º2 do art.71.º da CVDT) .

6.4.Os actos jurídicos unilaterais dos sujeitos do direito internacional público

Esta fonte formal de direito internacional, com similitude em relação aos negócios jurídicos de direito interno, não se encontra prevista no artigo 38.º do Estatuto de TIJ, mas, na medida em que a doutrina maioritária admite a existência de uma norma costumeira geral ou um princípio geral de direito que a consagre, eles são fonte imediata de normação jurídica . Estes actos tanto entram no processo de criação e afirmação de direito costumeiro (v.g. direito do mar), como aparecem como fonte autónoma imediata de direito internacional, produzindo por si mesmos efeitos jurídicos. Caracterizam-se por terem origem num só Estado ou organização internacional, proveniente dos seus órgãos (decisões, «resoluções», “recomendações», acórdãos, «pareceres», etc.), ou num conjunto destes, ao tomarem, através de qualquer meio de expressão, uma posição comum sobre tema de interesse internacional (v.g., promessa de não voltar a efectivar experiências nucleares ).

Impõem-se, informalmente (ou seja, sem exigência de forma escrita), de modo expresso, tácito ou implícito, como manifestações unilaterais de vontade de sujeitos de direito internacional público, com características autonormadoras ou heteronormadoras. Exemplificativamente, podemos encontrar-nos, não apenas face a compromisso de um órgão de soberania de um Estado, de fazer ou deixar de fazer algo no futuro (promessa, a qual faz nascer um direito novo em benefício de terceiros ou da Humanidade como tal), como face uma declaração segundo a qual se considera que uma certa situação está conforme ao direito internacional (reconhecimento: constata-se a existência de factos), ou, ao invés, se afirma que tal situação não o respeita (protesto), uma declaração potestativa extintiva de um direito, com carácter irrevogável (renúncia expressa , que difere da denúncia, porquanto esta tem base convencional e, em geral, depende da aceitação do ou dos outros Estados partes), o acto em que se transmite um certo facto a outros Estados sempre que tal implique efeitos de direito e tenha autonomia jurídica, ou seja não se integre, procedimental e instrumentalmente, no direito convencional, em beba a sua força jurídica (notificação: acto-condição da validade de outros actos), etc. Há casos de actos unilaterais escritos e registados, nos termos do artigo 102.º da Carta da ONU (Declaração egípcia sobre o Canal do Suez, de 24 de Abril de 1957) .

6.5.Os tratados internacionais

6.5.1. A importância actual, noção e regime jurídico aplicável ao tratado O tratado é uma fonte de crescente importância na sociedade internacional, devido a três ordens de razões principais:

a)-por um lado, a dinâmica de interdependência dos Estados e a necessidade de regular rapidamente os diferentes sectores da vida internacional;

b)-a criação de organizações internacionais, cuja existência, organização e poderes são consagrados através dele; e

 c)- o fenómeno da procura de certeza também na ordem jurídica internacional, que tem levado a uma crescente codificação do próprio direito consuetudinário. Em termos de princípios gerais e validade formal dos Tratados, quer segundo as regras do próprio direito internacional, quer segundo as regras constitucionais portuguesas, importa referir sinteticamente o seguinte: O direito geral dos tratados, integrando normas sobre a sua conclusão, interpretação, aplicação, validade e eficácia, está, hoje, consagrado nas duas Convenções de Viena sobre o Direito dos Tratados entre os Estados, de 23.5.1969, e entre as Organizações internacionais ou entre estas e os Estados, de 20.3.1986. Um tratado é um acordo entre Estados ou organizações internacionais (ou seja, entre sujeitos de direito internacional), regido pelo direito internacional, «qualquer que seja a sua denominação particular» (acordo, estatuto, pacto, acto, acta, convenção, protocolo, carta, constituição, etc.: n.º 1 do art. 2 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969). Se tiver a forma escrita, aplicam-se-lhe as normas das Convenções de Viena. Se se tratar de acordos verbais, sejam expressos, tácitos ou implícitos, aplicam-se, apenas, as normas de direito consuetudinário e princípios gerais de direito, que sejam pertinentes.

Ou seja, os tratados são sempre regidos pelo direito internacional, produzindo os pretendidos efeitos jurídicos na vida internacional. Não são tratados internacionais os acordos celebrados entres Estados e pessoas estrangeiras, particulares (contratos, v.g., de investimentos, etc.) ou públicas, tal como não o são os acordos entre entidades territoriais infra-estaduais transfronteiriças, as abrigo de convenções internacionais que os viabilizem (v.g., Convenção Europeia e Convenção Luso-Espanhola sobre cooperação transfronteiriça entre entidades e autoridades locais), como os acordos federados entre si, em que rege o direito constitucional do Estado federal. Já quanto aos acordos entre um Estado Federado e um Estado alheio à Federação, ao abrigo do direito Internacional, cuja possibilidade depende do direito interno do Estado federal, nada no direito internacional o impede, sendo certo que este admite mesmo a personalidade jurídica internacional de entidades não estaduais e de Estados federados (caso da Baviera, no segundo Reich alemão e da Ucrânia e Bielo-Rússia, na federação soviética).

6.5.2.O processo de celebração dos tratados

A)-As regras aplicáveis na fase de celebração dos tratados

Este processo resulta, simultaneamente, de regras do direito internacional, constantes desde logo das CVDT, e dos direitos constitucionais dos Estados, quanto aos órgãos competentes e seus poderes. As fases de «conclusão» normal de um tratado são a negociação, a assinatura (suficiente, em termos de DIP, para vincular os Estados nos tratados em forma simplificada) e a ratificação (nos tratados solenes, dispensada nos acordos em forma simplificada).

B)-O processo e regime especiais de formação das convenções de política social

As convenções de política social, formadas no âmbito da OIT, seguem processo especial, resultando de deliberações por maioria qualificada de dois terços dos membros presentes e votantes na Conferência anual Internacional do Trabalho, assembleia-geral que reúne representantes dos governos e delegações dos patrões e trabalhadores de cada país, sendo posteriormente o projecto assinado apenas pelo presidente da Conferência e pelo Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho e comunicado por este a todos os Estados membros, qualquer que tenha sido a sua votação e mesmo que ausentes, para efeitos da ratificação, que é livre, mas sem qualquer possibilidade de formulação de reservas.

C)- O depósito e a adesão ou acessão nos tratados multilaterais

Nos tratados multilaterais, importa ainda considerar que, em vez da troca de ratificações entre os Estados, temos o depósito da ratificação. E neles, se forem tratados total ou relativamente abertos a outros Estados (v.g., o Tratado da União Europeia apenas é aberto aos Estados europeus), ganham relevo os institutos de adesão , que se traduz numa declaração posterior de vontade de vinculação ao tratado, como forma mais comum de participação no tratado (que não seja fechado aos participantes originários, sujeita à aceitação dos Estados que já são partes no tratado); e as reservas, que são declarações de um Estado, no momento da sua vinculação, da vontade de não cumprir certas obrigações ou sobre o entendimento que atribuirá a certas normas (alínea d) do n.º1 do artigo 2.º CVDT), quando um Estado ou um grupo reduzido de Estados ficou vencido em relação a uma certa norma, mas nem por isso deixe de querer aderir ao tratado no todo restante (técnica de participação parcial no tratado). Nos termos dos artigos 19.º e 23.º da CVDT, o regime de reservas é o seguinte: Exige-se a regra da unanimidade de aceitação das outras partes no tratado, se o número de Estados membros for restrito, mas, nos tratados com grande número de Estados, tal não é necessário, sendo admissíveis as reservas desde que os outros Estados as não considerem incompatíveis com os fins do tratado, opondo-se às mesmas no prazo de doze meses, após a notificação das reservas efectuadas.

O tratado modificado vigorará, apenas, entre os Estados que aceitarem as reservas e o que as formulou, e não em relação aos Estados oponentes que tenham declarado simultaneamente não ficar vinculados à reserva. No que se refere aos tratados de fundação de organizações internacionais (aplicável às organizações supranacionais, em tudo o que não for incompatível com a sua razão de ser para-estadual) cabe aos órgãos delas decidir sobre a sua aceitação ou não e, entretanto, enquanto não estiverem em funcionamento, rege o que o próprio tratado dispuser ou, na sua falta, a regra da unanimidade. Quer em tratados bilaterais, quer em multilaterais, que não admitam reservas, são possíveis declarações interpretativas, visando classificar ou «completar» o sentido a dar a certas normas do tratado, desde que, de qualquer modo, não traduzam pretensões com intenção de não executar essas normas .

D)-A publicidade e o dever de registo dos tratados

Nos termos artigo 102.º da Carta da ONU e 80.º da CVDT, há o dever jurídico de registar os tratados quer as suas Partes sejam membros da ONU ou não, ou seja, em relação a todos os sujeitos de direito internacional. O incumprimento desta obrigação não implica a nulidade dos tratados, mas impede a sua invocação perante os órgãos da ONU, designadamente no TIJ, de Haya.

E)- A fase de negociação

Quanto à negociação, ela encerra os momentos de discussão e redacção do texto com o objectivo de obter um acordo entre as partes. Importa começar por referir que é nulo qualquer acordo (pactum de contrahendo) que obrigue um Estado a celebrar um dado tratado, sendo de considerar que qualquer obrigação constante de tratado nesse sentido apenas traduzirá uma mera obrigação de entrar em negociações (numa lógica de tratados preliminares e tratados complementares ou definitivos).

Em Portugal, cabe ao Ministério dos Negócios Estrangeiros a conclusão das negociações, em nome do governo, a quem compete negociar e ajustar os tratados internacionais (alínea b) do artigo 201.º e do artigo 200.º da CRP), ficando, de qualquer modo, a sua rubrica ou assinatura dependente de autorização do Conselho de Ministros; competência aprobatória, que, no entanto, se encontra tacitamente delegada no Primeiro-Ministro. Ou seja, a negociação, efectivada concretamente por quem, pelas suas funções, se presume autorizado a negociar (alínea b) dos n.º 1 e 2 do artigo 7.º da CVDT) ou por plenipotenciários, com cartas patentes para cada tratado, de onde devem constar plenos poderes para o efeito , com ou sem promessa ou reserva de ratificação (artigo 2.º da CVDT), sem prejuízo de se admitir a figura do «gestor de negócios» .

As Regiões Autónomas têm a faculdade de participar em negociações internacionais em assuntos que também lhes digam respeito, nos termos dos respectivos Estatutos. A negociação tanto pode passar por uma conferência diplomática dos representantes dos Estados, como pode via diplomática ordinária. A aprovação do texto do tratado exige voto unânime de todos os representantes das partes, excepto se tal ocorrer conferência internacional, em que basta a sua aprovação por 2/3 dos Estados presentes e votantes, se antes não tiverem sido fixadas outras regras de votação pelo mesmo número de Estados (artigo 9.º da CVDT). Após a fixação do conteúdo do tratado, redige-se o texto, normalmente precedido de um preâmbulo, justificando e sintetizando o seu objecto, identificando as partes e o local de celebração, que normalmente dá o nome ao tratado.

F)-A fase de assinatura

No que diz respeito à assinatura dos tratados, ela não vincula os Estados, se se tratar de tratados em forma solene, limitando-se a fixar autenticamente o texto saído de acordo formal, e atribuindo o direito à ratificação, dando-lhe a data e o local de celebração, além de que criar o dever de, em boa fé, as partes agirem a partir daí em termos que prejudiquem os fins visados pelo tratado. Mas, tratando-se de um acordo em forma simplificada, o DIP permite a vinculação imediata dos Estados cujos representantes assinem o texto formalmente redigido. Nesta situação, caso os representantes não queiram ou não possam constitucionalmente vincular os seus Estados pela mera assinatura (como acontece em Portugal) a assinatura será feita sob reserva de aceitação. Ou seja, fica sujeita a confirmação posterior da entidade estatal competente para o efeito.

G)-A fase de ratificação

Seguidamente, o texto segue para a fase de ratificação (e troca de instrumentos de onde conste), através da qual um Estado afirma vincular-se a um tratado em forma solene anteriormente assinado. Só no caso de ratificação de um tratado resultar de um compromisso assumido noutro tratado, é que a não promulgação ou o seu adiamento irrazoável significa uma omissão violada do direito internacional, não havendo nos restantes casos abuso de direito pela não ratificação, que é em geral, em si mesma, um acto livre e cuja recusa se pode basear em variados motivos, seja de enquadramento constitucional, seja de mérito. O sistema de ratificação depende do próprio sistema de governo de cada Estado.

Em geral, cabe ao Chefe de Estado a ratificação e emissão da respectiva carta, que é incorporada no instrumento de ratificação, o qual é junto ao texto do tratado. Mas os ordenamentos jurídicos nacionais podem exigir outros actos prévios do procedimento ratificador, fazendo interferir outros órgãos do Estado, em geral (fora dos países onde existe jus representationis omnimodae nas mãos do rei, onde o parlamento apenas votará ou não, posteriormente, as leis da sua execução: Reino Unido e Bélgica), a prévia aprovação parlamentar. Ou seja, a ratificação tanto pode processar-se segundo um modelo de concentração de poderes (caso do sistema do executivo monocrático, como acontece no Reino Unido, como prerrogativa tradicional mantida pelo monarca), como de acordo com um modelo de separação e interdependência de poderes neste âmbito, como acontece no caso português e em quase todos os Estados actuais, quer se trate de sistemas presidencialistas, parlamentaristas ou mistos, de acordo com o disposto nas respectivas Constituições.

H)-O regime de vinculação a tratados internacionais no direito português

Em Portugal, cabe ao Presidente da República o poder de ratificação (alínea b) do art. 138.º da CRP), assim vinculando o Estado. Nas organizações internacionais, quer intergovernamentais quer de natureza supranacional (embora o tratado já não considere estas como organizações internacionais) , o tratado-constituição (ou tratado-fundação) dispõe sobre os poderes da ratificação de tratados por parte dos seus órgãos.

6.5.3.A definição em concreto da classificação dos tratados

No que diz respeito à classificação dos tratados, em tratados de forma solene e acordos em forma simplificada, tal não depende da natureza da matéria em causa, podendo acontecer que as partes, ou certas partes decidam vincular-se, se o seu direito interno o permitir, sob a forma de acordo simplificado, em matéria de especial importância para a sociedade internacional e até contra a exigência de ratificação declarada no próprio texto do tratado (v.g., tratado SALT II, por parte dos EUA, assinado em 1979, face à sua reprovação pelo Senado).

A CVDT não contém nenhuma regra sobre este tema, limitando-se a elencar as várias formas de vinculação dos Estados. É o direito constitucional material dos Estados que define as matérias sujeitas a ratificação ou não, ou que permite aos poderes competentes tomar a opção, pelo que pode haver um tratado que assumiu a forma solene para uns Estados e simplificado para outros.

A Constituição Portuguesa permite que os acordos em forma simplificada (tal como os «acordos por falta de notas») possam tratar matéria reservada da Assembleia da República, embora o Estado português nunca possa vincular-se a eles ou a qualquer tipo de tratado pela mera assinatura e apenas por aprovação parlamentar ou governamental (neste caso, em matérias da competência concorrente, em que o governo possa aprovar tratados), situação em que, estando dispensada a ratificação, no texto do tratado (acordo em forma simplificado), os representantes do Estado português, ao assinar, têm de ressalvar expressamente que só se ficará vinculado após aprovação posterior dos órgãos de soberania competentes (nº 1 do art.12.º da CVDT), sob pena de ficar, não o fazendo, se ficar vinculado internacionalmente (artigo 27.º da CVDT). O acto de ratificação de tratados em forma solene assume a forma de decreto autónomo do Presidente da República (n.º 2 do art.3º da Lei n.º 6/83), sujeito a referenda do governo (artigo 143.º da CRP), a publicar no Diário da República (alínea d) do n.º 1 do artigo 122.º), não tendo a ratificação qualquer efeito retroactivo, sem prejuízo do disposto no artigo 24.º da CVDT. A ratificação está dependente da sua aprovação, por meio de Resolução por parte da Assembleia da República (tratado em forma solene) ou decreto do governo (nas matérias em que não se exige aprovação parlamentar: alínea j) e alínea e) do n.º 1 do artigo 200.º da CRP).

O Presidente da República não é obrigado a ratificar um tratado, podendo, em alternativa, não o ratificar ou, se tiver dúvidas sobre a constitucionalidade de algumas das suas normas, solicitar a sua fiscalização preventiva ao Tribunal Constitucional (alínea g) do artigo 137º, in fine; n.º1 do artigo 278.º).

Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade, o Presidente enviará o texto ao Parlamento que só viabiliza a ratificação se se pronunciar por maioria de 2/3 dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados (n.º 4 do artigo 279.º da CRP). No caso de acordo em forma simplificada, não há ratificação e o Presidente da República limita-se a assinar as Resoluções parlamentares e os Decretos governamentais de aprovação (2.ª parte da alínea b) do artigo 137.º e alínea d) do n.º 1 do art. 200.º), salvo se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela sua inconstitucionalidade (n.º 1 do artigo 279.º). Não há verdadeiro veto político de tratados, embora a sua ratificação seja livre, porque este só se aplica aos actos sujeitos a promulgação (artigo 139.º da CRP). No entanto, é obrigatória a assinatura das Resoluções e Decretos governamentais de aprovação de «acordos internacionais» (acordos em forma simplificada), a menos que, com êxito, seja suscitada a questão da inconstitucionalidade junto do Tribunal Constitucional.

6.5.4.A aplicação dos tratados

No plano territorial, a regra é a de que os tratados produzem efeitos em relação à totalidade do território dos Estados contratantes (artigo 29.º da CVDT), embora possa haver estipulação em termos diferentes.

Há tratados que não se aplicam a todo o território de um Estado que é parte num dado tratado (v.g., o Tratado da União Europeia não é aplicável ao território dinamarquês da Gronelândia, que, em certa altura do processo de integração, quis sair da Comunidade, tendo, neste caso concreto, sido concluído um tratado especifico de «secessão parcial» do território europeu de um Estado membro).

No que se refere ao âmbito subjectivo da sua aplicação (independentemente das situações de oponibilidade erga omnes de certos tratados celebrados entre certos Estados, v.g., no domínio da fixação de fronteiras entre os vizinhos conflituantes), a regra é de inaplicabilidade (ou seja, da não produção de efeitos) em relação a terceiros, que não são partes no tratado (aplica-se a máxima de que res inter alios acta nec nocere nec prodesse potest, concretizando o princípio pacta tertiis nec prosunt nec neocent . No entanto, no plano do direito convencional, nem sempre assim é.

6.5.5.A produção de efeitos em relação a terceiros

Um tratado pode produzir efeitos em relação a terceiros, desde que estes o consintam (artigo 34.º e 35.º da CVDT). Ou seja, nestes casos, os efeitos do disposto no tratado resultam simultaneamente dele e de outro acordo colateral, o estabelecido com os que dele beneficiam ou a ele ficam sujeitos às suas cláusulas.

As formas de consentimento de terceiros têm que ser expressas por escrito, no caso de criação de obrigações a terceiros (artigo 35.º da CVDT), podendo não ser expressa no caso de atribuição de direitos (presunção iuris tantum), admitindo-se posterior prova em contrario.

O acordo colateral, existindo expressa ou tacitamente, porque traduz uma vinculação convencional paralela, cria obrigações extra-tratado entre as partes no tratado e o terceiro, quanto ao seu cumprimento pontual, quer autónomas, quanto à sua não eliminação (revogação ou alteração) futura, a menos que exista novo acordo entre os seus intervenientes nesse sentido (n.º 1 do 37.º da CVDT). Além disso, nada impede que, independentemente da inexistência de acordo expresso de aceitação, uma norma de um tratado passe a obrigar terceiros por força de uma vinculação de raiz consuetudinária, preenchidos que estejam os elementos materiais e psicossociais que a constituam.

6.5.6.A aplicação de tratados sucessivos sobre a mesma matéria

No caso de conflito de obrigações resultantes de outros tratados assinados por membros da ONU, há a prevalência das normas constantes da Carta da Organização das Nações Unidas (artigo 103.º).

Fora destas situações, o regime conciliador de obrigações e deveres resultantes de vários tratados subscritos pelos mesmos Estados, ou seja, dos direitos e obrigações dos Estados assumidos em tratados sucessivos sobre a mesma matéria, é o seguinte (artigo 30.º da CVDT): Se um tratado estabelecer que está subordinado a um tratado anterior ou posterior ou que não deve ser considerado incompatível com esse outro tratado, prevalecem as disposições deste último.

 Fora do que nele assim se disponha, em geral, importa distinguir duas situações distintas: aquelas em que todas as Partes no tratado anterior são também Partes no tratado posterior, sem que o tratado anterior tenha cessado de vigorar ou sem que a sua aplicação tenha sido suspensa (nos termos do artigo 59.º), em que o tratado anterior só se aplica na medida em que as suas disposições sejam compatíveis com as do tratado posterior; e aquelas em que as Partes no tratado anterior não são todas Partes no tratado posterior, situação em que, nas relações entre os Estados Partes nos dois tratados, do mesmo modo, o tratado anterior só se aplica na medida em que as suas disposições sejam compatíveis com as do tratado posterior, e, nas relações entre um Estado Parte em ambos os tratados e um Estado Parte apenas num deles, em que será o tratado no qual os dois Estados são Partes que regerá os seus direitos e obrigações recíprocos (sem prejuízo de acordos que tenham sido estabelecidos para modificar tratados multilaterais somente entre algumas das Partes (artigo 41.º), ou de qualquer questão de cessação da vigência ou de suspensão da aplicação de um tratado (nos termos do artigo 60.º), ou de qualquer questão de responsabilidade que possa nascer para um Estado da conclusão ou da aplicação de um tratado cujas disposições sejam incompatíveis com as obrigações que lhe incumbam relativamente a outro Estado, por força de outro tratado).

6.5.7.A vinculação e entrada vigor dos tratados

Em matéria de entrada em vigor das normas fixadas no tratado, importa distinguir entre normas sobre a vida do tratado e defesa da sua utilidade futura (início, meio e fim, ou seja, sobre o texto, modo de vinculação dos Estados, depósito, vigência, alterações, cessação, etc.) e normas materiais correspondentes aos fins do tratado, cuja aplicação fica em princípio na generalidade dependente da entrada em vigor do próprio tratado.

Questão ligada a esta é a da entrada em vigor para alguns Estados apenas de certas normas enquanto para outros ele se aplicará na totalidade, tema que releva dos próprios termos da possibilidade de vinculação total ou parcial de um dado Estado ao conteúdo de um tratado. Ora, neste aspecto, há que referir que pode haver a possibilidade quer de vinculação apenas a uma parte de um tratado, caso o tratado o permita ou se os outros Estados Contratantes o consentirem, quer de opção entre disposições diferentes, se o tratado permitir escolher entre disposições diferentes, situação em que tal opção só produz efeito se as normas objecto de opção forem claramente indicadas (artigo 17.º). No entanto, o princípio da boa fé negocial, impõe desde logo, uma vez assinado o texto definitivo, isto é, mesmo antes da sua entrada em vigor, que as normas materiais densificadoras do tratado, a entrar posteriormente em vigor, já não possam ser contrariadas por actos dos Estados que lhes retirem no futuro o efeito útil que precisamente visam atingir.

O que está em causa, nesta imposição de abstenção actos contrários, é a obrigação comportamental de não agir em termos que possam privar um tratado do seu objecto e do seu fim antes mesmo da sua entrada em vigor. E, por isso, o direito dos tratados manda que os Estados, enquanto não manifestarem a sua intenção de não se tornar Parte no tratado; se abstenham desses actos, após a assinatura do tratado ou a troca dos instrumentos constitutivos do tratado sob reserva de ratificação, aceitação ou aprovação ou se manifestaram esse consentimento em ficar vinculado pelo tratado, no período que precede a entrada em vigor do tratado, com a condição de esta não ser indevidamente adiada (artigo18.º). Aliás, o tratado pode mesmo ficar sujeito, antes da sua entrada em vigor, na totalidade ou em parte, a aplicação a título provisório, sempre que ele assim o disponha ou os Estados que tenham participado na negociação tenham chegado a acordo para tal.

Essa aplicação relativamente a um Estado cessa se este notificar os outros Estados, entre os quais o tratado é aplicado provisoriamente, da sua intenção de não se tornar Parte no mesmo, a Salvo disposição do tratado ou acordo dos Estados que tenham participado na negociação em contrário menos que haja disposição do tratado ou acordo dos Estados que tenham participado na negociação em sentido diferente (artigo 25.º).

6.5.8.As cláusulas e determinações acessórias

Além da reserva, frequentemente aparecem outras cláusulas nos tratados internacionais sobre o termo (suspensivo, inicial, terminus a quo: vigência ou eficácia deferida para certo momento posterior ao da ratificação ou troca ou depósito desta; e resolutivo, final, terminus ad quem: extinção em certo momento apenas restrita a certas normas, mantendo-se vigente quanto às restantes), condição (suspensiva ou resolutiva, conforme o início ou extinção da produção de efeito dependente de verificação de evento futuro e incerto; com eficácia da condição ex tunc, ou seja com ineficácia desde o início, ou ex nunc, ou seja sem retroactividade referida ao momento da perfeição do tratado, situação mais normal e perfilhável em caso de a sua interpretação não apontar nenhuma solução) e modo (a parte beneficiada em algo num tratado fica onerada com certa obrigação que vem restringir o alcance desse benefício: v.g., cláusula condicional ou onerosa da nação mais favorecida).

6.5.9.A regulação procedimental e instrumental de conclusão dos tratados Quanto às normas procedimentais e instrumentais de conclusão do tratado, nele fixadas, elas tratam da adopção do texto a que se aplicam, a autenticação do texto, a manifestação do consentimento dos Estados em ficarem vinculados pelo tratado, os termos ou a data da sua entrada em vigor, as reservas, as funções do depositário e a outras questões que se suscitam necessariamente antes da entrada em vigor do tratado.

Cabe ao próprio tratado ou aos Estados que tenham participado na negociação por acordo fixar a data e termos da sua entrada em vigor. Caso nada resulte do tratado nem haja acordo fixado, entrará em vigor a partir da manifestação formal do consentimento a ficar vinculado por ele por parte de todos os Estados que tenham participado na negociação. No entanto, em caso manifestação de consentimento já na sua vigência, o tratado relativamente a esse Estado entra em vigor na data em que ocorrer esse acto de vinculação, salvo se o tratado contiver um regime diferente (artigo 24.º).

Quanto aos termos da sua entrada em vigor, pode ser fixado que tal ocorra após a vinculação não de todos mas de um certo número de Estados que fazem ou farão parte do tratado. Por exemplo, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados entrou em vigor no 30.º dia após a data do depósito do 35.º instrumento de ratificação ou de adesão. E, no que se refere aos Estados que, posteriormente à sua entrada em vigor, a ratificam ou a ela aderem, ela entra em vigor no 30.º dia após a data do depósito, feito por esse Estado, do respectivo instrumento de ratificação ou de adesão (artigo 84.º)

6.5.10.A nomeação do depositário e suas obrigações A nomeação do depositário de um tratado é feita no próprio tratado ou por qualquer outro modo por acordo entre os Estados que tenham participado na negociação (artigo 76.º). Pode ser um ou mais Estados, uma organização internacional ou o principal funcionário administrativo de uma tal organização.

Entre outras importantes funções instrumentais, cabe-lhe não só registar o tratado junto do Secretariado da Organização das Nações Unidas, como, desde logo, receber todas as assinaturas do tratado e receber e guardar todos os instrumentos, notificações e comunicações relativos ao tratado e informar as Partes no tratado e os Estados que possam vir a sê-lo dos actos, notificações e comunicações relativos ao tratado e outros Estados que possam vir a ser Partes no tratado da data em que foi recebido ou depositado o número de assinaturas ou de instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão necessário para a entrada em vigor do tratado (artigo 77.º). Nas situações em que ocorram de erros nos textos ou nas cópias autenticadas dos tratados, importa proceder à sua rectificação, situação em que, não havendo decisão diferente sobre tal, o texto rectificado passa a substituir ab initio o texto defeituoso (n.º4 do artigo 79.º da CVDT) .

Após a autenticação do texto, uma vez constatado o erro por comum acordo dos Estados envolvidos e a menos que eles decidam de modo diferente, procede-se à sua rectificação para o que pode recorrer-se, como método mais simples, à correcção do erro no próprio texto do tratado, autenticada pela rubrica dos representantes devidamente credenciados, a menos que se prefira elaborar um instrumento ou troca de instrumentos com a correcção devidamente acordada ou até mesmo um novo texto de todo o tratado já rectificado, solução em que se terá de respeitar o procedimento utilizado para o texto original.

Existindo depositário, cabe a este notificar o erro e a proposta ou propostas da sua rectificação aos Estados signatários e aos Estados Contratantes, fixando-lhes simultaneamente um prazo adequado para a formulação de objecções à rectificação proposta. Em face disto, se não houver objecções, o depositário efectua e rubrica a rectificação do texto, lavrando um auto dessa rectificação, transmitindo cópia dele às Partes no tratado e aos Estados que possam vir à sê-lo. Se houver objecções, o depositário limita-se a comunica-las aos Estados signatários e aos Estados Contratantes (artigo 79.º da CVDT).

 6.5.11.A revisão e modificação dos tratados

A regra geral relativa à revisão dos tratados é a de que ele pode ser revisto desde que haja acordo entre as Partes nesse sentido (artigo 39.º). No que se reporta aos tratados multilaterais, não havendo previsão expressa sobre a matéria, o procedimento supletivo de alteração passa pela efectivação de uma proposta e sua notificação a todos os Estados envolvidos (designadamente os Estados que possam vir a ser Parte no tratado revisto) para se pronunciarem e participarem quer desde logo em termos da própria decisão sobre o seguimento a dar a essa proposta, quer na posterior negociação e eventual conclusão do acordo de revisão, o qual não vinculará os Estados que já eram Partes no tratado e que não aceitem tornar-se Partes nesse acordo (alínea b) do n.º 4 do artigo 30.º). A partir da revisão, qualquer Estado que se venha a tornar Parte num tratado, que foi objecto de revisão já em vigor, deve manifestar se adere ao primitivo tratado ou ao revisto. Caso não se tenha manifestado, passa a ser Parte no tratado revisto no que se refere às partes que o subscreveram e Parte no tratado não revisto, relativamente às Partes no tratado que não estejam vinculadas pelo novo acordo de revisão (artigo 40.º)

6.5.12. A conclusão paralela de acordos referentes a um tratado

Situação diferente da revisão é a da conclusão paralela de acordos para a modificação de tratados multilaterais somente entre duas ou mais Partes. Em certas situações, é possível as mesmas Partes concluírem um acordo que tenha por objecto modificar o tratado somente nas suas relações mútuas. As Partes interessadas devem notificar as outras da sua intenção de concluir o acordo e sobre as modificações que se pretendem integrar no tratado (artigo 41.º). A sua admissão depende de estar previsto no tratado a conclusão de tais acordos parcelares. Mas tal também é possível, mesmo que não esteja o esteja, desde que o tratado não o interdite e tal não prejudique o gozo, pelas outras Partes, dos direitos que lhes advenham do tratado, nem o cumprimento das suas obrigações e não respeite a uma disposição cuja derrogação seja incompatível com a realização efectiva do objecto e do fim do tratado no seu todo.

6.5.13.A extinção, recesso, denúncia e suspensão da aplicação de um tratado

A)-A manutenção de obrigações existentes independentemente de tratado que deixe de vigorar

Antes de mais, importa começar por esclarecer que a nulidade de um tratado e em geral o direito de uma Parte denunciar o tratado, de dele se retirar ou de suspender a sua aplicação, a menos que este disponha ou as Partes acordem em solução diferente, não pode em geral ser exercido senão em relação ao tratado no seu todo.

Mas, quando a invalidade ou os actos de extinção, recesso, renúncia e suspensão resultem da aplicação da Convenção de Viena ou de cláusulas convencionadas no tratado, isso em nada afecta o dever de um Estado de cumprir todas as suas obrigações enunciadas nesse tratado, que, independentemente dele, já devesse dar-lhe cumprimento por lhes estar sujeito por força do direito internacional, mesmo que tal não constasse desse tratado .

De qualquer modo, não é uma regra absoluta que as causas de nulidade ou desencadeantes ou permissivas de cessação da vigência de um tratado, de recesso de uma das Partes ou de suspensão da sua aplicação, reconhecida nos termos da Convenção de Viena, que, dado que regerá todo o tratado, só poderiam, também, em princípio, ser invocadas em relação ao tratado no seu todo, não tenham valor e não possam ter repercussão meramente parcial.

A regra da indivisibilidade cede, não só em caso de violação substancial do tratado (artigo 60.º), como se permite ainda a sua repercussão parcelar, se a causa invocável apenas visar precisamente determinadas cláusulas, situação em que só relativamente a elas pode aliás ser invocada, quer nos casos em que tais cláusulas sejam separáveis do resto do tratado no que respeita à sua execução, quer se resultar do tratado ou for de qualquer modo estabelecido que a aceitação dessas cláusulas não constituiu para a outra Parte ou para as outras Partes no tratado uma base essencial do seu consentimento em ficarem vinculadas pelo tratado no seu todo, e se não for injusto continuar a cumprir-se o que subsiste do tratado.

Nos casos de casos de coação exercida sobre um Estado ou seu representante (artigos 51.º, 52.º e 53.º), nunca é admitida a divisão das normas nele previstas . E, quando se trate dolo ou corrupção para conseguir o consentimento de um Estado (artigos 49.º e 50.º), esse Estado que pode invocá-los relativamente ao tratado no seu todo, vê-se privado de tal possibilidade se a razão de ser da situação anómala apenas permite colocar em causa certas cláusulas (n.º 3 e 4).

B)-As condições da extinção, recesso, denúncia ou suspensão da aplicação de um tratado

 No que concerne à cessação da vigência ou retirada de um tratado, elas podem ocorrer (artigo 54.º) não apenas nos termos nele estabelecidos, estando aí previstas, como em qualquer momento, no caso de haver consentimento posterior de todas as Partes, depois de consultados os outros Estados que consentiram em ficar vinculado pelo tratado, independentemente de este ter entrado ou não em vigor (Estados Contratantes).

No caso de, num tratado multilateral, ocorrer a retirada de alguma ou algumas das partes signatárias, ou seja, a redução do seu número, para que tal implique o fim da vigência desse tratado é necessário que tal tenha sido previsto no próprio tratado, pois a regra consagrada é a de que esse tratado não deixa de vigorar pelo facto de o número das Partes se ter tornado inferior ao número estipulado como necessário para a sua entrada em vigor (artigo 55.º).

Quanto ao regime da extinção, denúncia ou retirada de um tratado, no caso de um tratado não conter disposições sobre elas, ele só podem ser objecto de cessação, denúncia ou de retirada, quando se tenha estabelecido que as Partes admitiram a sua possibilidade ou o direito de o fazer puder ser deduzido da própria natureza do tratado . No que se reporta ao regime da suspensão da sua aplicação, só é possível proceder-se a ela relativamente a todas as Partes ou a uma Parte determinada, se o tratado tiver previsto esta situação ou existir aceitação das Partes nesse sentido, a qual está sujeita a prévia consulta, a fazer aos outros Estados Contratantes (artigo 57.º).

No caso da suspensão da aplicação de um tratado multilateral, nada impede que duas ou mais Partes concluam um acordo, apenas entre si, em ordem a permitir a sua suspensão, a título temporário, da aplicação de certas disposições desse tratado, mesmo que tal possibilidade não brote do texto do tratado, caso essa suspensão não esteja interdita por ele, desde que tal não prejudique o gozo pelas outras Partes dos direitos que lhes advenham do tratado, nem o cumprimento das suas obrigações, e essa suspensão não seja incompatível com o objecto e o fim do tratado . Quer a caducidade e portanto cessação da vigência de um tratado, quer a suspensão da sua vigência podem resultar, também, da conclusão posterior de novo tratado.

Com efeito, ele: a)- cessa quando todas as Partes nesse tratado vierem depois a concluir um novo tratado sobre a mesma matéria e se resultar do tratado posterior (expressamente ou do seu teor tal se puder depreender) ou se estiver, de outro modo, estabelecido que, segundo a intenção das Partes, a matéria deve ser regida pelo novo tratado; tal como, naturalmente, se as disposições do novo tratado forem de tal modo incompatíveis com as do tratado anterior que seja impossível aplicar os dois tratados simultaneamente. b)- suspende-se se isso ficar previsto no tratado posterior ou se estiver, de qualquer modo, estabelecido que tal foi a intenção das Partes .

Também a sua violação pode ser um factor ocasionador da cessação da vigência ou suspensão da aplicação de um tratado, no todo ou em parte. Esta possibilidade é inaplicável às disposições que se reportem à protecção da pessoa humana contidas em tratados de natureza humanitária, tais como as que interditam qualquer forma de represálias sobre as pessoas protegidas por tais tratados (n.º5 do artigo 60.º da CVDT).

 À falta de disposição concreta do tratado, aplicável em caso da sua violação, o regime aplicável é aferido pela existência ou não de uma violação classificável como substancial.

O conceito de violação substancial, se outro não for definido no tratado em relação ao qual a questão se coloque, ocorre sempre que haja a rejeição do tratado, em termos não permitidos segundo o direito internacional, ou simplesmente, a violação de uma específica disposição do tratado desde ela seja essencial para a realização do seu objecto ou fim visado. Se assim for, no caso de tratado bilateral, tal permite à outra Parte invocar essa violação para obter um desses efeitos. No de se tratar de um tratado multilateral, o mesmo tipo de efeitos pode ser desencadeado, quer por todas as outras Partes, agindo de comum acordo, quer nas relações entre elas e o Estado autor da violação, quer entre todas as Partes, quer por aquela Parte que se considere especialmente atingida pela violação, nas relações entre ela e o Estado autor da violação, quer por qualquer outra Parte alheia à violação, no que lhe diga respeito, se esse tratado for de tal natureza que uma violação substancial das suas disposições por uma Parte modifique radicalmente a situação de cada uma das Partes quanto ao cumprimento posterior das suas obrigações emergentes do tratado.

C)-A invalidade em geral dos tratados

a)- Considerações gerais

Vejamos agora, algumas questões específicas levantadas em relação com razões passíveis ou não de provocar a invalidade dos tratados (artigos 42 a 52 e 64.º da CVDT). Esta questão da validade ou não, quer de um tratado em si, quer do consentimento de um Estado em ficar vinculado por ele, não pode ser colocada e, portanto, contestada, em ordem à sua eventual declaração de nulidade e não vigência, senão de acordo com o direito internacional ou seja, das normas da CVDT : Tal como a questão da sua extinção (cessação da sua vigência), denúncia ou retirada (recesso) de uma das Partes e suspensão da sua aplicação só podem ter lugar ou de acordo com disposições constantes do próprio tratado ou, inexistindo, da Convenção de Viena.

b)-A nulidade por violação de normas de direito interno

A circunstância de o consentimento de um Estado ter sido manifestado sem respeito por uma dada norma de fonte nacional, mesmo que de natureza constitucional, relativa à competência para concluir tratados só é causa relevante para viciar no plano internacional o consentimento dado, quando essa violação tiver sido manifesta e se reportar a uma norma de importância fundamental do seu direito interno. Estando em causa uma questão competencial, deve entender-se que a importância dessa norma não depende do seu lugar hierárquico na teoria das fontes de direito, mas do seu lugar na caracterização do sistema de governo do país (v.g., num tratado com implicações em assuntos regionais, em que nas negociações intervém também um membro do respectivo governo autónomo, o consentimento dado por ele ou a assembleia regional da respectiva Região, em vez dos órgãos do Estado).

Com efeito, segundo a CVDT, só se considera que existiu violação manifesta quando ela for objectivamente evidente para qualquer Estado «que proceda, nesse domínio, de acordo com a prática habitual e de boa fé» (artigo 46.º). Também não pode ser invocada como tendo viciado o consentimento manifestado, o facto de o poder de um representante para dar esse consentimento do Estado respectivo, ter sido objecto de uma restrição especial por parte dos órgãos estaduais competentes e ele não a tenha tomado em consideração, inobservando assim essa limitação de poderes, a menos que essa restrição tenha sido notificada aos outros Estados participantes na negociação, com anterioridade à manifestação desse consentimento .

c)-A nulidade por erro Não há qualquer invalidade se estivermos perante um erro que apenas tenha que ver com a redacção do texto de um tratado, que tem solução através de mera rectificação do texto em causa (artigo 79.º). No caso de o erro incidir sobre um facto ou uma situação que constituiu uma base essencial do consentimento desse Estado e que ele supunha existir no momento em que o tratado foi concluído, tal permite-lhe invocar esse erro como causa viciadora do seu consentimento e, portanto, do tratado, excepto se esse Estado também contribuiu para tal erro com sua própria conduta ou se nas circunstâncias concretas ele tinha o dever de se ter apercebido da possibilidade do erro .

d)-A nulidade por conduta fraudulenta de um Estado participante nas negociações (dolo)

O dolo pressupõe que um Estado se tenha decidido a concluir um tratado prestando o respectivo consentimento induzido por uma dada conduta fraudulenta de um outro Estado que participou na negociação. A conduta fraudulenta é algo do género de erro provocado por manobras enganadoras ou seja comportamentos deliberados em contradição com a conduta fraudulenta, do género do erro provocado por manobras enganadoras, em termos de boa fé, isto é, com a confiança mútua que as parte se devem em qualquer negociação. V.g., os Acordos de Munique de 1938, além de concluídos pelo III Reich alemão com coação (tendo, através de graves medidas de intimidação, coagido o velho e doente presidente Hacha a assiná-lo), foram-no também com dolo por parte de Hitler que visava, realmente, como o provaram documentos posteriormente conhecidos, não instituir o clausulado protectorado sobre a Boémia e a Moldávia, mas atingir a anexação da Checoslováquia). Neste caso, pode invocar tal conduta como um dos vício autónomos de consentimento para se desvincular do tratado .

e)-A nulidade devida a actos de corrupção do representante de um Estado

Qualquer Estado pode invocar a viciação do seu consentimento em ficar vinculado por um tratado se a manifestação desse consentimento tiver sido obtida por meio da corrupção do seu representante, quer ela tenha sido efectuada directa ou indirectamente por parte de outro Estado participante nas negociações . De acordo com os trabalhos preparatórios da Comissão de Direito Internacional da ONU, aqui estamos face a uma noção estrita de corrupção a operar, nos termos da CVDT, ou seja, reportada apenas a actos que «pesem fortemente» na manifestação da vontade do representante, o que afasta gestos normais de cortesia ou favores de significado não relevante .

f)-A coacção exercida sobre o representante de um Estado ou sobre um Estado através de ameaça ou do emprego da força

A manifestação do consentimento de um Estado em ficar vinculado por um tratado, obtida por coacção, quer esta seja exercida sobre o seu representante, por meio de actos ou de ameaças dirigidos contra ele, quer pela ameaça ou emprego da força, em violação dos princípios de direito internacional consignados, desde logo, no §2 do artigo 3.º da Carta das Nações Unidas, que interdita, na esteira das limitações iniciadas no Pacto da Sociedade das Nações de 1919 e do anterior pacto Briand-Kelog de 1928, o uso da força nas relações internacionais, é desprovida de qualquer efeito jurídico .

De qualquer modo, a referência à Carta da ONU e seus princípios, se, por um lado salvaguarda todos os tratados celebrados anteriormente, no âmbito do direito internacional clássico, quando o uso da força era lícito, visa, também, naturalmente, continuar a salvaguardar a validade dos novos tratados concluídos em consequência do uso legítimo da força, nos termos aí previstos. Um dos problemas mais complexos colocados pela normação sobre coação tem que ver com os meios de «pressão política e económica» usados na sociedade internacional, conceito demasiado impreciso, cuja integração no conceito de coação, como elemento desencadeador da invalidade dos tratados, criaria mais problemas do que os que resolveria, pela dificuldade de marcar pacificamente a fronteira da ilicitude, apesar dos esforços da chamada «teoria dos tratados desiguais», ela própria sujeita à questão das balizas do aceitável ou não, ou da inaceitabilidade de situações que se traduzam no uso massivo e sistemático de coações não armadas com o objectivo de obrigar à assinatura de um tratado.

De qualquer modo, existe, junto à Acta final da Conferência de Viena de aprovação internacional do texto do «Tratado dos tratados», uma Declaração de condenação solene de toda a coação militar, política ou económica a quando da celebração de tratados.

g)-A nulidade por incompatibilidade com uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens)

Como se referiu quando se analisou o tema referente aos princípios gerais de direito internacional, é nulo umo tratado que seja (no momento da sua conclusão) ou se torne (posteriormente, por virtude do surgimento de uma nova norma imperativa) incompatível com norma de ius cogens, universal ou regional .

D)-Os procedimentos e efeitos da invalidade e da cessação em geral dos tratados

Sem prejuízo dos direitos ou obrigações das Partes que decorram de quaisquer normas em vigor entre elas sobre resolução de diferendos, os princípios procedimentais fundamentais a percorrer são os seguintes (artigos 65.ºa 68.º): A Parte que invocar razões para por em causa a validade de um tratado, seja levar à sua extinção, recesso ou suspensão da sua aplicação, deve notificar a sua pretensão às outras Partes, indicando a medida que se propõe tomar quanto ao tratado e o seu fundamento.

O prazo para as outras Partes objectarem, não havendo razões para se considerar existir especial urgência nisso, deve ser no mínimo de três meses, a contar da recepção da notificação.

Caso nenhuma Parte formule objecções a tal invocação, a Parte que faz a notificação pode tomar a medida que tenha previsto, recorrendo ao respectivo instrumento de declaração formal (artigo 67.º).

Se, pelo contrário, alguma ou algumas das outras Partes tiverem levantado uma objecção, as Partes devem procurar uma solução nos termos previstos na Carta das Nações Unidas para a solução pacífica de controvérsias (artigo 33.º), a qual não conduzindo a resultados, implica a passagem a um procedimento de resolução judicial, de arbitragem e de conciliação. Com efeito, se se trata de um diferendo relativo à aplicação ou à interpretação de normas implicando a supremacia do ius cogens (artigos 53.º e 64.º), as Partes podem decidir de comum acordo submetê-lo à arbitragem ou, não havendo tal acordo, qualquer Parte pode submetê-lo à decisão do Tribunal Internacional de Justiça. Se o diferendo for relativo à aplicação ou à interpretação de qualquer outra norma sobre nulidade, extinção, recesso ou suspensão de tratado, qualquer Parte pode dar início ao procedimento adequado (anexo à Convenção), dirigindo um requerimento nesse sentido ao Secretário-Geral das Nações Unidas.

E)-As consequências da nulidade, da cessação da vigência ou da suspensão da aplicação de um tratado

Em geral, as disposições de um tratado nulo não têm força jurídica, podendo qualquer Parte, se já tiverem sido praticados actos com base num tal tratado, pedir a qualquer outra Parte que restabeleça, tanto quanto possível, nas suas relações mútuas, a situação que existiria se esses actos não tivessem, sido praticados. Em face disto, nos casos em que a questão teve que ver com a viciação do consentimento de um Estado em ficar vinculado por um tratado multilateral, passam a aplicar-se de novo as normas que precedentemente vigoravam nas relações entre esse Estado e as Partes no tratado .

De qualquer modo, os actos praticados de boa fé, antes de a nulidade ter sido invocada, não se tornam ilícitos apenas por força da nulidade do tratado em relação à parte ou partes a que não seja imputável o dolo, o acto de corrupção ou a coacção. O facto de um tratado ter cessado a sua vigência, caso o tratado ou acordo posterior das Partes não disponham de modo diferente, se por um lado liberta as Partes da obrigação de continuarem a cumprir o tratado, por outro não prejudica qualquer direito, obrigação ou situação jurídica das Partes criados pelo cumprimento do tratado, antes da cessação da sua vigência, sendo certo que, nas situações de término de vigência quer por denúncia de um tratado multilateral quer por um Estado se retirar dele, esta disciplina se aplica apenas a partir da data em que essa denúncia ou essa retirada produzem efeitos .

Quanto às consequências da suspensão da aplicação de um tratado, não havendo disposição do tratado ou acordo das Partes definindo a situação concreta, ela implica apenas a não obrigação das Partes entre as quais a aplicação do tratado está suspensa de cumprir o tratado nas suas relações mútuas durante o período da suspensão, mas as Partes, durante esse período de suspensão, devem abster-se de qualquer acto tendente a impedir a reentrada em vigor do tratado , em termos úteis e conformes ao seu objecto e fim.

6.5.14.A cessação parcial da vinculação a um tratado

É possível que, por circunstâncias objectivas ou, de qualquer modo, independentes da vontade das partes, certas normas de um tratado cessem a sua vigência sem prejuízo de outras se poderem manter, quando a sua aplicação puder manter plena aplicabilidade útil, por poder ter vida relacional separada das que não é possível aplicar, num fenómeno de redução de obrigações contratuais internacionais, que chama à colação a temática da divisibilidade ou não das disposições de um tratado, nos termos enquadrados, desde logo, na alínea a) do n.º3 do artigo 44.º da CVDT.

6.5.15.As causas de caducidade dos tratados

Temos quatro factores que determinam ou podem determinar a caducidade dos tratados:

A)-O realinhamento territorial envolvendo uma das partes

Esta causa refere-se, quer ao desaparecimento de um Estado que era parte em tratado bilateral, a menos que haja sucessão nas suas obrigações, transferidas para o Estado em que ele se incorporou (sucessão de Estados), quer à alteração territorial de um dos Estados que, em si, ponha, naturalmente, em causa a manutenção das obrigações especificamente contratadas

B)-A impossibilidade superveniente do seu cumprimento

O direito internacional permite em geral que uma Parte, a quem não seja imputável o facto, possa invocar a impossibilidade de cumprir um tratado como motivo para fazer cessar a sua vigência ou para dele se retirar no caso de essa impossibilidade resultar do desaparecimento ou destruição definitivos de um objecto indispensável ao cumprimento do tratado. No entanto, se essa impossibilidade for de natureza meramente temporária, tal apenas lhe permite a suspensão da aplicação do tratado. Portanto, os factores em causa nem sempre permitem a cessação do tratado por essas razões supervenientes, podendo conduzir ao recesso do tratado ou viabilizar apenas a sua suspensão. Com efeito, no caso da invocação da cláusula rebis sic santibus, havendo razões para a sua invocar, cujo desenrolar deve obedecer ao procedimentos geral conducente à cessação em geral dos tratados (artigos 65.º a 67.º do CVDT), que prevê o controlo pelas outras partes dos motivos alegados e, não havendo acordo sobre a sua razão de ser, o recurso aos meios enunciados no artigo 33.º da Carta da ONU. A parte contratante com legitimidade para dela se aproveitar tanto pode pretender a cessação da vigência do tratado como ou a sua retirada dele, ou apenas a suspender da sua aplicação. Vejamos como se enquadra a cessação, recesso ou suspensão da vigência de um tratado por força da cláusula rebis sic stantibus.

C)-A cláusula rebus sic stantibus

Nos termos da teoria densificadora da denominada cláusula rebis sic stantibus (artigo 61.º CVDT), em causa está a ocorrência de uma alteração radical de circunstâncias com maiores ou menores consequências e relevância no plano do cumprimento das obrigações assumidas no tratado, implicando a reposição da proporção entre essas obrigações. Nos termos do artigo 62.º da CVDT sobre a alteração fundamental das circunstâncias que levaram à celebração de um tratado, ou seja, relativamente às que existiam no momento da conclusão de um tratado, que não fora prevista pelas Partes, só em certos casos justifica a sua invocação como motivo para fazer cessar a vigência de um tratado ou para dele se retirar.

Os casos admitidos pela CVDT dependem de a existência dessas circunstâncias ter constituído uma «base essencial do consentimento» em se vincularem, e de essa alteração ter por efeito a «modificação radical» da natureza das obrigações então assumidas. E uma tal alteração superveniente das circunstâncias, mesmo que fundamental, nunca pode justificar uma cessação da vigência de um tratado ou para uma das partes se retirar dele no caso de um tratado sobre fronteiras, se tal alteração resultar de actuação imputável à parte que dela se prtende aproveitar (de «uma violação, pela Parte que a invoca, de uma obrigação decorrente do tratado ou de qualquer outra obrigação internacional relativa a qualquer outra Parte no tratado»).

Tal como se referiu em geral a propósito da invocação de uma causa de nulidade de um tratado, de cessação da sua vigência, de retirada ou de suspensão da sua aplicação, o direito à invocação da cláusula rebus sic stantibus é uma das situações em que a parte sujeita à alteração das circunstância deixa de estar legitimada para a invocar, quando, já conhecedora dos factos, aceitou expressamente que o tratado continua a poder ser aplicado ou tenha comportamentos de onde se possa concluir que aceitou a permanência em vigor ou em aplicação do tratado.

D)-O desuso revogatório

A queda em desuso, quer se traduza simplesmente numa prática omissiva «revogatória», quer seja acompanhada de uma prática activa de substituição da disciplina constante desse tratado por outra normação costumeira de sentido diferente.

E)-A questão da emergência de uma situação de guerra.

Sobre este tema, a doutrina actual mantém divergências fundamentais, pois enquanto a maioria da doutrina mais recente tende a desprezar o factor guerra na vida dos tratados, a doutrina clássica, que mantém seguidores, segue um caminho diferentes, de qualquer modo, afirmando mais ou menos radicalmente uma interferência do fenómeno, levando à caducidade ou pelo menos à suspensão da vigência do tratado, conforme este seja bilateral ou multilateral. Ou se, a guerra levaria ao termo ou suspensão da vigência dos tratados: caducariam os tratados bilaterais entre os beligerantes, quando eles não prevejam a sua manutenção durante o tempo de guerra, a menos que tenham que ver com situações de definição territorial. E, no que se refere aos tratados multilaterais, suspender-se-ia a sua aplicação entre as partes em conflito, a qual, no entanto, reganharia automaticamente vigor com o fim do conflito. Dos artigos 63.º e 75.º da CVDT parece resultar a consagração, embora não explícita da tese da irrelevância jurídica da abertura de hostilidade nas relações convencionais.

Estes artigos referem-se ao tema nos seguintes termos: a guerra implica a ruptura das relações diplomáticas, mas sem que isso produza efeitos na vida dos tratados entre as partes, não afectando as obrigações contraídas pelo estado agressor em face da Carta da ONU.

6.6.A interpretação das normas de direito internacional

 6.6.1. A teoria geral da interpretação jurídica

A interpretação jurídica é uma actividade necessária para permitir a aplicação das normas às diferentes situações da vida real que pretende regular. Esta necessidade resulta de múltiplos factores, tais como a não definição ou definição incompleta ou equívoca de conceitos jurídicos, muitos dos quais polissémicos ou exigindo conhecimento densificadores; o conteúdo normativo com linguagem flexível com vários sentidos em função designadamente de distintas circunstâncias particulares; contexto, posição na frase ou título da epígrafe, ou contendo princípios ou linhas de orientação geral a integrar segundo a especificidade do caso em aplicação, sem que haja propriamente preceitos claros, pois, (em geral, a menos que se resumam em operações matemáticas, como acontecerá no direito fiscal ou contabilístico), todos oferecem uma dose maior ou menor de imprecisão, sendo aliás certo que, por vezes, o sentido que parece claro pode ir contra a finalidade da instituição jurídica, levar a consequências inaceitáveis ou mesmo afrontar fortemente a equidade ou a justiça.

Desde logo, e em geral podemos dizer que nenhum conceito é totalmente claro, pois, em maior ou menor dose, existe sempre zonas de incerteza ou de indeterminação , o que dificulta a sua aplicação à realidade concreta, e em que, no caso de zonas de incerteza, a liberdade interpretativa-valorativa pode ser maior, e no caso de zonas de indeterminação, se exige uma reconstituição fáctica ou científico-técnica que implica um esforço de acerto concretizador maior por parte do intérprete, pese embora o facto de, na maioria dos casos, se aplicarem a situações dentro de zonas de certeza, seja positiva seja negativa, campo determinados ou facilmente determináveis. Sobretudo na zona de incerteza ou indeterminação, devida à sua grande abertura à integração de elementos factuais não fixados ou valorativos, há sempre riscos de o intérprete se orientar por critérios pessoais, numa postura meramente subjectivista, mas os critérios a usar só podem ser os critérios sociais («a consciência maioritária da sociedade» ) ou outros objectivos, sendo certo que, havendo excesso interpretativo, no limite, a aceitação social, traduzindo um dado consenso, pode ser, nas questões mais difíceis, em regime de poderes estaduais democráticos, de que o poder judicial faz parte, o único indício de racionalidade (colectiva).

Por isso, quanto maior for a margem aberta ao poder interpretativo, maior deve ser a visibilidade da racionalidade e justeza dos seus argumentos, o que impõe uma especial obrigação de pormenorizar a fundamentação lógica argumentativa das suas decisões (dialéctica, na expressão aristotélica, que não visa demonstrações cientificas, mas revelar as controvérsias e justificar o percurso seguido para as ultrapassar). Em qualquer das situações, há sempre a zona restante, ou seja, há também uma maior ou menor zona normativamente determinada, quer normativa quer factualmente, que actua como limite construtivo do intérprete.

A doutrina tem recorrido ao exemplo dos vocábulos noite e dia. Por exemplo, uma norma penal que comine com pena mais grave um crime cometido de noite. O que temos como zonas de incerteza? Depende do país e da época do ano. Mas, se em Portugal, às 4 horas estamos perante uma zona de certeza positiva e às 16 horas perante uma zona de certeza negativa, que o intérprete não pode deixar de registar e concluir em conformidade, agravando ou não a pena, já ao anoitecer e ao amanhecer estamos perante zonas de incerteza. Mas como a sanção é diferente, ao intérprete não resta outro caminho que não seja a estrita obrigação de tentar reconstituir a época do ano, pois ou foi de noite ou não, e procurar constatar quando é que se pode considerar ou não que se torna noite ou se torna dia, sendo embora certo que, por força do princípio que nada tem que ver com a interpretação, o princípio sancionatório in dúbio pro reo, na dúvida insanável, não deverá punir pela pena mais alta, não podendo considerar que era noite, por não poder presumir algo mais penalizante. Em verdade, pode afirmar-se que nunca existe uma interpretação que possa classificar-se estavelmente definitiva e válida para sempre e para todos os casos, cabendo ao aplicador a tarefa de decidir adequadamente da solução correcta para o caso que, em face do texto normativo, lhe pareça a mais racional, razoável e justa.

Se é verdade que a norma lei vem precisamente para evitar e superar os conflitos sociais, acontece que, mesmo com norma, ele existe e, por isso, existem órgãos independentes, que são os tribunais para os resolver, precisamente porque às mãos dos defensores dos diferentes interesses a norma sofre diferentes leituras de sentido conforme as suas «conveniências».

Ou seja, a mesma norma sofre diferentes aplicações designadamente judiciais, precisamente porque dela se fazem diferentes interpretações e, por isso, existem também tribunais de recurso. A interpretação jurídica é uma operação jurídica necessária, efectivada segundo critérios racionais flexíveis, atendendo especialmente ao espírito e finalidade da norma, em si e nos seu contexto normativo, face à realidade social a que visa aplicar-se, através da qual se atribui um dado sentido e significado a vocábulos ou expressões dela constante ou a actos desencadeantes de efeitos jurídicos, que a visem concretizar.

Dito isto, importa começar por referir, com KARL LARENZ, que «Toda a interpretação representa uma articulação entre lex scripta e jus no scriptum, que conforma em primeira mão a verdadeira norma positiva (law in action) , pois, embora a interpretação se processe dentro do quadro da norma a aplicar, ela, como refere JOSEPH ESSER, no seu livro de 1956, «Princípio e Norma no Desenvolvimento do Direito Privado», toda aplicação de uma norma é sempre uma interpretação criadora do direito, que «nunca é mero trabalho de subsunção» . Assim, porque não há aplicação de uma norma sem a sua interpretação, esta apesar de em si não poder ser definida como a operação criadora da norma aplicada, de facto ultrapassa por definição a sua mera aplicação automática. Há três grandes etapas existenciais do direito: criação, interpretação e aplicação aos casos concretos e individuais, das quais a mais rica e decisiva é seguramente a interpretação porque, ela faz a ligação entre a norma criada e o caso a que se aplica, assim participando simultaneamente, completando, a obra criadora e, antecipando, conformando plenamente e, portanto, condicionando a tarefa aplicadora. Este aspecto criativo da «norma» efectivamente aplicada vai par além da mera procura e descoberta de sentido da norma, pois que é a interpretação que oferece o sentido objectivado na norma, dado que, em geral, entendida com uma textura aberta, a sua interpretação vai mesmo para além do encontro com sentido querido pelo seu criador, pois é a interpretação que lhe atribui sentido com que viverá na vida social. As duas perspectivas orientadoras da interpretação, em função dos seus objectivos, são de natureza estática (teoria subjectiva, voluntas legislatoris, valorizando a descoberta do sentido querido pelo autor da norma) ou dinâmica (teoria objectiva, segundo a voluntas legis, valorizando a procura do sentido com autonomia e independência da vontade do legislador) .

A sua tipologia desdobra-se em interpretação doutrinal, externa ao autor da norma, feita pelos juristas, designadamente pelos doutores de direito, com função crítica e de orientação para os operadores jurídicos, ao abordar os estudos teóricos sobre as normas e os problemas por elas levantados. A interpretação jurisprudencial é a efectivada pelos juízes, motivadora das sentenças proferidas pelos tribunais, em ordem a alcançar-se a decisão justa e equitativa face à singularidade do conflito sub judice. E a interpretação oficial, dita «autêntica», de carácter geral e abstracto (se se reportar a uma norma), feita por parte do autor da norma, designadamente pelo legislador no caso de normal legal, que, como erradamente a designa a doutrina em geral, apenas é «autêntica» na perspectiva do seu autor e porque é oriunda do titular do poder de a criar, alterar ou extinguir, neste caso de a «recriar», a qual, segundo o CCV (n.º1 do artigo 13.º), ao integrar-se na norma interpretada tem efeitos retroactivos, aplicando-se a factos verificados entes da sua entrada em vigor, ressalvados os direitos já definitivamente fixados por convenção dos interessados ou sentença (os efeitos já produzidos pelo cumprimento de obrigações, sentença transitada em julgado, transacção judicial, e actos de natureza análoga).

No entanto, apesar da sua retroactividade, como norma nova, não se pode aceitar, no caso da sua aplicação por Administrações públicas, que estas a pretendam aplicar sem mais e em todas as situações à interpretação de factos ocorridos anteriormente à sua vigência, em relação aos quais as expectativas criadas, pela norma original ou modo anterior de a interpretar, que, se tal ofender o princípio da igualdade e dada a confiança gerada nessa interpretação diferente, corrente na altura, tal se processe sem o dever de indemnizar. E esta interpretação, porque mera recriação posterior de uma norma, fica sujeita de novo, como novo texto com um mesmo contexto no ordenamento jurídico, a tarefa interpretativa normal, e só com esta inultrapassável intermediação doutrinal será aplicada à realidade, como interpretação vigente, e portanto a única autêntica, por parte dos tribunais, dado que o legislador ou a Administração regulamentadora não poderão nunca, em Estado democrático, com separação de poderes, ser os julgadores, confiscando a função jurisdicional .

Toda a actividade interpretativa que não assuma a forma da norma (ou acto administrativo) original, isto é que não seja oficial e sob a devida forma de emissão normativa em face da matéria (lei de valor reforçado, reserva de lei, etc.) e das competências normativas, não obriga em geral os operadores jurídicos, mesmo os judiciais, ou seja não constitui precedente obrigatório, e, de qualquer modo, para ser legítima está sujeita a certas regras. Diz o artigo 9º (interpretação da lei) do Código Civil português que «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º1), acrescentando que «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º2) e que «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º3) Vejamos como fazer uma interpretação racional, ou seja, como interpretar a norma e enquadrar esta temática, cientificamente, isto é, dentro de limites racionais.

A)- Começamos por enunciar as premissas de onde importa partir:

a)- Quanto à realidade textual (suporte normativo):

A norma deve ser tomada como um enunciado válido por si, e portanto, autónomo do seu criador e do tempo da sua elaboração (pelo menos, quando vigore já distante dele), portadora de um sentido objectivo, que cabe ao intérprete descobrir, tendo presente as circunstâncias históricas e teleológicas concretas.

b)- Quanto às realidades extratextuais:

O acto hermenêutico tem natureza simultaneamente reprodutiva e criadora, com a intromissão se aspectos subjectivos e valorativos, ligados ao intérprete, às condições específicas e aos valores dominantes do tempo em que a norma é aplicada.

B)- E sendo assim, então a racionalidade impede:

a)- interpretações absurdas;

b)- interpretações fora de uma norma concreta: o substrato normativo existente condiciona relativamente, no ponto de partida e no ponto de chegada, a interpretação, que tem de se processar dentro de limitações jurídico-normativas mínimas, que ligadas não só ao conteúdo da norma em si, como ao seu contexto: colocação, epígrafe, interacção com outras normas, etc.; a interpretação, sob pretexto de dever ser historicamente situada, ou seja evolutiva, não deve fazer tábua rasa do significado primitivo da norma, isto é, por mais que se justifique uma densificação diferente de sentido, há limites colocados ao intérprete, que, para permitir a realização da justiça, no futuro, terão de obrigar o legislador a voltar a legislar sobre a matéria, o que a interpretação actualizante lhe dispensa de fazer a todo o momento, o que seria funcionalmente impossível, mas apenas relativamente, pois sempre pode chegar o momento é que o substrato normativo fica totalmente desadequado à realidade histórica, já não tendo a mínima virtualidade de poder responde às exigências de justiça e dos outros valores que o direito deve satisfazer. Se o legislador não pode pretender eliminar a tarefa da interpretação das suas normas, transformando o aplicador em autómato, o aplicador também não pode transformar-se no recriador sem limites da norma a aplicar, pois a partir de certa altura então já seria um usurpador da função que cabe ao legislador.

c)- A procura do significado primitivo da norma, ponto de partida de qualquer interpretação («reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo»), não limita («não deve cingir-se à letra da lei») a integração consequente de elementos históricos do presente (a realidade do tempo em que é aplicada) e teleológicos da norma (o seu espírito e finalidade)

d)-O substrato normativo (letra) deve adequar-se ao significado da norma (espírito), articulando o texto com as circunstâncias particulares do caso ema preço, o que pode exigir acomodações na leitura dos textos: ou seja, uma interpretação extensiva (amplificando, adaptando o texto ao significado mais amplo que resulta da norma) ou uma interpretação restritiva (diminuindo o texto com uma maior concretização, redutora do seu conteúdo aparente).

e)- a interpretação concreta da norma aplicar a cada caso concreto implica a «arte» de saber encontrar a interpretação mais razoável, fazendo a conjugação harmónica dos diferentes critérios interpretativos, para obter a solução mais justa do conflito em apreço, que, na prática, resultando do labor individual do aplicador, será sempre a que ele pessoalmente considere a mais adequada à realização dos valores e usos da sociedade actual.

6.6.2.A teoria da interpretação no direito internacional

Também no direito internacional, a interpretação de uma norma se faz segundo métodos que visam determinar o sentido com que ela deve ser correctamente aplicada aos casos concretos da vida social. A CVDT enquadra a temática da interpretação dos tratados nos seus artigos 31.º a 33.º.

A maior polémica surge à volta da interpretação das normas convencionais. As regras normalmente apontadas prendem-se com a procura da vontade real das partes, a boa fé (que impõe, desde logo, uma interpretação que exclua a fraude (n.º 1 do artigo 31.º da CVDT), que exige o respeito do seu efeito útil e coerente, devendo por isso afastar-se as soluções que privem o tratado de efeito prático. Os métodos tradicionais são o literal, sistemático, teleológico (interpretação indispensável à prossecução de fins do tratado), histórico e actualista, tendo presente a prática dos intervenientes na sociedade internacional e as mudanças de condições sociais em que assentaram os dispositivos dos tratados .

Antes de mais, há que referir que, no que diz respeito ao texto em si, quando ele esteja autenticado em duas ou mais línguas e se constate, por comum acordo, que os diferentes textos contêm uma falta de concordância, deve a mesma ser rectificada (n.º3 do artigo 79.º da CVDT). As regras da CVDT partem do critério literal, situando-o num contexto de sistema normativo; afere-o pelo elemento teleológico e adapta-o face à prática posterior à criação do tratado, sem prejuízo de valor orientador de partida, sobretudo nos primeiros tempos de vida do tratado, do elemento histórico. Ou seja, parte objectivamente da letra do tratado e interpreta-a tendo presente a vontade histórica original (trabalhos preparatórios, embora com valor residual) das partes e a vontade aplicativa posterior, devendo, de qualquer modo, considerar-se como decisiva a vontade das partes (n.º 4 do artigo 31.º da CVDT), «lido» sobretudo segundo o «costume» aplicativo (alínea a) e b) do n.º3 do artigo 31.º da CVDT). Não pode deixar de destacar, ainda, no caso do Tratado da União Europeia, a primazia da interpretação teleológica, sem o que a União Europeia teria ficado pelo caminho ou não teria atingido o estádio de desenvolvimento integrativo actual. Em conclusão, também, no caso dos tratados, a regra geral da sua interpretação (artigo 31.º da CVDT), assenta num complexo metodológico, integrando os critérios literal, sistemático, teleológico e actualista.

Com efeito, «Um tratado deve ser interpretado de boa fé, de acordo com o sentido comum (um vocábulo só poderá será entendido num sentido particular, específico, se estiver estabelecido que tal foi a intenção das Partes»: n.º4)) a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respectivos objecto e fim: n.º1).

No que se refere ao elemento literal, quando a comparação dos textos autênticos evidencie uma diferença de sentido que a aplicação dos artigos 31.º e 32.º da CVDT não permita superar, adoptar-se-á o sentido que melhor concilie esses textos, tendo em conta o objecto e o fim do tratado (n.º 4 do artigo 33.º da CVDT), salvo o caso em que um determinado texto prevalece por previsão do próprio tratado ou acordo dos contraentes (n.º 1 do artigo 33.º da CVDT). O contexto retira-se do conjunto de textos que o integram e envolvem: texto, preâmbulo, anexos, acordos relativo ao tratado celebrado entre todas as Partes aquando da conclusão do tratado, instrumentos estabelecido por uma ou mais Partes aquando da conclusão do tratado desde que aceite pelas outras Partes (n.º2).

A perspectiva actualista joga simultaneamente com esta a sistemático, a retirar do contexto global, implicando a sua releitura permanente tendo presente acordos posteriores entre as Partes sobre a sua interpretação e aplicação, práticas seguidas posteriormente na sua aplicação pela qual se estabeleça o acordo das Partes sobre essa interpretação e não descurando a envolvente ordenacional constituída por qualquer norma pertinente de direito internacional aplicável às relações entre as Partes.

Tudo isto sem prejuízo de, como meio complementar de interpretação, ou seja em ordem a se poder confirmar o sentido resultante da aplicação da complexa regra geral, se poder ainda recorrer ao elemento histórico, designadamente aos trabalhos preparatórios e às circunstâncias em que ele foi concluído: Especial interesse pode ter este elemento em situações em que a regra geral não tenha permitido ultrapassar um dado sentido ambíguo ou obscuro ou tenha conduzido a um resultado manifestamente absurdo ou incoerente (artigo 32.º).

6.7.A doutrina e a jurisprudência

Segundo a tese maioritária quer a doutrina quer a jurisprudência não seriam fontes de produção de direito (fontes iuris essendi), mas meios auxiliares de determinação do direito, como aparece expresso no artigo 38.º do ETIJ, numa clara tentativa da sua caracterização, redigida pelos Estados precisamente com a preocupação de se reservarem, seja pela via das suas práticas interestaduais (costume), seja da criação convencional (tratado), a criação das regras que regem a sociedade internacional.

Ou seja, serviriam para provar a sua existência, revelar o direito (meras fontes iuris cognoscendi), mas não para criar regras de direito. A doutrina é constituída pelas posições de especialistas, sejam publicações sejam pareceres (consulta jurídica), oriundos quer de professores de direito internacional, quer de organismos nacionais ou internacionais, sejam através de pronúncias individuais na preparação de textos ou em conferências internacionais, seja através da formulação de opiniões sobre temas variados relacionados com a validade e interpretação de normas ou a aplicação concreta do direito internacional, sem que as mesmas comprometam os seus autores (mesmo que sejam entidades públicas), independentemente dessas posições, no seu cumprimento. A jurisprudência é constituída pelo conjunto de decisões jurisdicionais, quer resultem dos tribunais permanentes quer de árbitros, sejam eles nacionais ou estrangeiros na aplicação de normas, provocados pelas partes em conflito a propósito de casos concretos. No entanto, um sector da doutrina, mais pluralista, mesmo que minoritário, que se tem debruçado sobre a teoria das fontes, admite que, sobretudo, a jurisprudência, quer interna, quer internacional, assume características reais de verdadeira fonte de produção de direito.

6.8.A equidade

A equidade apesar do disposto no artigo 38.º do ETIJ, não é fonte de direito internacional, tendo aqui, tal como no direito internos dos Estados, a mesma função, que segundo a teoria geral, «não é senão a aplicação directa da ‘razão natural’ a um litígio, prescindindo do direito positivo, já para suprir as suas deficiências, já para o melhorar» .

A equidade, apesar de, portanto, não se compreender a sua integração no elenco das fontes, pois ela não é fonte de factos normativos, mas apenas um modo de decisão meramente casuística, de decisão jurisdicional ex aequo et bono, ou seja, um recurso, admissível em certas situações, para resolver os casos individuais e concretos), tem um importante papel complementar ou subsidiário (equidade praeter normam , atenuador ou correctivo da aplicação do direito (equidade secundum normam) ou mesmo substitutivo do direito estritamente vigente (afastando a sua aplicação, pelo que poderemos apelidá-la de equidade contra normam), neste caso se as partes admitirem expressamente a sua aplicação com preterição das normas vigentes. Ela torna-se importante neste ramo do direito, face ao carácter das suas normas, mais dispersas e imprecisas, por vezes não apenas no plano dos conteúdos mas mesmo da sua existência e «da sua «maior proximidade do direito natural» .

 

II LIÇÃO SOBRE AS FONTES DE DIREITO COMUNITÁRIO

1.CONSIDEAÇÕES GERAIS SOBRE A TEORIA DAS FONTES DO DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU

Sobre a matéria das fontes de direito comunitário, sendo o Estado português um Estado unionista europeu, sujeito à nomogénese comunitária, porque «aberto» ao processo da unificação europeia , matéria que as revisões constitucionais procuraram enquadrar nos n.º 6 do artigo 7.º e n.º 3 e 4 do artigo 8.º, e tendo presente a importância quantitativa e qualitativa, tanto em domínios substantivos como procedimentais e jurisdicionais, do direito oriundo das Instituições da União, é de interesse ministrar conceitos basilares sobre o tema , matéria a que passamos a referir-nos.

Com efeito, Portugal é membro da União Europeia, encontrando-se as suas autoridades administrativas obrigadas a aplicar o direito comunitário. Por isso, além da afirmação inicial da existência do primado do direito comunitário, designadamente dos princípios de direito administrativo geral e procedimental comunitário sobre qualquer norma de direito interno, importa tecer algumas considerações gerais sobre a nomologia comunitária. Começamos pois por nos referir ao sistema jurídico das Comunidades Europeias. Uma ordem jurídica é o conjunto organizado e estruturado de normas jurídicas, dotado de órgãos e procedimentos, aptos a criar e interpretar as suas próprias fontes e, sendo necessário, a fazê-las aplicar e a sancionar as suas violações.

Ora, as Comunidades têm uma ordem jurídica. E a ordem jurídica comunitária, conforme afirmou o Acórdão M. Flamino Costa contra ENEL, de 15 de Julho de 1964 235ª , existe porquanto o direito comunitário é uma ordem jurídica própria, integrada no sistema jurídico dos Estados membros (a característica mais original da ordem jurídica comunitária) .

Os tratados comunitários não se limitam a criar obrigações recíprocas entre os diferentes sujeitos de direito a que se aplica. Estes estabelecem «uma ordem jurídica» nova, que regula os poderes, direitos e obrigações desses sujeitos, assim como os procedimentos necessários para fazer constatar e sancionar qualquer eventual violação. O Tratado da Comunidade Europeia, apesar de concluído sob a forma de acordo internacional, não deixa de ser a carta constitucional de uma Comunidade de Direito. É o mais avançado tratado-fundação existente.

Os tratados comunitários criaram uma nova ordem jurídica, em benefício da qual os Estados limitam cada vez mais os seus direitos soberanos, e cujos sujeitos são não só os Estados mas também os seus residentes. E as características essenciais desta ordem jurídica são sobretudo a sua primazia em relação aos direitos estaduais e o efeito directo de toda uma série de disposições aplicáveis aos Estados e aos seus residentes, o que coloca a teoria da sua nomogénese como questão fundamental do estudo sobre os métodos da sua aplicação na ordem interna e da sua relação com a Constituição, designadamente em termos de debate sobre a aferição da constitucionalidade das normas constantes das suas várias fontes.

E quanto às fontes do direito comunitário, começa-se por referir que o direito comunitário não indica as suas fontes através de uma lista à maneira do artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça. O regime das fontes (catálogo e hierarquia) resulta dos tratados, da prática das Instituições, da prática dos Estados, e, sobretudo, da sistematização feita pelo Tribunal das Comunidades .

2. O DIREITO COMUNITÁRIO ORIGINÁRIO

Quanto ao direito comunitário originário ou primário, temos tido, por razões históricas, uma multiplicidade de tratados comunitários. Com efeito, o direito comunitário primário ou originário tem sido constituído pelos tratados institucionais comunitários (três, um dos quais já expirou na sua vigência temporal, o da CECA, procurando-se hoje, com o projecto constitucional europeu, a unificação de todas as matérias num só texto), mas que foram modificados por muitos instrumentos convencionais posteriores. Integram-no todas as normas dos tratados originais e as de posteriores que as modificaram. Os tratados comunitários, embora integrados no chapéu do Tratado da UE, mantêm a sua autonomia.

 O Tratado de Bruxelas de 1965 sobre a fusão dos executivos manteve as Instituições exercendo poderes no quadro das diferentes Comunidades, deixando no artigo 32.º para data indeterminada a unificação dos tratados, o que coloca problemas no âmbito das relações mútuas entre os vários actos convencionais, ou seja, entre os tratados, que se regem pelo disposto no artigo 232.º do Tratado da Comunidade Europeia (seguem as regras do direito internacional público): o tratado geral não modificava as normas do Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, nem derroga o Tratado da Comunidade Europeia da Energia Atómica, porque são tratados especiais, pelo que as regras específicas da CECA não se aplicavam no quadro da Comunidade Europeia, mas as normas do tratado geral e do direito derivado da Comunidade Europeia aplicam-se nas lacunas dos tratados especiais, sem necessidade de acto específico ou de outra interpretação ou declaração interpretativa (Acórdão de 15.12.87, Deutsche Babcock).

 O Tribunal da Comunidades procurou a harmonização, interpretando as disposições de um tratado à luz dos outros como tratados especiais, que são interpretados sistematicamente à luz do Tratado da Comunidade Europeia. Quanto ao conteúdo dos tratados, temos 4 categorias de cláusulas, estruturando os tratados. Podemos distinguir o preâmbulo e as disposições iniciais, que contêm os objectivos sócio-económicos próprios das Comunidades, princípios de carácter geral e as acções a prosseguir pelas instituições. São disposições sem aplicação directa, embora não sejam só declarações de intenção, bastando recordar que o princípio do efeito directo é confirmado pelo Tribunal das Comunidades a partir do Preâmbulo do Tratado da Comunidade Europeia , parte do Tratado aliás com papel fundamental na explicitação de competências potenciais das Comunidades36.

O Tratado não estabelece a hierarquia no interior dos objectivos fundamentais, todos tendo um carácter igualmente imperativo, apesar de isso implicar problemas de conciliação. E há as cláusulas materiais que definem o regime económico e social, criando, numa visão técnico-jurídica, tratados com a natureza de tratados-leis (tratados especializados da CECA e EURATOM) e de tratado-quadro (Comunidade Europeia).

O Tratado da Comunidade Europeia contém claúsulas materiais que se limitam geralmente a formular objectivos e princípios a cumprir, deixando às instituições a tarefa de legislar, e no Tratado EURATOM, a maior parte das vezes, as instituições têm competências mais operacionais do que normativas. Quanto à natureza e efeitos das disposições materiais dos Tratados, há disposições de aplicação directa e outras sujeitas a medidas prévias de desenvolvimento por parte quer dos Estados quer das Instituições . Quanto à autoridade dos Tratados, há que destacar a sua proeminência.

O direito originário está no topo da hierarquia da ordem jurídica comunitária, prevalecendo sobre qualquer outra norma de direito comunitário sem excepção, sendo o fundamento, o quadro e os limites do direito derivado e dos tratados saídos das relações exteriores, no fundo em sistema de parametricidade agindo segundo o modelo de aferição de «constitucionalidade». No caso dos tratados internacionais concluídos pela Comunidade, há a fiscalização preventiva pelo Tribunal das Comunidades Europeias dos textos a aprovar, com exigência de revisão formal do tratado, em caso de parecer negativo .

O direito originário prevalece sobre outros Tratados entre os Estados membros, mesmo anteriores, os quais só mantêm valor quando compatíveis. Prevalece sobre Tratados concluídos entre Estados membros com terceiros Estados posteriormente à entrada em vigor. De acordo com o direito internacional público, o direito originário só cederia perante Tratados concluídos anteriormente por Estados membros , na medida em que os Estados não podem invocar o Direito Comunitário para deixar de cumprir as obrigações internacionais anteriores. Mas as obrigações comunitárias implicam que os Estados membros se devam desligar-se desses acordos que se revelam contrários ou que se tornem supervenientemente desconformes. E não podem usufruir contra a Comunidade dos direitos usufruíveis por força de Convenções anteriores .

3. O DIREITO COMUNITÁRIO DERIVADO

O direito comunitário derivado não é direito convencional, mas direito legiferado. Resulta e traduz a institucionalização da capacidade de criar regras de direito, confiada a certos órgãos, segundo procedimento pré-estabelecido. É um direito derivado de um poder normativo. O Tribunal da União Euroepia fala de um sistema legislativo do Tratado42 , e de um poder legislativo da Comunidade (Acórdão de 9.3.78, Simmenthal)43. As fontes de direito típicas (nomenclatura oficial:189.º do TCE), são os Regulamentos da Comunidade Europeia (correspondem às decisões gerais da CECA), as Directivas (correspondem às recomendações) e as Decisões (às decisões individuais). No entanto, a natureza do acto não depende da sua denominação, mas do seu objecto e conteúdo.

O Tribunal das Comunidades reserva-se o direito de proceder à sua requalificação44. Por isso, a recomendação ou o parecer podem ter carácter vinculativo, conforme o Tribunal da CE já declarou em várias situações. O Regulamento é a principal fonte do direito derivado, por onde se exprime, sobretudo, o poder legislativo das Comunidades, conferindo-lhe o artigo 189.º do Tratado da Comunidade Europeia uma eficácia comparável à de lei no sistema nacional. As suas características são as seguintes: o Regulamento tem alcance geral, de carácter essencialmente normativo, aplicável a categorias visadas abstractamente e no seu conjunto e não a destinatários limitados, designados e identificáveis (Acórdão do Tribuanl da Comunidade Europeia, de 14.12.62).

Corresponde à Decisão no Tratado da CECA que também estabelece princípios normativos, condições abstractas aplicáveis com consequências jurídicas decorrentes (Acórdão do Tribunal da CE, de 21.6.58). Tem um carácter normativo «erga omnes». O Regulamento é obrigatório em todos os seus elementos, impedindo a aplicação incompleta aos Estados. Traduz o poder normativo completo das Comunidades, porque não só prescreve o resultado, como acontece com as Directivas, mas as próprias modalidades de aplicação e de execução julgadas oportunas. Embora possam existir regulamentos incompletos, que reenviem, explicitamente ou implicitamente, para as autoridades nacionais ou comunitários a tomada de medidas de aplicação ou de execução. O Regulamento é directamente aplicável em todos os Estados (única fonte de direito que é directamente aplicável, nos termos expressos do Tratado).

Produz, por si, automaticamente, efeitos jurídicos na ordem jurídica interna dos Estados, sem interposição das autoridades nacionais45. Dirige-se directamente aos sujeitos, seus destinatários, criando por si direitos e obrigações aos particulares. Tem efeitos imediatos, porque são aptos a confiar aos particulares direitos que as jurisdições nacionais têm de proteger obrigatoriamente.

Tem eficácia em todos os Estados, pois um Regulamento não pode reger a situação específica dum determinado Estado, com exclusão dos outros, porque tem de entrar em vigor e aplicar-se simultânea e uniformemente no conjunto das Comunidades. Quanto à Directiva, definida na alínea 3 do artigo189º, trata-se de um método de legislação em duas etapas (como técnica de lei-quadro) completada por diplomas de aplicação). É um instrumento de uniformização jurídica, assente na divisão de tarefas e na colaboração clara entre o nível comunitário e o nível nacional. Pode não ter alcance geral, obrigando só os Estados, dirigindo-se a Estado(s) ou empresas, pois pode não ser dirigida a todos os Estados. Tendo alcance geral (artigos 99.º e 100.º do Tratado da CE), deve ser executada e portanto adquirir efeito normativo simultaneamente no conjunto dos Estados.

Então, é um processo legislativo indirecto (Acórdão de 22.2.84, Kloppenburg). Há uma total liberdade na escolha do acto jurídico de transposição (lei, decreto, despacho, circular e designação entidades competentes e dos meios, conforme a finalidade). Neste plano da intensidade normativa das Directivas, a margem de escolha deixada aos Estados (forma, meios) depende do resultado pretendido pela Comissão ou Conselho. Em princípio, não é directamente aplicável, havendo no final do articulado um artigo a fixar o prazo de transposição. Portanto, não tem efeitos obrigatórios por ela, mas não deixa de ter efeitos jurídicos, designadamente para os particulares, na medida em que o Estado não pode exigir o seu cumprimento nem pode criar regras desconformes com as suas orientações enquanto não a transcreve, e pode ainda adquirir efeito directo, ou seja, tornar-se invocável pelos destinatários dos seus objectivos, após o decurso do prazo de transposição, em relação a normas passíveis de execução, por serem claras, precisas e incondicionais. A Decisão obriga em todos os seus elementos os destinatários indicados, mas não tem alcance geral (obriga um Estado, uma empresa ou um indivíduo).

Normalmente, aplica o direito dos tratados a um caso particular (acto administrativo comunitário), como instrumento de execução administrativa do direito comunitário. Mas também pode ser instrumento legislativo indirecto, quando prescreve a um Estado ou a um conjunto de Estados um objectivo que passa pela criação de medidas nacionais de alcance geral. Pode ser muito detalhada e prescrever os meios para atingir o resultado imposto, deixando aos Estados apenas a Consequentemente, tem efeito direito, quando o destinatário é um particular porque modifica por si a situação jurídica. Mas essa modificação da situação jurídica do particular só ocorre com a transposição estadual quando o destinatário é um Estado, embora com efeitos internos directos também, se inaplicada, tal como Directivas. Na primeira situação há aplicação directa, na segunda há efeito direito possível.

Quanto às Recomendações e aos Pareceres, não têm em princípio força obrigatória, enquanto instrumentos típicos de intervenção comunitário, porquanto não aparecem expressamente referidas no Tratado como fonte de direito. A Recomendação é um convite para a adopção de regras de conduta, como fonte indirecta de uniformização legislativa, mas sem a obrigatoriedade das Directivas.

O Parecer é uma opinião, servindo de instrumento de orientação dos comportamentos e da legislação. No entanto, v.g., no Acórdão Grimaldi, de 13.12.89, o Tribunal da Comunidade atribuiu a estes actos efeito jurídico, obrigando os Estados a considerá-los, quando clarificam a interpretação das disposições nacionais para plena execução ou visam completar disposições de direito comunitário com carácter obrigatório, em que correspondem à Decisão. No que se refere ao regime de edição do direito derivado, o sistema legislativo comunitário implica o respeito do princípio do uso previsto dos actos comunitários.

Em termos de atribuições das Comunidades e da UE em geral, vigora o princípio da competência de atribuição, pelo que as instituições, Conselho, Comissão, Parlamento Europeu e Banco Central Europeu (artigo 108.º do Tratado da CE) não têm um poder normativo geral. A competência nacional é a regra e a competência comunitária é a excepção49. Há actos comunitários fora da nomenclatura, ou seja, não previstos no artigo 189.º, mas previstos nos Tratados. São os actos atípicos, usados com os nomes referidos no artigo 189.º, mas sem a natureza nem os efeitos típicos dos actos do artigo 189.º. E não são submetidos ao mesmo regime de edição.

Ou seja, também se designam como Regulamentos os regulamentos internos das instituições, regimentos, que assim são partes integrantes do direito orgânico das Comunidades; sem alcance geral, obrigando só as instituições, mas com importância porque têm alcance externo, contendo, v.g., regras sobre delegação de poderes que condicionam a validade dos actos.

Há Directivas, Recomendações e Pareceres que são actos dirigidos a outra Instituição comunitária sem efeitos jurídicos fora das relações interinstitucionais. Exprimem o exercício de funções de certos órgãos consultivos (pareceres) ou directivas de orientação das negociações da Comissão com Estados terceiros, após a recomendação da Comissão em comunicação ao Conselho de Ministros, para ser autorizada a abrir negociações.

Ou Decisões sui generis, sem destinatários e sem sujeição a regras de notificação do artigo 191.º. Estas Decisões estão na hierarquia máxima do direito derivado, acima dos regulamentos de base. São utilizadas pelo Conselho de Ministros para exercer poderes de revisão dos tratados, autonomamente, modificando disposições institucionais. As Decisões podem ser emitidas ao abrigo do artigo 235.º do Tratado da CE (disposições mais genéricas que específicas) ou dos artigos 105.º e 145.º (modalidade de estabelecimento de programas económicos de médio termo ou fundados sobre os tratados)50. Podem ainda ser Decisões orgânicas de criação organismos subsidiários, de criação de estatutos, de nomeações. Isto é, de alcance interno ou orgânico. Toma também a forma de Decisão a obrigação de os Estados-Membros cobrarem e verterem os recursos próprios da Comunidade. E as Decisões do Presidente do Parlamento Europeu sobre a aprovação do orçamento e as Decisões da conclusão de Tratados (acordos externos) no processo de comprometimento internacional (sem ser o acto vinculante). Há, ainda, os Actos das instituições, não previstos pelos Tratados (actos extra-convencionais).

E temos os Actos nascidos da prática comum: resoluções, deliberações, conclusões, declaração, comunicações, cuja adopção começou por ser criticada pelo Parlamento Europeu, pelos riscos de falseamento dos mecanismos comunitários; mas a jurisprudência aceitou-os, sob reserva de não poderem derrogar os tratados constitutivos e reconheceu a alguns carácter obrigatório. Na prática do Conselho de Ministros51, temos também Programas com princípios fundamentais de acção, v.g., os referentes à política ambiental comunitária, com prazos de desenvolvimento, que são declarações de intenção, expressão da vontade política, documentos preparatórios de futuros actos obrigatórios52. De qualquer modo, alguns destes Actos são obrigatórios. Quando independentemente da denominação formal, o seu conteúdo mostra que o Conselho de Ministros teve a intenção de se vincular, tomando disposições visando produzir efeitos de direito53.

E há as Declarações que acompanham a adopção de um acto típico (visando condicioná-lo) do Conselho de Ministros, da Comissão e dos Estados membros54. Na prática da Comissão, temos as Comunicações, de alcance geral, em matérias onde só há poder de decisão casuística. Vêm fixar orientações ao exercício futuro do poder discricionário. Ou os simples pareceres de carácter geral (com alcance jurídico indirecto, porque responsabiliza a Comunidade a segui-los, em face do princípio da confiança legítima dos administrados nas declarações da própria Administração55.

A prática passa ainda por declarações comuns a várias instituições, com compromissos recíprocos de seguir um dado procedimento ou a respeitar certos princípios de fundo57, que podem implicar obrigações jurídicas, quando contêm obrigações precisas e incondicionais para as instituições58. O que importa reter, em geral em relação a actos comunitários, é que juridicidade está ligada à vontade manifestada de os aplicar. Também são importantes as regras sobre as formas dos actos e a sua vigência.

Quanto às formas, os regulamentos internos do Conselho de Ministros e da Comissão dispõem que o acto comunitário deve ser precedido da indicação dos dispositivos que legitimam a sua criação, os vistos respeitantes a propostas, pareceres e consultas recolhidas, a motivação do acto. Quanto à entrada em vigor, impõe-se a sua publicidade prévia à execução.

O acto só é oponível depois da possibilidade de se tomar conhecimento dele. Há a obrigação de publicação dos Regulamentos da CE e da EURATOM, regulamento, directiva e decisões em co-decisão, directiva do Conselho de Ministros e Comissão dirigidas a todos os Estados-Membros (e das decisões e recomendações gerais CECA). E as disposições de aplicação de um acto não publicado só entram em vigor após a publicação do texto principal60. Em termos de características, o direito comunitário não é um direito exterior às ordens jurídicas nacionais, mas um direito próprio de cada um dos Estados membros, na medida em que é aplicável nos seus territórios nos mesmos termos que os direitos nacionais e colocado no topo da hierarquia das normas aplicáveis em cada um dos Estados, porque o direito comunitário adquire automaticamente o estatuto de direito positivo na ordem interna dos Estados (princípio de aplicação imediata).

O direito comunitário pode criar por si mesmo direitos e obrigações para os particulares (princípio da aplicabilidade directa). O direito comunitário aplica-se nas ordens jurídicas nacionais, mesmo que conflitue com as normas de criação interna de qualquer natureza (princípio da primazia)61.

O que impele à sua consideração como direito supraconstitucional (independentemente das normas constitucionais sobre a regulação do tema, ou mesmo da sua inexistência, e da divisão doutrinal dos autores sobre o modo de enquadrar a aplicação da regra da sua supremacia, pelo menos, suspensão da vigência das normas que o contradigam) ou, não se aceitando tal, e impelindo-se assim à obrigação sistemática de uma revisão constitucional prévia à sua adopção (embora sem real autonomia da vontade nacional, só formalmente soberana, do parlamento estadual, obrigado a ir a reboque da vontade comunitária, em que a vontade nacional dos representantes governamentais ou dos parlamentares europeus se impõe), sempre que haja desconformidade de preceitos.

Quanto às fontes não escritas do direito comunitário, temos o Costume62 e a Jurisprudência, que tem um lugar importante. O direito jurisprudencial é importante devido ao carácter geral, impreciso e incompleto das regras dos Tratados, à rigidez do direito primário, rigidez procedimento revisão, inércia do direito derivado por bloqueamentos Conselho de Ministros, aptidão do Tribunal Comunitário de criar direito, devido a igualdade institucional com o Conselho de Ministros e a Comissão e à sua capacidade operacional em face do monopólio da interpretação autêntica (art.º177 do Tratado da CE).

A missão normativa do Tribunal Comunitário afirma-se no devido ao uso de métodos interpretativos dinâmicos e no recurso generalizado aos princípios gerais de direito63. Da noção de Comunidade e da de política comum resulta o princípio do paralelismo de competências internas e externas da Comunidade para contratar com Estados terceiros: o carácter exclusivo das competências externas comunitárias, após as competências internas da Comunidade, começarem a ser exercidas, em face do princípio da preempção. E temos, ainda, os princípios gerais de direito. Em termos de natureza, são regras não escritas, que o juiz, constatando existirem, compatibiliza e aplica, integrando na ordem jurídica comunitária, a partir dos diferentes sistemas jurídicos, designadamente dos Estados membros. Há três categorias de princípios: os princípios gerais de direito (princípios comuns ao conjunto dos sistemas jurídicos nacionais e internacional, que dão resposta a exigências supremas de direito e da consciência colectiva, v.g., o do carácter contraditório do processo judicial65, ou princípio geral da segurança jurídica, com conteúdo operativo mais difícil de identificar; os princípios de direito internacional público, só aplicáveis a título excepcional, v.g. matéria de tratados contraditórios, dado que normalmente são incompatíveis com a estrutura e as exigências do sistema comunitário (pois a noção de Comunidade impede que os Estados façam justiça por si mesmos ou se desobriguem, invocando o princípio de direito internacional da reciprocidade, em face da inexecução de obrigações que lhes incumbam, por incumprimento por parte do outro Estado, etc.); e os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados membros, que traduzem um património jurídico comum, o ponto de convergência do conjunto dos sistemas nacionais ou uma corrente dominante, mas também pode ser minoritária68, quando os outros Estados não têm disposição significativa na matéria69. No que diz respeito às fontes complementares do direito comunitário, temos o direito resultante de Acordos entre os Estados membros, nos domínios de competência nacional «reservada», situando-se no desenvolvimento dos objectivos definidos pelos tratados, ou seja, direito que ainda é direito comunitário em sentido amplo, porque apesar do regime inter-estadual têm relações com a ordem jurídica comunitária.

E, assim, temos as Convenções Comunitárias, as Decisões e Acordos convencionados pelos representantes dos governos dos Estados membros reunidos no seio do Conselho de Ministros em conferência diplomática e as Declarações, resoluções e tomadas de posição relativas às Comunidades, adoptadas por comum acordo dos Estados membros.

4.OS OUTROS ACTOS JURÍDICOS QUE VINCULAM A COMUNIDADE

Há, ainda, outros actos jurídicos que vinculam a Comunidade. Há ainda a considerar o direito resultante dos compromissos externos das Comunidades. Trata-se de acordos celebrados no quadro das competências externas, que obrigam internacionalmente (pela simples conclusão internacional). Integram-se na ordem jurídica comunitária, e, portanto, dos Estados membros, tendo aplicação interna com a mera publicação.

E a integração na ordem jurídica comunitária processa-se desde a entrada em vigor (com informação no JOCE). Há, depois, os actos unilaterais dos órgãos criados por certos Acordos externos (sejam tratados da UE sejam mistos), com poder decisional adequado, verdadeiro direito derivado dessas organizações. Refiro-me a órgãos de gestão com poderes para adoptar actos obrigatórios unilaterais (sem necessidade de ratificação ou aprovação)73. São fontes de direito comunitário74 as Decisões de órgãos criados por acordos externos ou de organização internacional em que a Comunidade se integre fazem parte integrante do Direito Comunitário desde que produzam efeitos jurídicos sobre a Comunidade, adquirindo força obrigatória segundo o direito internacional, mesmo que a Comunidade não os transponha para regulamentos, como é habitual e mesmo que não os publique autonomamente.

E os tratados concluídos por Estados membros com Estados terceiros, em que a Comunidade não foi parte, vinculam-na quando esta dever considerar-se «substituída» pelos Estados, comprometidos em tratados multilaterais anteriores a 195875. Quanto aos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais, em vez de considerar a Comunidade vinculada à Convenção Europeia como fonte formal da legalidade comunitária, o TUE limitou-se a considerar CEDH como fonte inspiração indirecta, junto com catálogos constituições nacionais, pela via dos princípios gerais de direito. E quanto às Convenções Internacionais concluídas pelos Estados depois da entrada em vigor do Tratado da CEE, em domínios de competência residual ou transitória, v.g., no domínio do trabalho, a Organização Internacional do Trabalho, ou no quadro Conselho da Europa? É uma questão não resolvida pelo Tribunal das Comunidades Europeias. A resposta parece dever ser no sentido da sua não integração automática na ordem jurídica comunitária, ou seja, enquanto não haja a sua aceitação (declaração de aceitação).

5. A HIERARQUIA ENTRE NORMAS VIGENTES NA ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA

No plano da hierarquia entre normas vigentes na ordem jurídica comunitária, começo por referir que quanto à hierarquia do direito convencional obrigando a Comunidade, a doutrina a considera como inferior ao direito comunitário primário, mas superior ao direito comunitário derivado (GUY ISAAC, 1996).

Quanto ao princípio da primazia do direito convencional complementar sobre o direito derivado, ele assegura o seu respeito em via contenciosa ou prejudicial e em relação aos actos comunitários anteriores ou posteriores, independentemente da forma da conclusão do tratado internacional. Quanto direito primário orgânico e procedimental, que fixa normas atributivas de competências externas e regras de procedimento no seu exercício, há nulidade dos Acordos internacionais se faltarem atribuição à Comunidade na matéria e pode haver a invalidade no plano interno por falta de procedimento, mesmo que seja válido internacionalmente à face da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Quanto direito primário material, a sua violação pode ser evitada pelo controlo preventivo do Tribunal da CE, segundo o procedimento organizado nos termos do artigo 288.º do Tratado da CE.

No que diz respeito às fontes complementares do direito comunitário, em relação ao direito originário, elas são fontes de igual valor convencional, sem relação de subordinação. As finalidades do direito complementar exige uma relação de compatibilidade, e uma interpretação não prejudicial do direito comunitário, presumindo-se que os Estados não derrogaram o Tratado da União Europeia77.

Quanto às relações entre o direito complementar e o direito comunitário derivado, importa distinguir entre as matérias da competência comunitária exclusiva, situação em que a regulação convencional pelos Estados traduz violação do tratado, por incursão dos Estados membros nas atribuições transferidas.

Quanto às matérias da competência concorrente, especialmente no âmbito do artigo 235.º do Tratado da CE, impera o princípio da prioridade do direito derivado78. E nas matérias de competência nacional exclusiva, só pode haver actos comunitários com fundamento e para execução de actos de direito complementar, subordinados a estes.

 

III APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA INTRODUÇÃO

Os mecanismos de incorporação das normas internacionais nos direitos internos diferem no direito comparado. E, em geral, as relações estabelecidas entre eles são relações de influência2 e relações de sistema. São as relações sistémicas que constituem o objecto desta análise.

Estas relações processam-se tanto no plano doutrinário, como ao nível da intervenção prática das coordenações dos diferentes direitos internos com o direito internacional que, ora segue uma orientação que repudia à priori qualquer enquadramento, ora o pressupõe. De qualquer modo, há alguns princípios basilares interrelacionais que se impõem. Quanto à aplicação do Direito Internacional Público, isto é, neste domínio da inter-relação entre as ordens jurídicas, a regra geral do direito internacional é que um Estado não pode invocar uma norma ou uma lacuna do seu direito interno como defesa perante uma reivindicação assente no direito internacional2a . Quanto às soluções de aplicação do direito internacional, ou seja, no domínio dos mecanismos de interiorização das normas internacionais nos direitos estaduais, as Constituições da maior parte dos Estados democráticos atribuem aos Parlamentos e aos Governos um papel próprio no processo de aprovação dos Tratados, ou transformando os textos negociados num acto legislativo interno, ou dando-lhes vigência directa, pelo que os Tratados passam a produzir simultaneamente efeitos quer em direito interno quer em direito internacional3.

Quanto à Constituição Portuguesa, no seu artigo 8.º, determina-se que «as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português» (n.º 1º), do mesmo modo que «as normas constantes de convenções internacionais (...) vigoram na ordem interna» (n.º2)4. Os autores têm se dividido em torno do problema de saber se a Constituição consagra um princípio de recepção automática plena ou um princípio de recepção semiplena do direito internacional convencional. Tal como se têm dividido sobre o lugar que o direito internacional público ocupa na hierarquia das fontes de direito, retirando a maioria da doutrina do art.º 8 e da técnica da sua incorporação, conjugada com o sistema de sindicabilidade da constitucionalidade das normas, um princípio de supremacia legal do direito internacional público, configurado como tendo um valor geral de natureza infra-constitucional. Será este o enquadramento defensável? Mesmo em relação ao direito internacional público consuetudinário e convencional geral, designadamente às normas de ius cogens? E que excepções à crise aplicativa de normas convencionais inconstitucionais são admissíveis no direito interno português?5

A aplicação do Direito Internacional na ordem jurídica estadual, além da questão da técnica de interiorização, levanta a da hierarquia das normas derivada do modelo relacional vigente, e, no plano da referência à Constituição da República Portuguesa (CRP), -não se configurando, ou nos casos de não configuração do direito internacional público, como normação supra-constitucional levanta duas questões fundamentais em termos teóricos e operativos, com respostas distintas: uma, a da desconformidade de uma norma do direito internacional público com a Constituição e outra, a da desconformidade de uma norma infraconstitucional com uma norma do direito internacional público5a . Quid Juris?

No primeiro caso, há inconstitucionalidade, segundo a letra do que vem disposto na Lei Fundamental portuguesa, mesmo que em certas situações se mande dar-lhe irrelevância. E, no segundo, há, para uns, ilegalidade, pelo desvalor da ofensa a uma norma do direito internacional público, cuja vigência é imposta pela Constituição, de valor supra-legal, mas sem valor constitucional, ou, para outros, inconstitucionalidade indirecta, a defender-se que há a consagração constitucional do princípio do primado do direito internacional público sobre o direito interno infraconstitucional (e porque, ao desrespeitar-se a norma do direito internacional público, indirectamente se desrespeita a Constituição).

Tudo isto nos leva à problemática da fiscalização da constitucionalidade e da ilegalidade das normas e do enquadramento quer dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade quer da manutenção dos efeitos das normas criadas em desconformidade com a Constituição, dado o regime especial (concebido para, em certas situações, se obrigar os tribunais, quer no controlo difuso, quer no concentrado, em sede de Tribunal Constitucional, a manter a eficácia de normas inconstitucionais de tratados), constante do n.º 2 do artigo 277.º, que irá merecer aprofundada análise da nossa parte, após, por um lado, a apresentação das regras nomológicas essenciais do direito internacional e do direito comunitário e, por outro, o desenvolvimento do regime geral do controlo da constitucionalidade, designadamente com referência às regras que tocam aspectos directos da sua aplicação às normas do direito internacional público ou às normas de direito interno em face do direito internacional público. Em causa está a articulação entre o direito internacional e o direito português. Mas não só, pois em face da participação de Portugal no processo de integração europeia, impõe-se desenvolver o tema sem perder de vista as próprias relações entre o direito internacional e o direito comunitário, e entre o direito comunitário e o direito português.

No fundo, frequentemente, estarão presentes, na análise relacional, o direito internacional, o direito comunitário e o direito português, medido num plano nomológico integral, em termos de fontes, hierarquias e dirimição de conflitualidades aplicativas, surgidas das suas regulações assentes em poderes distintos. A primeira questão inicialmente apontada, coloca o problema da fiscalização da inconstitucionalidade da ou de certas das normas do direito internacional público de natureza infraconstitucional, dos efeitos disso, seu exacto balizamento pela jurisprudência e das excepções constitucionais à inaplicação das normas do direito internacional público tidas por inconstitucionais.

A segunda questão coloca várias problemáticas à volta da técnica de incorporação e da consequência da afirmação ou não do princípio da primazia do direito internacional público, e das inconstitucionalidades ou ilegalidade das normas anti-direito internacional público e seus efeitos. Tudo matéria que não mereceu tratamento geral na nossa doutrina. Nem mesmo em aspectos isolados importantes, na doutrina e na jurisprudência constitucional recentes, pelo que nos reportaremos, quando necessário, às posições que foram sendo tomadas ao longo dos tempos, no período de vigência da actual Constituição, expondo os nossos pontos de vista a propósito das questões que forem sendo tratadas, sem prejuízo da sua agregação sintética na conclusão final.

Começaremos por nos referir à problemática da nomologia supranacional e à da técnica de incorporação e da hierarquia das fontes de direito. E trataremos a seguir quer a questão da ilegalidade das normas internas desrespeitadoras do direito internacional público, quer a da inconstitucionalidade deste e do seu sistema de controlo e relevância, tendo essencialmente presente nesta matéria, embora não só, os fundamentais artigos 8.º e 277.º da Constituição Portuguesa.

 1.A nomologia internacional

1.1. Considerações Gerais

O artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça dispõe que «O Tribunal, cuja função é decidir, de acordo com o Direito Internacional, as questões que lhe sejam submetidas, deverá aplicar: a) as convenções internacionais sejam elas gerais ou particulares, que estabelecem regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b) o costume internacional, como testemunho de uma prática geralmente aceite como Direito; c) os princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas; d) «as decisões judiciais e a doutrina dos publicistas mais altamente qualificados das várias nações, como meio subsidiário para a determinação das regras de direito». Esta enumeração não esgota todas as fontes, devendo referir-se desde logo as decisões unilaterais, criadores de obrigações internacionais. E não caracteriza, de modo exacto, o papel da doutrina e da jurisprudência (sem prejuízo de, de facto, se constatar a introdução de direito inovador pela via das decisões judiciais do Tribunal Internacional de Justiça), as quais em geral têm uma função ao nível da comprovação das normas de direito costumeiro. Nem traduz uma ordenação hierárquica dentro do próprio ordenamento jurídico internacional. Além disso, por um lado, o costume6 e os tratados7, pese embora a importância crescente destes8, têm uma posição jurídica em princípio equivalente, impondo-se a norma mais recente, criada segundo as regras próprias da sua elaboração nos termos do Direito Internacional, designadamente do direito consuetudinário e da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT). Por outro, os princípios gerais têm uma grande importância, sendo certo aliás que grande parte deles, os básicos, são ius cogens, e especialmente as normas referentes aos Direitos do Homem, dado o disposto no artigo 53.º daquela CVDT, que dispõe o seguinte: «É nulo todo o tratado que, no momento da sua celebração, entre em conflito com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para efeito da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional de Estados no seu conjunto como norma que não admite qualquer derrogação».

1.2.A incorporação dos tratados e o procedimento de vinculação internacional

1.2.1.A vigência do Direito Internacional Público na ordem jurídica interna

Independentemente das várias designações usadas na vida internacional no domínio dos tratados9, as expressões equivalem-se, designando os vários vocábulos tanto o tratado celebrado em forma solene como os acordos em forma simplificada. As diferenças, com interesse procedimental, residem aqui, quer no plano dos actos e momento da vinculatividade internacional quer dos actos e órgãos com responsabilidade vinculadora interna. Em Portugal, exige-se, quanto aos tratados em forma solene, para que devam vigorar, por força da cláusula de recepção plena prevista no nº 2 do artigo 8º, a ratificação do Chefe do Estado. Quanto aos acordos em forma simplificada, que são tratados que vinculam o Estado português na sociedade internacional pela simples aprovação do Governo, isto é, passa por esta aprovação para que eles vigorem também na ordem jurídica interna.

Embora no caso de matérias de reserva parlamentar, a aprovação deva ser do Parlamento, sem prejuízo de as outras também o poderem ser. A final, o Presidente da República tem a palavra definitiva. Dito isto tudo, o procedimento parece simples. No entanto, muitas questões se levantam neste plano competencial, quer do país, quer dos órgãos de soberania do país. O tema impõe que nos debrucemos sobre ele, sendo certo que a revisão constitucional de 1997 trouxe alterações no seu enquadramento.

Aliás, a análise do procedimento de vinculação internacional do Estado português, merece algumas considerações especiais, dado tratar se de um domínio cuja conformação actual tem sido fortemente influenciada pela participação de Portugal nas Comunidades Europeias e na União Europeia Desde logo, começo por destacar o facto de ser uma matéria em que a parcimónia da regulamentação constitucional e legal tem consentido uma grande margem de liberdade à actuação governamental e diplomática.

Estamos perante a necessidade de criar uma regulamentação nacional unitária. Esta necessidade resulta, antes de mais, da natureza jurídica controvertida dos regimentos e das resoluções dos órgãos de soberania. Por um lado, ao nível interno, tendo em consideração as dificuldades na qualificação jurídica do vício de desconformidade com a norma do regimento ou da resolução que seja violada. E, por outro lado, ao nível internacional, em face da impossibilidade de ser invocado o artigo 46.º da CVDT de 1969. É imposta, além disso, pelo facto de a regulamentação, constante dos diplomas em causa, nem sempre ser reciprocamente coerente e a alteração da estrutura básica a nível constitucional nem sempre ser acompanhada das alterações adequadas ao nível infraconstitucional.

E, finalmente, por a prática governamental nem sempre ser consonante com a regulamentação do procedimento de vinculação em vigor no âmbito do Direito Internacional10. É uma matéria que aparece com contornos em certos aspectos indefinidos em termos legais e doutrinais, dada a sua relativa complexidade, dispersão normativa e diluição normadora, e uma dada «invisibilidade», tanto ao nível prático11, como ao nível teórico, numa perspectiva circunscrita ao fenómeno jurídico, fruto de frequentes questionamentos, por, desde logo, incidir numa matéria de confluência de normas de vários ordenamentos jurídicos e de pluralidade de instituições, criadas e enquadradas nos direitos interno, comunitário e internacional. Acontece que a questão do procedimento de vinculação internacional do Estado português não tem suscitado um grande interesse às doutrinas jusinternacionalista e jusconstitucionalista portuguesa, nomeadamente no que se relaciona com as alterações provocadas pela participação de Portugal na União Europeia12.

 1.2.2.O enquadramento do procedimento de vinculação internacional e comunitário europeu

A)-Os pressupostos essências de enquadramento e especificidades do direito comunitário originário

A matéria do procedimento de vinculação internacional do Estado português e das consequências da participação de Portugal na União Europeia nessa matéria, leva-nos a considerações no âmbito do procedimento propriamente dito, e no âmbito do procedimento de vinculação internacional, para sublinhar a complexidade e as particularidades da definição do «treaty making power».

Num primeiro nível, há que destacar as questões relacionadas com dois pressupostos de enquadramento essenciais, em termos da factualidade integrativa europeia e das suas amplas consequências. Da factualidade unionista, porque a transforma numa matéria disciplinada não só pelos direitos interno e internacional, como também pelo direito da União Europeia, o que em si mesmo sempre implicaria especificidades, que resultam desta complexificação para o procedimento de vinculação internacional do Estado português. Mas, além disso, a participação de Portugal na União Europeia assume, em geral, uma importância determinante nesta matéria, nomeadamente tendo em consideração os reflexos externos, não só da transferência evolutiva de poderes do Estado13, como em geral do princípio da solidariedade comunitária. Estamos perante uma questão dependente de normas de origens jurídicas diversas, o que determina que se inicie o seu estudo pelo esclarecimento destes pressupostos do seu enquadramento.

Vejamos, então, a problemática derivada da composição procedimental das várias fontes de direito implicadas.

B)-A confluência das normas do Direito interno, do Direito Internacional e do Direito da União Europeia

O procedimento de vinculação internacional dos Estados é normalmente o resultado da conjugação de normas do seu Direito interno com normas de Direito Internacional de aplicação geral, nomeadamente das normas do direito dos tratados. No caso do Estado português, em termos idênticos aos restantes Estados participantes na União Europeia, acrescem as normas provenientes deste ordenamento jurídico. Por um lado, nesta matéria, há que conjugar normas de Direito Internacional Público e de direito interno, devendo sinteticamente dizer-se que cabe ao direito internacional fornecer a estrutura básica do procedimento de vinculação internacional, É essencial, neste domínio, o direito consuetudinário codificado e o direito convencional existente sobre a matéria na Parte II da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (CVDT).

Integrando os artigos 6.º a 25.º, trata sucessivamente da conclusão dos tratados na secção I, das reservas na secção II e da entrada em vigor dos tratados e da sua aplicação a título provisório na secção III. O Direito interno dos Estados completa esta estrutura básica dada pelo Direito Internacional. É assim, nomeadamente, que ao nível do ordenamento jurídico de cada Estado estão indicados os órgãos com competência para actuar em cada uma das fases do procedimento de vinculação internacional e os termos em que será feita a publicitação interna das vinculações internacionais que tenham sido assumidas. A assunção de uma vinculação internacional é uma actividade jurídica que implica a aplicação de, pelo menos, normas de dois ordenamentos jurídicos, o de natureza interna e as normas de Direito Internacional, devendo entender-se que, no caso de existir um conflito entre estas normas, o Direito Internacional goza de prevalência, dado que nos termos do artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, um Estado «não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar a não execução de um tratado».

Acontece que, relativamente aos Estados participantes na União Europeia, a conclusão de tratados, deixou de ser uma actividade politicamente livre e apenas enquadrada pelo Direito Internacional Público e pelo direito interno, para passar a contar com a complexificação resultante da aceitação pelos Estados de um estatuto genérico de capacidade internacional limitada, o qual os obriga, não apenas a inibirem-se no exercício do «ius tractuum», como, nesse exercício, a actuarem de forma coordenada ou conjunta com as Comunidades ou com a União Europeia. Hoje, a conclusão de tratados é uma actuação em que os Estados-membros só se podem vincular individualmente se tiverem capacidade para o fazer, ou seja, se não se estiver em presença de uma matéria de natureza unionista. O que exige, em muitos casos, uma interligação entre as normas do ordenamento jurídico interno e do ordenamento jurídico comunitário e a existência de dois procedimentos distintos ao nível dos Estados. Um que cria um procedimento relativamente às matérias em que os Estados podem actuar de forma isolada e outro que se impõe quando a actuação dos Estados passou a estar condicionada pela existência de uma actividade comunitária com relevância externa. Posto isto, a questão fundamental é a determinação das matérias incluídas no âmbito da União Europeia e relativamente às quais a actuação dos Estados deixou de ser autónoma14. Dito isto, somos levados à apreciação dos termos em que a participação nas Comunidades e na União Europeia implicou modificações na capacidade de vinculação internacional do Estado português.

C)-A capacidade nacional em termos de ius tractuum e sua delimitação O Estado português, ao aceitar um estatuto genérico de capacidade internacional limitada, obrigou-se a actuar de forma coordenada ou conjunta com as Comunidades em muitas das áreas que integram a sua actuação externa. O que significa que a vinculação convencional deixou de ser uma actividade livre, para passar a ser uma actuação em que o Estado português só se pode vincular individualmente se não o pretender fazer numa matéria de relevância comunitária, melhor dito, não actuar em matéria de atribuições exclusivas da União ou em domínios em que funcionou o princípio da preempção. Neste plano do poder convencional estadual, torna-se imprescindível delimitar, de uma forma precisa, as áreas concretas em que pode ter lugar uma actuação no âmbito da União Europeia, ligada à participação de Portugal nas Comunidades e na União Europeia. A participação de um Estado nas Comunidades e na União Europeia é estruturante relativamente aos domínios em que este tem liberdade de vinculação internacional. Há que referir que a limitação não apresenta a mesma intensidade em todos os domínios de acção da União Europeia, sendo por isso, distintas as situações em que se pode traduzir essa limitação à capacidade de vinculação internacional. Podemos considerar cinco situações diferentes quanto à limitação da capacidade de vinculação internacional dos Estados15 16, em função das partes intervenientes, só podendo a densificação dessas situações ter como referencial os diversos tipos de limites à capacidade de vinculação internacional do Estado português. Com efeito, estes limites podem resultar de actuações isoladas das Comunidades, dos Estados em conjunto com as Comunidades, dos Estados membros das Comunidades no âmbito comunitário, dos Estados participantes na União Europeia no âmbito da Cooperação no domínio da Justiça e dos Assuntos Internos (AJAI), ou dos Estados participantes na União Europeia no âmbito da Política Externa e de Segurança comum (PESC)17.

Quanto à actuação isolada das Comunidades, ela pode implicar uma limitação, quer quando as Comunidades disponham de uma capacidade de vinculação internacional exclusiva18, quer quando a aprovação de medidas de natureza interna por parte das Comu¬nidades possa ter consequências ao nível da liberdade de vinculação internacional19 20 21.

Quanto à actuação conjunta dos Estados com as Comunidades, a limitação decorre precisamente de os Estados estarem a actuar em conjunto com as Comunidades em resultado da prática da conclusão de acordos mistos22. Segundo este modelo de vinculação internacional, a actuação dos Estados tem de ser conjugada ou coordenada com a actuação comunitária, na medida em que uma das partes da vinculação internacional é complexa e inclui a participação das Comunidades e de algum ou de todos os Estados membros das Comunidades. Quanto à actuação dos Estados no âmbito comunitário, a limitação resulta de os Estados membros das Comunidades, enquanto Estados e de acordo com os pressupostos do Direito Internacional e do seu Direito interno, deverem assumir um conjunto de vinculações internacionais em domínios que estão incluídos no âmbito da integração europeia. Estas vinculações internacionais assumidas pelos Estados, enquanto tais, tanto se podem traduzir em convenções internacionais que têm por objectivo completar ou desenvolver os tratados institutivos das Comunidades, como se podem concretizar em acordos dos representantes dos Estado membros no seio do Conselho.

Quanto à actuação dos Estados no âmbito dos Assuntos de Justiça e Administração Interna, a limitação resulta não da transferência de poderes, uma vez que a matéria não comunitarizada, em que se age ao nível da União Europeia, mas da previsão da conclusão, por parte da União Europeia, de acordos internacionais no âmbito da Cooperação nestes domínios, na medida em que, enquanto tais acordos estiverem em condições de produzir efeitos, os Estados estão obrigados a executá los em conformidade com o princípio pacta sunt servanda, o que os impede de assumir, individual ou colectivamente, vinculações internacionais incompatíveis. Quanto à actuação dos Estados nos assuntos da PESC, estamos, não em presença de uma limitação à capacidade de vinculação internacional em sentido próprio, mas apenas em face de uma restrição temporária à liberdade de actuação dos Estados em resultado de medidas que tenham sido tomadas no âmbito destas políticas, por parte dos Estados participantes na União Europeia. Apenas no caso de terem sido tomadas medidas ao abrigo dos artigos 228-A e 73 G do TCE23, os Estados ficam inibidos de desenvolver actuações que possam comprometer as acções comuns ou as posições comuns que tenham sido assumidas relativamente a Estados terceiros24.

A pertença às Comunidades e à União Europeia limita, assim, a capacidade de actuação dos Estados no plano internacional, em geral, e a vinculação internacional, em particular. Os efeitos concretos desta limitação são, além disso, potenciados pela aplicação, no plano externo, do princípio da solidariedade comunitária. E esta limitação da capacidade de vinculação internacional do Estado Português é reforçada pela aplicação do princípio da solidariedade comunitária, concebido em termos impositivos de actuação na prossecução de um progressivo aprofundamento da integração europeia, criando obrigações positivas e negativas ao Estado. Este princípio da solidariedade comunitária pode assumir várias facetas no âmbito da matéria da vinculação internacional, com máxima intensidade aplicativa quando se trata de domínios no âmbito da exclusividade de atribuições comunitárias, com uma ausência de actuação por parte do Estado português na matéria. Mas quando se esteja em presença de uma atribuição partilhada entre os Estados e as Comunidades, já a sua existência se limita a criar uma obrigação para o Estado Português de actuar de forma coordenada no âmbito da União Europeia.

Isto mostra que a limitação da capacidade de vinculação autó¬noma do Estado português, em consequência do princípio da sobriedade comunitária, estende-se para além das matérias que integram a capacidade de vinculação exclusiva das Comunidades Europeias, acabando por integrar todas as áreas em que exista uma competência interna comunitária. Dado que, em conformidade com o Parecer 2/91, os Estados podem ter de actuar, enquanto tais, ao abrigo de atribuições comunitárias. 1.2.3.As particularidades do procedimento de vinculação face ao direito interno e comunitário O procedimento de vinculação internacional do Estado português não conta com um texto normativo unificado, tendo um regime disperso por cerca de 10 diplomas, desde a Constituição, o Regimento do Parlamento, a Lei n.º 20/94, de 15 de Junho25, os vários estatuto autonómicos territoriais26, a Lei Orgânica do Referendo, a Lei Orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Resolução do Conselho de Ministros n.º17/88, até à legislação referente à publicação, identificação e formulação dos diplomas. A complexidade resulta em geral não só do processo internacional, mas também da envolvência de todos os órgão de soberania (e, por vezes, ainda dos órgãos de governo próprios das Regiões Autónomas) e das obrigações e princípios relacionais resultantes da participação de Portugal na União Europeia.

Recapitulando o procedimento global de vinculação internacional do Estado português, constata-se que ele comporta seis momentos fundamentais:

1ª-A fase pré-negocial, que termina com a decisão governamental de negociar (n.º1 da RCM 17/88, de 15 de Maio);

2ª- O processo de negociação, da competência do Governo (alínea b) do n.º1 do artigo 197);

3ª-A assinatura governamental;

4ª-A aprovação interna para ratificação ou aprovação interna internacionalmente vinculadora, actos da autoria da Assembleia da República (tratados em forma solene ou acordos em matérias de reserva parlamentar, nos termos da al. i) do art.º 161) ou do Governo (al. c) do n.º1 do art.º 197);

5ª- A ratificação pelo Presidente da República ou a assinatura presidencial (de manifestação definitiva, no plano do procedimento interno, do consentimento a estar vinculado internacionalmente);

6ª- A publicação, interna e internacional.

A pertença de Portugal à União Europeia é relevante para a configuração de certas particularidades do procedimento de vinculação internacional do Estado português, embora a sua influência se projecte em termos e com intensidades diferentes em relação a cada uma das fases, o que implica que se sublinhe os termos em que o Estado português vai poder tomar iniciativas, negociar e participar nos diversos procedimentos decisórios comunitários ou em procedimentos balizados pela integração comunitária.

E, neste plano, há que ter presente que o procedimento de vinculação internacional vigente no âmbito da Comunidade Europeia, hoje nomogeneticamente mais relevante em termos quantitativos e qualitativos, é o resultado da conjugação de normas do Direito Comunitário originário e da prática comunitária. Há, hoje, a possibilidade de referendo, embora, pela complexidade dos textos convencionais em geral, este processo leve a debates e votações fundadas não na realidade material dos acordos interestaduais mas viciados em funções dos protagonistas políticos e dos contextos temporais em que se inserem. O n.º5 do artigo 115 da Constituição que se pode submeter a referendo as «questões de relevante interesse nacional que devam ser objecto de convenção internacional».

Quanto ao enquadramento valorativo, temático e temporal, importa esclarecer o seguinte: Em princípio, as questões a debater ou já em debate no procedimento de vinculação internacional do Estado e que serão objecto de futuro compromisso através de tratados internacionais, podem ser submetidas a referendo nacional.

Em termos de conteúdo, por um lado, a preocupação referendária está limitada a «questões de relevante interesse nacional» e, por outro, está limitada a questões que não envolvam a delimitação de fronteiras e dos tratados de paz, em que o referendo é interdito. Quanto ao valor do processo interno, há que afirmar que este exercício de democracia directa impõe, sem alternativa, a vontade do eleitorado. Ele será sempre vinculativo, pelo que, se desaprovada a formulação do compromisso nacional visado no plano internacional, o procedimento cai, não podendo Portugal vincular-se. No entanto, este bloqueio procedimental tem que ser lido, em termos de processo em curso, pelo que ou os termos do compromisso referendados em vista desse procedimento não correspondem à evolução do conteúdo do referido procedimento internacional, ou são coadunáveis com reservas admitidas ao mesmo, ou este muda, conformando-se com o sentido da expressão popular, ou só num outro momento, em procedimento de vinculação internacional, por adesão posterior ao mesmo instrumento, após nova expressão de vontade nacional válida, ou em novo procedimento internacional, caso o anterior não tenha vencido, é possível voltar a colocar a questão da vinculação internacional.

Com efeito, quanto aos efeitos imediatos do referendo, há que referir que o governo fica condicionado na política externa ao resultado vinculativo do referendo durante o decurso da sessão legislativa, embora possa ter contactos internacionais sobre a matéria, até para medir a viabilidade de ajustar o compromisso que se pretende assumir à vontade do eleitorado. Quanto à escolha do momento da sua efectivação, ele é pré-ratificativo ou pós-ratificativo. Conforme se trate de assumir um compromisso internacional (chamemos-lhe referendo de vinculação) ou acabar com ele (referendo de desvinvulação), sendo obrigatório como pré-ratificativo, no primeiro caso e sendo naturalmente pós-ratificativo no segundo. Isto é, em termos temporais, o recurso ao referendo pode ter lugar a qualquer momento anterior à ratificação, a menos que se trate de legitimar posteriormente a denúncia ou o recesso de um tratado em vigor. Aliás, este tanto pode ocorrer já no desenrolar do procedimento internacional, e logo na primeira fase desse procedimento, como pode efectivar-se antes das negociações do tratado (solene ou acordo internacional em forma simplificada).

No momento procedimental, podem ser considerados dois momentos distintos, o da fase prévia, anterior à negociação pré-negocial, puramente interna, que termina com a decisão de o Estado se vir a vincular internacionalmente, e, depois, a fase da negociação, consequente com a decisão de futuro comprometimento internacional na matéria. O referendo de vinculação pode efectivar-se quer na fase pré-negocial quer já durante a realização da fase negocial. A fase da decisão de negociação internacional aparece referida, no texto do n.º 1 da Resolução n.º17/88, de 15 de Maio, como a «fase de intenção (negocial) ou do recebimento de qualquer proposta de negociação». As particularidades do procedimento aparecem logo na fase de decisão de vinculação internacional no plano da capacidade negocial, pois o decisor político se não tiver, enquanto tal e isoladamente, legitimidade para assumir a vinculação internacional em causa, deixa de ser relevante a apreciação de quaisquer outras condições necessárias à validade da vinculação internacional.

Além disso, outros aspectos prévios à negociação aparecem, dando carácter constitucional ou paraconstitucional a esta fase pré-negocial, em obediência aos princípios da participação regional e da liberdade de escolha da forma de vinculação convencional, dado que não há qualquer distinção substantiva nem hierarquia entre tratados sob a forma solene e tratados sob a forma de acordos em forma simplificada (com excepção do disposto na 2ª parte do primeiro segmento da al. a) do n.º 1 do art.º161 da CRP, essencialmente relacionada com possíveis transferências de poderes soberanos, segurança externa e identidade territorial), impondo a participação das Regiões Autónomas nas delegações de negociação de tratados e acordos internacionais que directamente lhes digam respeito e a escolha do tipo de procedimento que deverá assumir a vinculação.

Logo que estão interna e externamente reunidas as condições para se entrar na negociação, esta é conduzida, em termos concretos, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros ou dos diferentes ministérios com atribuições na matéria em debate. No âmbito da União Europeia, o governo deve sempre concertar-se com o Parlamento na sua acção de participação no procedimento de negociação, nos termos da Lei n.º20/1994.

Na negociação de um acordo internacional, a integração de Portugal na União Europeia, implica as seguintes orientações procedimentais:

a)- Na negociação em matérias de competências exclusivas das Comunidades não há senão uma intervenção organicamente comunitária, ou seja, apenas uma intervenção do Estado, de modo indirecto, orgânica e competencialmente enquadrada, enquanto Estado-membro do Conselho de Ministros das Comunidades.

O direito comunitário interdita qualquer intervenção directa na negociação por parte do Estado português. Este apenas participa como Estado-membro, nos momentos próprios do procedimento comunitário. Há, pois, uma participação indirecta, quer a que lhe permite manifestar a sua posição aquando das votações no Conselho, na formulação das decisões próprias do iter negocial totalmente de carácter supranacional, a relativa à autorização do início e à conformação dos termos das negociações, e a da aprovação final do acordo, quer através da participação nos comités especiais designados pelo Conselho para assistirem a Comissão.

b)- Nas negociações em acordos mistos (da CE ou UE e Estados-membros, em princípio devido à integração simultânea da matéria em que os Estados mantêm poderes dispositivos), a intervenção do Estado português na negociação depende do momento em que seja decidida a forma mista (ou pela decisão comum sobre a composição global das matérias ou em face do tratamento não simultâneo das matérias de competência estatal, designadamente por estratégia ou superveniência motivadora) e do modo como forem constituídas as delegações de negociação do acordo internacional.

c)- Nas negociações de tratados internacionais assumidos pelos Estados enquanto membros das Comunidades ou enquanto participantes na União Europeia, a intervenção do Estado português terá lugar, balizado pelo direito comunitário ou unionista, em termos procedimentais ou de objectivos, efectivando-se, em princípio, desde o início das negociações, embora sujeito ao princípio da subordinação ao interesse comunitário e balizada pelos objectivos comunitários da União Europeia que esta pretenda alcançar26b . Depois, passa-se à fase da assinatura governamental. A assinatura é sempre da competência do Governo, nos termos da alínea b) do n.º1 do artigo 197 da CRP, a exercer de acordo com os n.º 3 e 4 da Resolução do Conselho de Ministros n.º17/88, de 11 de Maio27. A sua função é diferente no caso de tratado solene, em que ela apenas cria o direito a ser-se parte do tratado ou no caso de acordo simplificado, em que ela vincula o Estado ao conteúdo do tratado, nos termos do Direito Internacional Público, se não houver qualquer reserva para manifestação de vontade definitiva futura, como impõe a Constituição da República Portuguesa, traduzida na aprovação governamental ou parlamentar.

A aprovação governamental é realizada pela assinatura do Primeiro-Ministro, o que coloca um problema referente à eficácia do controlo da constitucionalidade, que só é solucionável fora da solução estabelecida no sistema normativo da Constituição. Isto é, o Primeiro-Ministro deve procurar aferir a «parametricidade constitucional» do compromisso internacional, porquanto o momento previsto na Constituição da República Portuguesa para a prática da apreciação preventiva da conformidade com a Lei Fundamental, está erradamente deslocado para momento posterior à aprovação, quando utilmente deveria ocorrer antes de se verificar o acto de vinculação internacional do estados. Portanto, no caso de acordos de pura aprovação governamental, antes da aprovação do texto pelo Governo. Segundo a Constituição a intervenção do Presidente da República a solicitar ao Tribunal Constitucional essa verificação da conformidade constitucional só pode ter lugar depois da sua aprovação interna (n.º1 do artigo 278), o que já não terá a virtualidade de evitar a conclusão de vinculações internacionais inconstitucionais. Ou seja, o legislador pensou um sistema de controlo preventivo com uma solução técnica infuncional, pelo que o objectivo constitucional passa por uma antecipação que realize o objectivo constitucional, sob pena de não haver controlo preventivo no âmbito dos compromissos internacionais, por inutilidade do previsto.

 Ou seja, a solução intencionalmente preventiva, deixa de ser preventiva, tornando-se realmente uma apreciação «sui generis», na medida em que já é sucessiva à vigência do tratado, embora seja anterior à assinatura presidencial, em si não relevante para invalidar a vinculação do Estado português, no plano do direito internacional público. O Estado português, em relação aos acordos mistos ou aos tratados internacionais que são concluídos pelos Estados enquanto membros das Comunidades ou participantes na União Europeia, excepto quanto aos acordos mistos em que haja lugar a votação por unanimidade, não pode deixar de os assinar, dado o princípio da solidariedade comunitária. A quarta fase do procedimento é a da aprovação interna para ratificação ou da aprovação interna conducente à manifestação em definitivo do consentimento do Estado a estar vinculado internacionalmente. É uma fase cuja competência é ou do Parlamento -resoluções parlamentares- ou do Governo - decretos governamentais, podendo este devolvê-la ao Parlamento (alínea i) do artigo 161 e alínea c) do n.º1 do artigo 197).

A Constituição prevê uma reserva de aprovação de tratados pela Assembleia da República, enquanto os acordos serão aprovados por este órgão ou pelo Governo quando não versem matérias da competência reservada da Assembleia da República ou o Executivo os remeta para sua aprovação. Quanto à aprovação dos acordos internacionais no âmbito comunitário, a intervenção do Estado português assume formas diferentes, conforme o Estado apareça como membro do Conselho, actuando no âmbito do exercício de competências não nacionais, ou se trate de aprovação pelo Assembleia ou pelo Governo dos acordos mistos e de tratados internacionais que são concluídos pelos Estados, enquanto membros das Comunidades ou Estados integrantes e participantes das políticas da União Europeia, caso em que, em regra, o Estado tem de aprovar o tratado, em cuja negociação tenha participado, por força do respeito pelos princípios da boa fé e da solidariedade comunitária.

Mas, em face do princípio da separação de poderes, de modo a não ser subvertido em termos estruturantes o regime constitucional de vinculação externa e governamentalizada, na vertente externa da integração europeia, o Parlamento tem um direito de não aprovar quando não lhe tiver sido fornecida informação suficiente e adequada relativa à condução das negociações e aos objectivos do compromisso internacional que se pretende assumir e o assunto não tenha sido, em conformidade, objecto de debate e votação favorável28.

A quinta fase do procedimento de vinculação internacional do Estado português é a da ratificação ou da assinatura (esta apenas como manifestação, de valor definitivo, no plano interno, do consentimento do Estado a estar vinculado internacionalmente), actos da competência do Presidente da República, que recebe as Resoluções da Assembleia da República e os Decretos do Governo, através dos quais foram aprovadas internamente os tratados internacionais. Ele tem, então, três caminhos possíveis a seguir: requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade, ratificar ou não ratificar no caso dos tratados internacionais e assinar ou não assinar o acto interno de aprovação no caso dos acordos internacionais. Sobre a ratificação, pela importância que o tema tem no plano do sistema de fiscalização da constitucionalidade, falaremos a propósito da problemática do controlo e relevância da inconstitucionalidade dos tratados, limitando-nos aqui a isolar bem este acto no conjunto das fases procedimentais convencionais, para melhor se compreender a densificação que então daremos ao conceito de tratado «regularmente ratificado». A última fase é a da publicação interna (no «Diário da República») e internacional (no United Nations Treaty Series), não sendo estas condição de validade da vinculação internacional e em que o momento em que o acto é publicado não coincide com a entrada em vigor da vinculação nacional.

2.A TEORIA DA INCORPORAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO NA ORDEM JURÍDICA ESTADUAL

2.1.A aplicação do direito internacional geral ou comum

A Constituição declara que o direito internacional consuetudinário é parte integrante do direito português. Quer o direito consuetudinário universal, quer o regional, quer o bilateral? Apesar de quanto ao direito não geral, este o nº 1 da Constituição da República Portuguesa o não dizer expressamente, resultando a solução da concepção monista moderada com supremacia do direito internacional público, tradicional na doutrina portuguesa e que hoje se impõe perfilhar80, não há razões para distinguir. Realmente, o nº 1 do artigo 8º só se refere aos princípios gerais do direito internacional e às normas com carácter “geral ou comum”, mas quanto ao direito consuetudinário regional ou bilateral, por um argumento de igualdade, de identidade de razão81 e portanto independentemente da tese perfilhada quanto às relações de sistema entre o direito internacional público e os direitos nacionais (embora pela concepção monista moderada, com supremacia de direito internacional público, tradicional no direito português, se chegue à mesma conclusão), sempre teria de se considerar aí integrado o direito consuetudinário particular, ou seja, todo o direito consuetudinário.

Não é pelo facto de um costume jurídico não ser geral que, desde que seja aplicável a Portugal82, tem natureza diferente para Portugal em relação ao direito consuetudinário universal. Na investigação histórica da redacção do n.º.º1 do art.º.º 8, podemos encontrar a explicação, num lapso não intencional, do legislador. Com efeito, pelos trabalhos preparatórios83, constata-se a sua intenção de resolver neste artigo a questão da aplicação de todo o direito internacional público na ordem jurídica portuguesa84. Portanto, há que concluir da Constituição que o direito internacional consuetudinário é parte integrante do direito português: quer o direito consuetudinário universal quer o regional, quer o bilateral.

A Constituição da República Portuguesa estebelece, pois, a recepção automática de todo o direito consuetudinário. Estas normas, tal como os princípios gerais85, são fontes autónomas do nosso direito interno, sem necessidade da sua transformação em actos legislativos nacionais, pelo que são directamente aplicáveis pelas autoridades e tribunais portugueses, devido à sua incorporação automática. E dado que o nº 1, referente à recepção automática incondicionada, se reporta a normas do direito internacional público geral ou comum, entendo que devem também considerar-se aqui incluídas todas as normas de direito “constitucional” da sociedade internacional, ou seja, as normas fundamentais, de aceitação generalizada na sociedade internacional e, portanto, as normas constantes de tratados universais ou quase universais, aceites como direito geral86, e por isso de respeito obrigatório pelos próprios direitos internos dos Estados, incluindo as suas Constituições. Assim, e aqui considero legítimo dar um salto na ponderação da questão da hierarquia, atribuindo-lhes valor, se não em geral supraconstitucional (o qual melhor se adequa em certos casos à impossibilidade de as Constituições disporem diferentemente), pelo menos, em princípio, constitucional, questão a que voltaremos em momento oportuno. Vejamos, agora, o tema do direito convencional em geral.

2.2. A vigência interna dos tratados

Diz o n.º 2 do referido 8.º que “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”.

Quanto aos tratados, processa-se portanto, também a recepção automática, o que transparece permanentemente da jurisprudência constitucional. Assim, v.g. os ATC 123/85, 295/86, 126/86,311/86, etc., com redacções semelhantes, vão repetindo que o n.º 2 do artigo 8.º da Constituição consagra a regra de recepção automática do direito internacional convencional, condicionando a sua eficácia interna, além do mais, à publicação oficial. Entendo que a recepção condicional, portanto, o n.º2 do artigo 8.º se aplica restritivamente apenas aos tratados não gerais. Isto é só em relação a estes havendo a recepção plena na ordem jurídica portuguesa, de modo condicionado. Portanto, os tratados cujas características não os façam integrar no n.º1 do artigo 8.º, nos termos atrás expostos, quando ratificados ou aprovados de acordo com as normas constitucionais, aplicam-se directamente na ordem jurídica interna, logo que passem a vincular o Estado na sociedade internacional, se já tiverem sido publicadas no Diário da República ou, então, logo após essa publicação e o decurso da vacatio legis. Aqui, a recepção dos tratados depende de condicionantes, em que se destaca uma que tem merecido acesa e inconclusiva polémica na doutrina portuguesa, a da regularidade da aprovação dos acordos em forma simplificada e da ratificação dos tratados solenes. Que significa esta exigência de regularidade? E se estes tratados não tiverem sido «regularmente ratificados ou aprovados», nos termos exigidos pelo nº 2 do artigo 8.º? Se os tratados em forma solene não tiverem sido ratificados, acto do Presidente da República em expressão da sua aprovação, ou os acordos em forma simplificada não tiverem sido aprovados pelo Parlamento, ou, quanto aos de matéria não reservada, em que é possível ao Primeiro-Ministro (ou ao Governo) dar a aprovação, não tiverem sido aprovados por estas entidades, então eles não foram regularmente ratificados ou aprovados. E, portanto, a sua incorporação, mesmo que vinculem o Estado no plano internacional87, não se efectiva nos termos automáticos consagrados no n.º 2 do artigo 8.º. E não havendo recepção automática, ou a regularização se processa, ou resta a responsabilidade internacional por incumprimento, excepto processando-se a aplicação por transposição do seu conteúdo para fonte interna.

2.3.A recepção das normas de organizações supranacionais

Todo o direito internacional vigora em Portugal ao abrigo de uma cláusula geral de recepção plena. Mas qual o regime das normas emanadas das organizações internacionais de que Portugal faz parte?

Quanto à questão de saber se as resoluções de certos órgãos de organizações internacionais, v.g. da ONU, ou regulamentos e outros actos das Comunidades Europeias têm primazia sobre o direito interno, será enquadrada a propósito do direito comunitário. Vejamos agora primeiramente a questão do método da recepção destes actos jurídicos. Nos termos do nº 3 do artigo 8º, também o direito emanado dos órgãos competentes das organizações internacionais, em que Portugal participa, nos termos previstos nos respectivos tratados constitutivos, é directamente aplicável na ordem jurídica interna. Estão aqui abrangidos actos jurídicos da Comunidade Europeia, da Organização das Nações Unidas, órgãos da Associação África, Caraíbas e Pacífico-União Europeia (CEE), criados pela Convenção e Lomé, etc..

Aliás, a disposição tem que ser interpretada no sentido da recepção do direito criado por órgãos de Organizações em que a Comunidade Europeia participe desde que os tratados constitutivos o prevejam e esses órgãos ajam no âmbito dos poderes atribuídos à Organização.

O n.º 388, coloca e procura resolver a questão das normas emitidas por organizações internacionais. Trata se aqui sobretudo das organizações internacionais de integração, nomeadamente as Comunida¬des Europeias, e também das organizações internacionais de cooperação, na medida em que disponham de poderes normativos face aos Estados membros. Esta norma deve ser conjugada com a do n.º6 do artigo7.º89, que estabelece a cláusula da partilha de poderes necessários à edificação da União Europeia. Trata se de expli-citar uma das consequências jurídicas da adesão a uma organização cujo funcionamento exige, por princípio, a submissão directa e imediata às normas dela emanadas, nos termos dos respectivos tratados constitutivos.

A fórmula adoptada pela Constituição «vigoram directamente na ordem interna» significa que as normas emitidas por organizações internacionais dotadas de poderes «legislativos», seja qual for a sua natureza jurídica, entram a constituir uma componente da ordem jurídica interna, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos, independentemente de qualquer acto de mediação, dispensando qualquer transformação e publicidade estadual, vigorando por si, sem aprovação ou ratificação por qualquer órgão do Estado, nem a publicação no jornal oficial. É a aplica¬ção à legislação de uma organização internacional, com as necessárias adaptações, do mesmo princípio de recepção automática ou plena, que vale para o direito internacional, comum ou convencional (n.º 1 e 2 do artigo 8.º), com a diferença de que aquelas não care¬cem de nenhum acto interno de aprovação ou ratificação, contrariamente ao direito convencional enquanto tal.

O sistema levanta problemas de articulação com o poder legislativo interno, porque as normas comunitárias podem versar matéria de reserva de lei parlamentar89a, não só substituindo-se às leis da Assembleia da República, como fazendo precludir a sua intervenção normativa daí para a frente, sem que esta seja chamada ou a confirmá las (como sucede no caso das convenções internacionais que versem matéria da sua competência legislativa reservada), ou a delegar tais poderes no governo (como sucede com os decretos leis autorizados), uma vez que o Estado transferiu genericamente e por tempo indeterminado os seus poderes soberanos de conformação dessas matérias.

No entanto, segundo o texto constitucional, exigem-se duas condições para que esta eficácia directa do direito das organizações «supranacionais» se opere na ordem interna: a aplicabilidade ou efeito directo deve encon¬trar-se «estabelecido nos respectivos tratados constitutivos» e as normas devem emanar dos «órgãos competentes» dessas organizações. Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, se qualquer dessas condições faltar, as normas não só seriam inválidas, como nem sequer chegariam a vigorar em Portugal. E acrescentam que a remissão para o que disponha expressamente o tratado «é sobremodo importante: só existe direito que se imponha direc¬tamente aos cidadãos dos Estados membros, se estes se obrigaram a isso, ao constituí¬rem ou aderirem à organização, ou seja, desde que e até ao ponto em que o tratado constitutivo da organização preveja tal poder normativo, bem como a sua aplicação directa na ordem interna dos Estados membros.

Assim, por exemplo, no caso da Comunidade Europeia, só terão cobertura constitucional90 os regulamentos comunitários, previstos no artigo 189.º do Tratado, mas não já, em princípio, as directivas, igualmente previstas nesse lugar». Doutrina inaceitável, pese embora o texto constitucional, pois, a ser assim, Portugal já não pertenceria à União Europeia, ao pretender rejeitar a teoria do efeito directo de Directivas, como aliás das Decisões, actos administrativos cuja aplicabilidade directa quando dirigidas aos Estados não está prevista mesmo que nestes termos remissivos, pelo tratado. As dirigidas aos particulares têm efeito directo, por força do tratado e as outras, dirigidas aos Estados, também o têm, nos mesmos termos das Directivas incumpridas. Consideramos que a norma do n.º 3 não resolve as questões respeitantes ao carácter jurídico, grau de eficácia e hierarquia normativa do direito comunitário, não sendo aplicada tal como se encontra redigida, por mais que se diga que a sua marginalização cria inconstitucionalidades, ao ser precisa e quotidianamente aplicada para além dos termos acabados de expôr, como fundamentaremos a seguir (3.1).

Quanto ao seu lugar no sistema normativo, habilitador de normas dependentes e vigorando directamente no direito interno, nomeadamente sob o ponto de vista dos princípios da legalidade, no plano da prioridade e prevalência da lei, as normas internacionais ou comunitárias valem como lei, quer em termos do enquadramento do princípio da legalidade da actividade administrativa, quer sob o ponto de vista da fundamentação legal dos regulamentos. Quando exequíveis por si mesmas são directamente aplicáveis. E também podem ser objecto de regulamentação interna por via de regulamento, sem intermedia¬ção legislativa, embora quanto às directivas e decisões dirigidas aos Estados (estas quando necessitem de recurso a meios normativos), os meios de transposição têm de respeitar a reserva de lei, que porventura exista na matéria em causa, bem como a eventual reserva de compe¬tência legislativa parlamentar. O mesmo sucede quando a norma internacional fizer remissão para ulterior regulamentação interna, a qual não pode deixar de respeitar as regras de precedência da lei e de reserva de competência legislativa que sejam aplicá¬veis ao caso91. Mas vejamos a questão da hierarquia das fontes aplicáveis no direito interno. 3.O posicionamento hierárquico do direito internacional público e do direito comunitário

3.1.O posicionamento do direito comunitário Estamos em face de uma questão fundamental do ordenamento jurídico, que é a das relações entre o direito oriundo das Comunidades e o direito dos Estados-membros, bem como entre ele e o direito internacional vigente na ordem interna.

Tendo presente a norma do n.º 3, em análise, os constitucionalistas GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA afirmam que «A CRP não afirma explicitamente a prevalência do ‘direito supranacional’ sobre o direito interno». E acrescentam que «se a afirmação de que as normas daquele passam vigorar directamente na ordem interna parece tornar irrecusável que elas substituem automaticamente as normas de direito interno que porventura já existam e que confli¬tuem com elas, já é mais problemático o fundamento para a ideia de que elas prevale¬cem sobre as que venham a ser eventualmente criadas e que as contrariem. De qualquer forma, parece seguro que, aceitando se a primazia do Direito Internacional Público comum e conven-cional sobre o direito interno, a mesma solução terá de adoptar se quanto ao direito directamente produzido por organizações internacionais, independentemente de saber se estes esquemas relacionais se reconduzem ainda aos modelos teóricos e jurídicos desenvolvidos quanto às relações entre o Direito Internacional Público e o direito interno, ou se se trata de um tertium genus com especificidade e autónoma razão de ser.

Também não importa aqui saber se a preferência do «direito supranacional» deve ser concebida em termos de superioridade, ou em termos de uma divisão de compe¬tência entre o Estado e a organização internacional, de tal modo que aquele, ao subscrever o tratado constitutivo da organização, transfere para esta o exercício do poder normativo em certas matérias, deixando portanto de poder exercê lo.

A doutrina tem aqui apontado para a ideia de preferência de aplicação do direito comunitário, que não significa invalidação do direito interno, mas tãosomente uma prioridade de aplicação. Mas a qualificação que se dê pode ser relevante para efeitos de saber qual a natu¬reza do vício de que padece a norma interna que contrarie a norma «supranacional» e quais as vias disponíveis para solucionar a questão.

A Constituição é manifestamente omissa a esse respeito. Seguro é que se não trata de uma questão de constitucionalidade propriamente dita e que a situação também não encaixa em nenhuma das modalidades de fiscalização da legalidade, constitucionalmente equiparadas à inconstitucionalidade, para efeitos de regime de fiscalização e de competência do Tribunal Constitucional. Registe se que a Lei do Tribunal Constitucional, que agora se refere explicitamente à questão da desconformidade do direito interno com as convenções internacionais, nada diz quanto à desconformidade com o direito emanado das organizações internacionais. Se tal regime não for susceptí¬vel de extensão por analogia, então a fiscalização da conformidade do direito interno com o direito comunitário esgota se no controlo difuso a cargo dos tribunais comuns, nos termos gerais, não se lhe aplicando o sistema de fiscalização da constitucionalidade e da «legalidade reforçada», pelo que o Tribunal Constitucional não pode conhecer dessas questões.

Como quer que seja concebida a prevalência do «direito supranacional» sobre o direito ordinário interno, é seguro, porém, que aquele não pode prevalecer sobre a Constituição, antes tem de ceder perante ela. Na verdade, sendo a Constituição a lei fundamental do país, ela toma inconstitucionais todas as normas que contrariem os seus preceitos ou os seus princípios (n.º 1 do artigo 277.º), qualquer que seja a natureza ou a origem da norma. Este é um princípio essencial, de aplicação geral, que só sofre derrogações nos casos expressamente admitidos pela própria Constituição, como é o caso do disposto no n.º2 do artigo 277.º. Em nenhum lugar, a Constituição da República Portuguesa faz qualquer distinção entre áreas ou categorias normativas para isentar alguma da obrigação de conformidade constitucional.

Nem se compreenderia que fosse de outro modo, visto que admitir que o direito «supranacio¬nal» pudesse contrariar a própria Constituição seria o mesmo que admitir a derrogação do princípio da soberania nacional no que ele tem de mais indisponível, ou seja, a autonomia constitucional, o poder de autonomamente decidir sobre a própria lei fun¬damental da colectividade; noutra perspectiva, equivale¬ria a admitir a transformação da Constituição numa lei apenas nominal, deixando constituir um corpo normativo mais ou menos vasto à sua margem e imune aos seus comandos; finalmente, tudo se passaria como se a Constituição pudesse ser material¬mente revista, por acto de um órgão externo, sem observância das regras formais, pro¬cessuais e materiais que presidem à revisão constitucional. Se a Constituição não pode ser infringida pelo Estado, muito menos o pode ser por uma organização internacional que o Estado venha a integrar». Segundo os autores, a conclusão é simples, linear, tirada ad verbum, dado o artigo 207.º e os artigos 280.º e 281.º: as normas supranacionais que contrariem a Constituição não podem ser aplicadas pelos tribunais e não podem deixar de poder ser submetidas ao Tribunal Constitucional para efeitos de fiscalização de constitucionalidade.

Que dizer de tudo isto? Começo por referir que se levanta desde logo a questão de saber quais os efeitos da inconstitucionalidade das normas supranacionais, sendo certo que se Portugal excluísse a aplicação, no seu território, de normas de direito comunitário, seja o direito originário (dos tratados, com as suas várias revisões) seja o direito derivado (das Instituições unionistas, exercendo atribuições transferidas), qualquer que fosse o pretexto de direito interno invocado, se estaria a excluir da União, enquanto Comunidade geral de direito, sujeitando-se à condenação do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e incumprindo as sentenças inelutáveis deste, a auto-excluir-se da própria união Europeia, mas não restando do que começar a negociar um tratado de saída, tendo eventualmente presentes os princípios que nortearam as negociações da Dinamarca para a saída da então novel Região Autónoma da Gronelândia, à falta de outra experiência de secessão integral. Uma declaração de inconstitucionalidade de normas de direito da União Europeia não só não pode atingir a norma em si mesma, como, independentemente do jogo da sua invalidação segundo o direito interno, também não pode atingir a sua eficácia no ordem jurídica interna portuguesa, que não pode ficar, por princípio, em nenhuma circunstância não prevista no próprio direito comunitário europeu, dispensada de a fazer cumprir.

Em face de tudo quanto se afirma, a minha posição é diferente, partindo de uma concepção de Constituição como expressão máxima do direito e de operatividade inultrapassável apenas de uma soberania existente e exercida, mas já não se ou na medida em que, divisível como ela hoje já é (pese embora a declaração do n.º 1 do artigo 3.º da CRP), uma parte dos poderes que pressupõe foram permanente ou transitoriamente transferidos ou delegados. O raciocínio assente na letra da Constituição, colocado isoladamente numa perspectiva de pura teoria constitucional, tem de ceder, perante a impossibilidade, segundo os tratados, de inaplicar o acervo jurídico comunitário, incluindo o de fonte jurisdicional, que também resulta do próprio Tratado, pese embora o disposto expressamente no artigo 189.º, que assim o vem complementar com toda a legitimidade convencional.

Mas, independentemente disso, por muito peso lógico que, num Estado isolado, vivendo e subsistindo numa cultura jurídica contemporânea, mitificadora da sua Lei Fundamental, esta tenha, perde-se pela evidência de que não é assim que as coisas estão a funcionar, em face das heteroregulações conaturais à própria ideia de integração entre Estados consentida pelos órgãos de soberania de cada um desses Estados. O princípio pretoriano do primado do direito comunitário sobre todo o direito dos Estados-membros tem-se imposto em absoluto, em Portugal, sem prejuízo das revisões extraordinárias para adequar preventivamente a Constituição às revisões dos tratados na fase de ratificação pelos Estados-membros. Vejamos, pois, como creio que a questão deve ser enquadrada. A questão do efeito directo das directivas (e decisões dirigidas aos Estados) implica uma «releitura transliteral» da redacção do n.º 3 do artigo 8.º, o que não deixa de exigir a sua reformulação, por inaplicável tal como está91a. Acontece que o n.º 3 do artigo 8.º manda aplicar as normas comunitárias directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.

Há, portanto, também, uma recepção automática deste direito derivado das organizações internacionais. Ora as Directivas comunitárias obrigam, mas em princípio, nos termos da letra dos TCE, passam por transposição para actos internos92. No entanto, o Tribunal de Justiça das Comunidades tem aplicado o princípio do primado do direito comunitário não só sobre o direito nacional ordinário mas mesmo sobre o direito constitucional dos Estados membros93, invocando a “autonomia, superioridade, unidade e efectividade” da ordem jurídica comunitária94. É óbvio que o direito comunitário nunca poderá estar sujeito à fiscalização preventiva porquanto este direito derivado dos tratados não depende de ratificação ou aprovação interna.

No entanto, segundo alguns constitucionalistas, designadamente os já referidos, a sua aplicação poderia ser afastada da aplicação na ordem jurídica interna com fundamento em inconstitucionalidade, porque não é «admissível a imunidade constitucional de quaisquer normas vigentes na ordem jurídica portuguesa»95. Em causa estão as seguintes questões: Se os órgãos comunitários editarem actos normativos que derrogam leis portuguesas com orientação material diferente, qual o seu valor? E as leis poderão posteriormente adoptar normas contrárias a esse direito derivado? E quanto ao direito originário, primário destas organizações constante dos tratados?

A maior parte da doutrina atribui valor supralegislativo (tal como ela faz com o direito internacional clássico) ao direito derivado comunitário, dando-lhe prevalência de aplicação96. De qualquer modo, este direito teria para os nossos constitucionalistas, um valor infra-constitucional, em nome das razões que alguns autores resumem, dizendo que se assim não fosse a Constituição seria supérflua, a revisão da constituição ocorreria sem respeito pelas regras consagradas nela e dar-se-ia a superação dos limites materiais da revisão constitucional indicados no artigo 288º. Independentemente da inaceitabilidade desta doutrina, a falta de uma norma constitucional que o esclareça, sendo certo que não têm que ser as constituições estaduais a autolimitar-se (mesmo em Estados federados), onde essa limitação resulta das regras fundamentais de carácter supra-nacional, neste acso do ordenamento jurídico comunitário, a argumentação utilizada não é decisiva, além de que não é aceite pelo Tribunal da Comunidade.

E Portugal está obrigado pelos Tratados a aceitar todo o acervo jurídico da União, mesmo o jurisprudencial. Desde logo, quanto aos limites materiais de revisão tal como quanto às normas materiais do texto constitucional, ou estão de acordo com os princípios «constitucionais» comunitários ou então só há dois caminhos de superar o conflito: ou, realmente, o Estado português altera a Constituição (com ou sem expedientes, meramente processuais, de dupla revisão) ou então as autoridades internas não têm outro caminho senão “integrar” o direito constitucional de acordo com o direito comunitário, uma vez que estão obrigadas a cumpri-lo. Quanto à utilidade ou não da Constituição, ela não se mede apenas pela gestão da posição do direito supra-nacional, o que implicaria a inexistência de Constituições nos Estados Federados onde sem dúvida, o seu interesse é por vezes muito menor do que num contexto de União de Estados onde o âmbito comunitário ou supranacional é relativamente diminuto em face do âmbito de acção intergovernamental ou, quando muito, transnacional.

É que consideramos que a Constituição exprime no plano normativo, o exercício de direitos de soberania nacionais, que se forem transferidos ou delegados numa organização internacional, não deixam subsistir essa regulamentação constitucional, tal como não deixam subsistir o poder normativo na matéria, enquanto essa delegação ou transferência de poderes se mantiver. Em conclusão, importa referir que a própria ideia de Direito Comunitário exige uniformidade de aplicação e de interpretação em todo o espaço jurídico a que se aplica.

Por isso, ele tem de ter supremacia sobre todo o direito, constitucional ou não, que perde a sua eficácia perante ele, na medida em que o direito interno deixe de se aplicar. É supraconstitucional. E o texto do n.º 3 devia estar redigido de modo a prever a limitação dos direitos soberanos, permitindo expressamente a sua transferência ou delegação na União Europeia, sendo certo que o n.º 6 do artigo 7.º prevendo a possibilidade de ser convencionado o «exercício em comum de poderes necessários à construção europeia», é apenas mais um a norma inconsequente, ao lado da do n.º 3 do artigo 8.º, que tal como está, não é aplicável por afrontar o direito comunitário, podendo considerar-se desnecessário.

E a manter-se regulada a integração do direito comunitário, então a norma devia referir-se em geral a actos jurídicos das instituições da União e não apenas a normas (as «decisões» previstas no artigo 189.º do Tratado da Comunidade Europeia são actos jurídicos individuais, obrigam e podem ser invocados pelos particulares quando se lhes dirigem, ou seja, são aplicáveis directamente, tal como os regulamentos).

E o artigo 189.º do Tratado só prevê a aplicação directa dos regulamentos e não daquelas Directivas que se dirigem aos Estados, obrigando-os a legislar em conformidade com os seus objectivos, sendo certo, no entanto, que, se não forem criadas normas de acordo com as Directivas, elas passam a ter na mesma efeito directo, que lhe dê utilidade, em ordem a impedir a inexistência de um espaço jurídico comunitário, podendo em certas condições ser invocadas pelos particulares quando qualquer norma de direito interno as contradiga. E esse «efeito directo» não está previsto no nº 3 do artigo 8º. E portanto vigora sem previsão, licença constitucional.

Ou seja, aqui está uma norma constitucional que, devido ao carácter supraconstitucional da ordem jurídica comunitária, não é nem pode ser naturalmente aplicada, o que é tanto mais sintomático quanto se trata precisamente de uma norma que pretenderia regular o cerne desta questão e até ir contra o acervo jurisprudencial comunitário, ao contrariar a aplicabilidade directa de certos actos comunitários. Ela própria não é aplicável, comprovando assim a solução mais evidente da supra-constitucionalidade do Direito Comunitário que não queria enquadrar. Não o faz directamente. Mais do que isso, fá-lo, provando-o espectacularmente.

3.2. O valor das normas internacionais em confronto com o direito constitucional

O valor do Direito Internacional Público convencional não geral é infraconstitucional e supralegal. Na tese dominante, as normas de Direito Internacional Público vigoram na ordem interna com a mesma relevância das normas de direito interno, desde logo quanto à subordinação hierárquica à Cons¬tituição, sendo, pois, inconstitucionais se infringirem as normas da Constituição ou os seus princípios (n.º1 do artigo 277.º), embora nalguns aspectos sujeitas a regras de controlo e imposições de aplicação, independentemente da inconstitucionalidade. Mas, em geral, o que resulta da letra da Constituição na leitura conjunta do artigo 8.º e das regras sobre fiscalização da constitucionalidade é que as normas de Direito Internacional Público convencio¬nal, viciadas de inconstitucionalidade não podem ser aplicadas pelos tribunais (artigo 207.º). A sua inconstitucionalidade pode ser declarada, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional (artigo 281.º).

E estão, também, sujeitas a controlo preventivo da constitucionalidade (n.º1 do artigo 277.º). Realmente, nesta matéria de fiscalização da constitucionalidade, a Constituição não faz distinções, pelo que num plano literal caem na sua alçada todos os tratados internacionais, até o Tratado da União Europeia, e o direito derivado. Embora esta tese contradiga o princípio imposto pelo Tribunal das Comunidades da primazia absoluta do direito comunitário. Não faz distinções independentemente da sua natureza, isto é, tenham ou não carácter normativo. Em suma, na tese dominante, unânime entre os constitucionalistas de tradição nacionalista, até mesmo em relação às normas comuns, hegemónica entre os internacionalista (inaceitada pela doutrina comunitária quanto ao direito comunitário no seu conjunto, originário ou derivado, e quanto aos tratados de organizações internacionais e seu direito derivado, que obrigue as Comunidades), o direito internacional público teria carácter infraconstitucional, nem sequer o direito impositivo do Conselho de Segurança ou da União Europeia ou o ius cogens internacional escaparia a esta hierarquização, o que cada vez mais vai aparecendo como excesso de normativismo constitucional, levando o conceito de constituição em cerca de dois séculos a passar de simples texto programático não normativo a lei de cariz imperialista. Nesta acepção dominante na doutrina, a Constituição prevalece sobre o Direito Internacional Público, seja comum, seja convencional. No entanto, há normação constitucional que, verificadas certas circunstâncias, consente expressa embora excepcionalmente a aplicação de normas constantes de trata-dos inconstitucionais sob o ponto de vista orgânico ou formal (n.º2 do artigo 277.º).

De qualquer modo, o facto de o Estado não poder cumprir as obrigações inter¬nacionais a que se comprometeu por via de convenção, por motivo de inconstitu¬cionalidade desta, não o exime da responsabilidade internacional pelo mesmo incumprimento, pois segundo o direito internacional público, ele não pode, em princípio, invocar o seu direito interno para não cumprir os tratados. E, na medida em que não possam prevalecer constitucionalmente as normas internacionais sobre as que vigoram na Constituição, uma de duas: ou o Estado, podendo, se desvincula do tratado em causa, ou altera previamente a Constituição no sentido conforme às obrigações internacionais. Daí a importância da fiscalização preventiva das normas dos futuros tratados, para prevenir a consumação de inconstitucionalidades, se assim se quiser, dado que o Parlamento pode em certas situações e condicionalismos de expressão de vontade, viabilizar a vigência das normas em causa, isto é, a vinculação internacional e interna às mesmas, por uma convenção desconforme com a Constituição, o que só tem sentido ou como expressão de uma revisão anómala ou derrogação indirecta desta, ou pelo menos como suspensão da vigência da norma constitucional ultrapassada, enquanto durar a vigência do tratado. Mais tarde a propósito do controlo constitucional das normas de direito internacional, voltaremos a este tema.

3.3.O posicionamento do direito interno em face do direito internacional público

3.3.1.As posições doutrinais

Começando por uma referência às posições da doutrina em geral, há que constatar que, quanto à questão do posicionamento hierárquico do direito internacional no sistema das fontes, subsiste o dissenso entre aqueles que pretendem atribuir às normas internacionais uma força jurídica supraconstitucional, uma força constitucional, uma força supralegal, uma força legal ou ainda uma força infralegal97.

 3.3.2.O princípio da primazia do direito internacional público sobre o direito interno infra-constitucional

 Quanto à problemática sobre as relações entre o Direito Internacional Público recebido na ordem interna e o próprio direito ordinário interno, certa doutrina entende que a Constituição nada diz. É verdade que não há texto expresso, embora a sua importância o justificasse, por ser um tema de transcendência e natureza constitucional, devendo ser, segundo alguns, impositivamente, a própria Constituição, como lei funda¬mental da ordem jurídica, a enunciar o lugar que cabe, na hierarquias do sistema das fontes de direito, interno e externo, a cada espécie normativa, tal como acontece em alguns casos no direito constitucional comparado (vg., no caso da Lei Fundamental alemã, com o art. 25.º, e na Constituição francesa, com o art.55º), sob pena de toda a teoria nomológica poder criar acesa polémica, dada a falta de uma explícita norma constitucional a estabelecer inequivocamente tal prevalência, por mais que não possa deixar de se considerar que, na falta dessa norma, tem de se preencher a lacuna de acordo com as regras de integração pertinentes.

Acontece que provavelmente, num tempo de construção de um mundo de grande cooperação, em que a sociedade internacional está passando a Comunidade Internacional e Portugal se integra cada ves mais num espaço que, qualquer que seja a teoria e a nomenclatura enquadradora, dita como mais ou menos original98, se vai federalizando, os constitucionalistas políticos, que não divergiriam muito dos académicos, consagrariam soluções que continuariam a não responder às exigências do momento, mantendo-se sempre áreas importantes de polémica. Basta ver pela doutrina, como diferentemente do que ocorre na Holanda, a cultura nacional não está preparada para consagrar explicitamente aquilo que não pode deixar de respeitar, isto é, a supremacia geral do direito comunitário sobre qualquer fonte de direito estadual.

A polémica manter-se-ia no essencial. Mas no que diz respeito apenas ao confronto entre normas internas e normas internacionais, a questão parece estar resolvida, e pacificamente, pelo Tribunal Constitucional. Nos seus vários Acórdãos de afirmação da recepção automática do direito convencional, sempre acrescenta, como consequência lógica, que, em face disso e «sendo a ratificação ou aprovação requisitos constitucionais de validade dos tratados, tal significa que as normas internacionais vigoram como tais e não como normas internas, possuindo eficácia supra-legal e detendo primazia na escala hierárquica, enquanto vincularem internacionalmente o Estado português, sobre o direito interno anterior e posterior, que as não pode alterar». Mas vejamos como a questão se tem colocado.

Em geral, há que saber se as normas de direito internacional ocupam uma posição idêntica à da lei ordinária intema, ou se dispõem de valor superior.

Obviamente, basta que elas não tenham valor inferior à norma legal para que, em princípio, elas derroguem (ou prevaleçam sobre) as normas de lei interna anterior que as contrarie, por aplicação directa do princípio de que a lei posterior der¬roga a anterior. Portanto, o valor legal não resolve a questão, porque admitiria a derrogação de um tratado por uma lei interna, isto é, que leis posteriores «derrogassem» a aplicação interna da norma internacional, o que o artigo 8.º da Constituição não permite, ao impor a sua vigência. Só se lhes reconhecer valor superior à lei interna, um valor supra¬legislativo, é que elas podem prevalecer sobre a lei interna posterior, de modo a tomar inválida ou ineficaz a lei que venha contrariar uma norma de direito internacional vigente na ordem interna. Só na medida em que o direito internacional recebido prevaleça sobre o direito ordinário interno, este não poderá contrariar aquele, ficando o Estado impedido de validamente editar normas que sejam discrepantes com as de direito internacional, enquanto se mantiver a vinculação do Estado a estas normas internacionais (o que, no caso de normas de direito internacional geral, não depende sequer da vontade do Estado).

Quanto às normas convencionais, o único meio de fazer cessar a vigência dessas normas na ordem interna será a desvinculação externa.

Quanto ao direito internacional público comum, há que entender se que a fórmula «fazem parte integrante do direito português» (n.º 1) aponta implicitamente para a supremacia das suas normas sobre as normas internas anteriores ou posteriores, uma vez que para vigorarem aquelas não deixam que estas vigorem quando discrepantes. Quanto ao direito internacional público convencional, a parte final do n.º2 « (...) vigoram na ordem interna (...), enquanto vin¬cularem internacionalmente o Estado Português», também é interpretável nesse sentido, pois se uma lei viesse alterar ou revogar na ordem interna as normas de Direito Internacional Público, este deixaria de vigorar na ordem interna, apesar de continuar a vin¬cular o Estado na ordem externa. No entanto, para alguns autores, aquele inciso é interpretável no sentido de estabelecer uma simples condi¬ção necessária, mas não suficiente, de vigência interna do direito internacional. Daí que a questão não seja pacífica na doutrina. Que dizer?

Vejamos as bases lógicas e positivas da posição adoptada.

Quanto ao direito internacional, há que deduzir, como consequência lógica, das fórmulas «fazem parte integrante do direito português» e «vigoram na ordem interna», a consagração da sua supralegalidade99. Mas há argumentos legais a favor da tese da primazia do direito inter¬nacional sobre o direito ordinário de fonte interna, como princípio geral. Com efeito, ela aparece explicitada em norma de uma lei de valor reforçado, a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Hoje, esta Lei do Tribunal Constitucional aponta literalmente para a «superiori¬dade paramétrica do direito internacional», na expressão de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ao admitir o recurso para o Tribunal Constitucional de «decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fun-damento na sua contrariedade com uma convenção internacional» (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º). Aqui se diz que o recurso é «restrito às questões de natureza jurídico constitucional e jurídico internacional» implicadas no caso (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, n.º.2 do artigo 71º), o que confere ao Tribunal Constitucional jus¬tamente a competência para decidir se, na circunstância, a norma de direito internacional público em causa prevalece ou não sobre a norma de direito interno com ela eventualmente descon¬forme100.

 Conforme referimos, muitos Acórdãos do Tribunal Constitucional têm declarado a primazia, mesmo que, com invocação da cláusula rebus sic stantibus, inapliquem o Direito Internacional, no respeito pelo que a própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados dispõe. Esta é a única solução consentânea com a filosofia constitucio¬nal em matéria de relações internacionais e as obrigações unionistas que Portugal criou com a adesão a Organizações internacionais criadoras de direito, sobretudo com a integração na União Europeia, assente na ideia de Comunidade de direito. Esta inexistiria sem a prevalência da sua ordem jurídica, a qual aliás obriga à aceitação de todo o seu acervo jurídico, designadamente pretoriano, onde se destaca a explicitação do princípio da primazia do direito supranacional. E que, no plano interno, tem a seu favor argumentos ínsitos à sistemática constitucional, como ocorre com a ordenação dos vários instrumentos normativos no artigo 119.º, referente à publicidade dos actos do Poder Político, onde as convenções (que, na linguagem da Constituição, abrangem quer os tratados solenes quer os acordos simplificados) sur¬gem logo a seguir às leis constitucionais (alínea b), precedendo as leis em geral, isto é, as ordinárias normais, comuns, e as de valor reforçado (a línea c) não distingue).

4.O PRINCÍPIO DA PRIMAZIA E A FISCALIZAÇÃO DA ILEGALIDADE DAS NORMAS DE DIREITO INTERNO POR DESRESPEITO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E DO DIREITO COMUNITÁRIO

Assente o princípio da primazia do DIP, tal como, desde logo, também do Direito Comunitário, três questões subsequentes importa considerar em ordem a ficarmos com o enquadramento fundamental da sua problemática: a) Qual a densificação do conceito de desrespeito do DIP por uma norma de direito interno? b) O princípio do valor superior aplica-se a todo o direito ordinário? c) O vício em causa é de inconstitucionalidade ou de ilegalidade? Quanto às exigências de vigência do DIP no direito interno, o desrespeito do DIP pode originar um vício de ilegalidade por incompatibilidade ou por desconformidade do direito interno com o direito internacional, na medida em que as normas internas em geral não devem contrariar as internacionais, ter uma disciplina incompatível com elas, enquanto a legislação interna que se pretenda dependente do direito supranacional, de execução e complementação, de desenvolvimento especificamente habilitado, devem conformar-se com as normas do DIP que as legitimam.

Quanto à segunda questão, o princípio da primazia do direito internacional público impõe-se na ordem jurídica portuguesa. Como e em que termos? A questão reduz-se em saber se o direito interno vale em termos gerais, qualquer que seja a natureza das normas de fonte interna ou externa envolvidas, ou se não será de estabelecer qualificações consoante a modalidade de direito internacional envolvida101 e a natureza da norma de direito interno implicada102. Há quem refira que, mesmo que haja de aceitar se, como princípio, a supremacia do direito internacional sobre a lei ordinária, pode afigurar se pouco consentâneo com o sistema constitucional de fontes que uma «lei de valor reforçado»103 tenha de ceder perante um sim¬ples acordo em forma simplificada, mesmo que aprovado pela Assembleia da República.

Mas nem a letra da CRP nem a da LOTC, nem a Jurisprudência constitucional distinguem ou distinguiram quanto á natureza das normas internas. Aliás, trata-se da explicitação operativa de um princípio constitucionalizado e não de uma criação da LOTC, porque se fosse aí criada e não na Constituição, então a supralegalidade seria relativa, ao não se impor às leis de valor reforçado, consagrando-se a primazia só em relação às leis ordinárias normais e não sobre toda a legislação infra-constitucional. Recorde-se que explicitação da superioridade em geral do DIP há muito ganhara a jurisprudência constitucional, que sempre a defendeu e situara o seu debate em saber se a inconstitucionalidade das normas que contrariem o DIP permitia ou não a aceitação da competência do Tribunal e, por vezes, introduzia o debate sobre a natureza inconstitucional ou meramente ilegal da norma interna104. Já quanto à natureza das normas internacionais, importa tecer sérias considerações, não para retirar á normação internacional a primazia geral, mas para constatar que há normas internacionais que se têm que colocar a nível hierárquico superior. As normas de Direito Internacional Público, em geral, e de direito comunitário em particular, valem com fonte de direito directa e autónoma da ordem jurídica interna, habilitando à normação interna executora e complementar. Quanto ao seu lugar no sistema normativo para efeitos da aplicação, nomeadamente dos princípios da legalidade (prioridade e prevalência da lei), para esse efeito a doutrina considera que as normas internacionais e supranacionais, comunitárias ou dos pilares não comunitários da União Europeia, valem como lei, sob o ponto de vista da base legal legitimadora dos regulamentos e da actividade adminis¬trativa em geral, sendo certo que normalmente a Administração nacional parece como Administração indirecta e executiva da União.

Quando exequíveis por si mesmas são directamente aplicáveis. E também podem ser objecto de regulamentação interna por via de regulamento, sem necessidade de intermedia-ção legislativa, se materialmente a Constituição o permitir. Com efeito, na incorporação ou regulamentação, quando necessárias, não pode deixar de respeitar se a reserva de lei que porventura exista na matéria em causa, bem como a eventual reserva de compe¬tência legislativa parlamentar. Quando a norma internacional ou supranacional fizer remissão para ulterior regulamentação interna, a qual não pode deixar de respeitar as regras de precedência da lei e de reserva de competência legislativa que sejam aplicá¬veis ao caso105.

Sem procurar aprofundar os termos de uma polémica em aberto, diremos apenas que, em nossa opinião, a solução a dar ao problema do posicionamento hierárquico do direito internacional na ordem interna portuguesa não poderá ser uma solução global ou «em bloco», mas sim uma solução que atenda em concreto à natureza e ao conteúdo das normas em causa. É esta, em traços gerais, a solução proposta pela tese pluralista de LA PERGOLA e, em Portugal, apoiada por FERNANDO LOUREIRO BASTOS 106. Há que considerar que o direito internacional geral ou comum terá necessariamente uma posição diferente do direito internacional convencional, posição que decorre mais da natureza e conteúdo das suas normas do que da letra da CRP art.º 8.º (que, aliás, neste aspecto é pouco ou nada esclarecedora). Quanto ao direito internacional convencional em geral, a solução deve atender ao conteúdo das normas em apreço. Por outras palavras, determinadas normas (e, em particular as que se relacionam com matérias de ius cogens) devem considerar-se como tendo um posicionamento superior ao da Constituição, enquanto as outras poderão situar se na mesma escala das normas legais. Esta parece ser a solução mais adequada em face da crescente proliferação de instrumentos internacionais (de direito convencional) sobre Direitos do Homem e do fenómeno de integração comunitária, exigindo uma colocação supra-constitucional pela natureza das coisas, que se impõm por si, independentemente do que diga ou não a CRP.

Por outro lado, há quem conclua que a norma do art.º 8 não contém pistas suficientes para a resolução deste problema107. E, para muitos autores, a solução desta controvérsia também não se obtém por uma abstracta tomada de posição sobre o dissídio monismo dualismo108.

A introdução de um órgão de fiscalização concentrada da constituciona¬lidade das leis, ou mais precisamente, a criação de um Tribunal Constitucio¬nal, constituiu uma oportunidade de transpor para o plano prático uma vexata questio da juspublicística portuguesa. Com efeito, embora não lhe competindo solucionar uma controvérsia que é acima de tudo doutrinal, o TC foi chamado por diversas vezes a pronunciar se sobre ques¬tões que envolviam, directa ou indirectamente, normas internacionais. E em numerosíssimas ocasiões o Tribunal teve ensejo de se pronunciar sobre a questão da desconformidade entre o disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º262/83, de 16/6, e o disposto no artigo 48.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, aprovada pela Convenção de Genebra, de 7 de Junho de 1930, falando no princípio da primazia da norma de Direito Internacional Público sobre as normas infraconstitucionais de fonte interna. Mas o princípio da primazia do Direito Internacional Público aparece referido na doutrina e jurisprudência do TC como impondo-se na ordem jurídica portuguesa em relação apenas ao direito não constitucional. Como e em que termos? Eis a questão, que trataremos mais abaixo109.

Quanto ao vício existente, concluindo-se, a partir da CRP, pelo princípio da primazia do direito internacional sobre o direito ordinário interno, importa saber qual o tipo de vício que atinge uma norma de direito interno que venha dispor contra uma norma de direito internacional vigente na ordem jurídica portuguesa que deva prevalecer sobre aquela. Há uma inconstitucionalidade, dado que ao contra¬riar a norma de direito internacional, a norma de direito interno infringe igualmente o princípio constitucional, mesmo que implícito, da primazia daquele, lesando assim também a Constituição (pelo menos de forma mediata, que seria inconstitucionalidade indirecta)?

Ou há apenas uma ilegalidade, na medida em que uma norma interna que infrinja uma norma de direito internacional, violando o princípio constitucional da primazia do direito internacio¬nal, traduz a violação das normas constitucionais sobre a hierarquia ou preferência nor¬mativa, o que é expressamente qualificado pela Constituição como ilegalidade e não como inconstitucionalidade, noutros casos aí concretizados, como são o da desconformidade das leis com os Estatutos das Regiões Autónomas ou com as leis de valor reforçado?

No caso em apreço estaremos também apenas perante mais uma modalidade, específica embora, de desconformidade normativa não integrante do conceito de constitucionalidade, equiparada àquela modalidade de ilegalidade por violação de leis dotadas de supremacia sobre outras leis? Ou é mais do que isso? Até porque a prevalência neste caso ocorre sobre as próprias leis de valor reforçado, o que não ocorre na situação anterior, em que é possível uma lei de valor reforçado, porque a supralegalidade é relativa e não absoluta como ocorre com os tratados. A minha posição sobre esta polémica é a seguinte: aqui a Constituição não trata d hierarquizar leis em face de outras leis. Mas de fazer aplicar sempre certas normas em face de quaisquer dessas leis em geral. Uma lei de valor reforçado pode ofender outra lei de valor reforçado e isso ser constitucional, constitucionalmente legal.

Portanto, pode não haver ilegalidade por ofensa de lei de valor reforçado, enquanto que nenhuma lei pode ofender o DIP e isso ser constitucional. Logo, isso é sempre inconstitucional: não há leis que legalmente possam ofender o DIP e outras que não. Assim sendo, a questão em relação ao DIP põe-se sempre e só em termos de constitucionalidade. Há inconstitucionalidade de norma interna qualquer que seja que ofenda uma norma internacional. Num caso, há inconstitucionalidade indirecta reconduzível a um conceito unitário de inconstitucionalidade disciplinada no essencial pelo regime desta, no outro, de inconstitucionalidade indirecta por ofensa de uma lei, estamos perante um fenómeno distinto, que é defensável classificar e eventualmente regular fora do conceito e do regime geral da inconstitucionalidade. Durante muito tempo, a doutrina dividiu se a este propósito. A jurisprudência dividiu-se sobretudo acerca das consequências da inconstitucionalidade em causa, com uma das secções do Tribunal Constitucional a considerar essas questões como questões de inconstitucionalidade que eram susceptíveis de apreciação110, enquanto a outra secção adoptava posição justa¬mente inversa111.

Mas no fundo, perpassa m concepções diferentes sobre a constitucionalidade em causa, com a 1.ª secção a não considerar as inconstitucionalidades diferentes ou equiparando-as neste caso. É óbvio que a qualificação do vício tinha interesse prático, sobretudo para efeitos de saber se aquele Tribunal podia conhecer dessas questões, pois, nos ter¬mos dos artigos 277.º e seguintes, ele só conhecia da inconstitucionalidade ou dos casos de ilegalidade aí mencionados, onde se não contava a descon¬formidade das normas internas com o direito internacional recebido.

Esta ausência, a considerar-se que era uma das modalidades controlável de ilegalidade, a partir do momento em que as outras aparecem previstas, empurrava a 1.ªa secção do TC para não deixar sentenças dos tribunais judiciais e administrativos de inaplicação de direito interno por invocada inconstitucionalidade ao ofender o DIP, a considerar existir inconstitucionalidae para poder considerar-se competente, solução que de qualquer modo não foi acolhida pela 2.ª secção que em princípio sem negar a inconstitucionalidade, considerava que as inconstitucionalidades indirectas não estavam abrangidas pela competência do TC. E o problema subsiste mesmo depois da 2ª revisão constitucional de 1989, dado que embora o TC passasse a ser competente para apreciar a ilegalidade de leis violadoras de leis reforçadas, a Constituição continua a não prever a competência do TC para se ocupar dos conflitos entre o direito internacional e o direito interno. Alguns autores agarram na Lei do Tribunal Constitucional, na redacção que lhe foi dada pela Lei orgânica n.º 85/89, de 7.9, dizendo que ela veio estabelecer que não se trata de um problema de constitucionalidade, mas sim de um problema específico de desconformidade entre normas infraconstitucionais, que está sujeito a um regime especial de fiscalização, só em pequena parte coincidente com o da fiscalização da constitucionalidade. Só a LOTC resolveria este conflito, através da inclusão da situação na figura da ilegalidade.

Hoje. a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) faz aplicar a este regime, com algumas adaptações o sistema de fiscalização concreta da constitu¬cionalidade [al.i) do n.º 1 do artigo 70.º e artigo 71.º], ao prever o recurso para o TC das decisões dos tribu¬nais que desapliquem norma legislativa (mas não outras normas) com fundamento em desconformidade com convenção internacional ou das que a apliquem em divergência com o decidido pelo TC sobre a matéria. De qualquer modo, a doutrina mais cotada foi entendendo que a solução judicial dos litígios suscitados a propósito da discre¬pância do direito interno com o direito internacional não compartilha do sistema de fiscalização da constitucionalidade (ao qual foi aliás equiparada a fiscalização de cer¬tos tipos de legalidade reforçada). Portanto, se, numa causa, o tribunal recusar a aplicação de norma de direito interno por violação de norma internacional, só haverá recurso para o Tribunal Constitucional no caso de se tratar de norma legislativa, e a competência do Tribunal Constitucional limita se a decidir as questões jurídico internacionais e jurídico constitucionais envolvidas (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional: art.º71.2), mas não a questão concreta da «ilegalidade» que deu origem ao recurso, ou seja, a desconformidade concreta das normas em litígio.

Assim, no célebre caso do art. 4.º do Decreto Lei n.º262/83, relativo à taxa de juros de mora das obrigações cambiárias, hoje o Tribunal Constitucional seria competente para decidir se a norma de direito internacional envolvida (a Lei Uniforme sobre letras e livranças) continuava ou não em vigor (ques¬tão jurídico internacional) e se ela detinha ou não primazia no direito interno (questão jurídico constitucional), mas não lhe competiria resolver o caso concreto de saber se a norma legal no caso era ou não desconforme com a norma internacional, questão que permanece na competência dos tribunais comuns. E não se tratando de inconstitucionalidade, também não pode haver fis¬calização preventiva nem fiscalização abstracta da desconformidade de normas inter¬nas com normas de direito internacional? A doutrina e a jurisprudência dominante defendem a supremacia do direito internacional público sobre o direito interno de natureza infra-constitucional. Basta citar, por todos, por exemplo, o expressivo ATC n.º158/85-1ª Secção, que, de modo mais desenvolvido, se pronunciou sobre o tema, para termos uma ideia do estado da questão e da posição perfilhada.

Segundo este Acórdão (sumário, pontos I a VII, 1ª parte): «O poder constituinte de 1976 entendeu consagrar o princípio da primazia do direito internacional convencional sobre a lei interna, resultando (expressamente) tal consagração do artigo 8, n.º 2 da Constituição. Assim sendo, a cessação da vigência, na ordem jurídica portuguesa, de uma norma convencional (ou a sua alteração) não pode resultar da lei interna, só podendo decorrer de desvinculação feita ou segundo os termos previstos na propria convenção ou, em caso de inexistencia de tal previsão, segundo os princípios de direito internacional geral ou comum que regem tal matéria e que se acham codificados nos artigos 54 a 64 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969 (...)».

E acrescenta o Acórdão: «Não contém a Lei Fundamental qualquer preceito que tipifique, directa ou expressamente, ou como inconstitucionalidade ou como ilegalidade, a violação de uma norma internacional por uma norma de direito interno. Assim, não havendo preceito constitucional ou legal que lhe negue, expressamente ou não, tal tipo de fiscalização, nada obsta a que o Tribunal Constitucional se declare competente, não só em virtude de determinadas exigências de política jurisprudencial que a matéria razoavelmente inspira, mas sobretudo porque tal posição, não sendo contrária ao espírito e à letra da Constituição, corresponde até a determinada interpretação do sistema de fiscalização previsto nos artigos 277 e seguintes da Lei Fundamental». Segundo estas normas, «as inconstitucionalidades não ocorrem apenas nos casos em que uma norma legal -e, em determinadas circunstâncias, uma norma regulamentar- atenta directamente contra uma norma ou princípio constitucional; pode ainda ocorrer quando, pelas suas consequências ou resultados, a contradição entre duas normas infraconstitucionais acarreta violação de uma norma ou principio que o poder constituinte, pela importância que lhe reconhece no sistema jurídico, entendeu consagrar e autonomizar no próprio texto constitucional».

 Ou seja, «o conceito de inconstitucionalidade constante do artigo 277, n.º 1, da Constituição contempla expressamente a violação dos princípios constitucionais nela consignados, pelo que, para efeitos do n.º1 do seu artigo 280.º, nada obriga a considerar haver inconstitucionalidade apenas quando haja violação directa de uma norma constitucional e não também quando uma norma infrinja outra que, segundo a Constituição, prevalece sobre ela». Ora, «Fazem parte integrante do direito português dois princípios fundamentais em matéria de direito de tratados, a saber: o princípio pacta sunt servanda e o princípio da boa fé na execução das obrigações internacionais, hoje codificados no artigo 26.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados». Portanto, «a eventual contradição entre o direito interno e o direito convencional não afectará apenas o artigo 8.º, n.º 2, da Constituição; identificar-se-á sempre, automática e necessariamente, com uma eventual contradição entre o mesmo direito interno e, agora, o direito internacional geral ou comum (artigo 8, n.º 1), por directa e imediata implicação dos princípios pacta sunt servanda e o da boa fé». Assim, «Existindo um princípio constitucional de primazia das normas internacionais, então quando uma norma legal infringe uma norma de direito internacional público, infringe também esse princípio constitucional (...)». É interessante verificar, como, desde logo, quando, a propósito da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, a que se reporta a sentença acima referida, e numerosos outros arestos, a jurisprudência, apesar da superioridade do direito internacional público, se pronunciou, com base na cláusula rebus sic stantibus, enquadrada segundo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT), o faz no sentido da validade do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º262/83, que viera alterar a taxa de juro convencionada internacionalmente111a.

O Tribunal Constitucional tem-se dividido, como já referimos, entre apreciar ou não a questão, em função das suas duas Secções, que segiram doutrina diferentes111b. Vemos a 2.ª Secção (ATC 212/85) a defender uma interpretação restritiva das competências do Tribunal, afirmando que: «o vício em causa, embora sendo de inconstituciona-lidade indirecta (... ) não permite que o Tribunal Constitucional seja competen¬te para dele tomar conhecimento em sede de controlo concreto da constitucio-nalidade», pois «só a constitucionalidade directa, que não a indirecta, está sujeita ao sistema específico de garantia constitucional da Constituição consagrado nos seus artigos 277.º e segs.». E a 1.ª Secção, pelo contrário, a não deixar nas mãos dos tribunais judiciais e administrativos a decisão final sobre invocadas questões de inconstitucionalidade, entendendo que: «a desconformidade entre lei interna e a Convenção Internacional, prefigurando o referido vício de inconstitucionalidade indi¬recta, implica que o Tribunal deva tomar conhecimento dele em sede de fiscalização concreta». Isto é, segunda esta óptica, só a norma que ataque por si mesma a Constituição, regra pu princípio nela consignado, é sindicalizável pelo Tribunal, o que na prática, declarando o Supremo Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Administrativo a não aplicação de uma norma interna por inconstitucionalidade derivada da ofensa a uma norma supranacional, a sua decisão em última instância ficava incontrolada no plano constitucional.

O que significava que havia inaplicações por inconstitucionalidade que escapavam ao controlo último do TC. Portanto, a 1ª Secção entende que o TC agirá não só na fase de controlo preventivo como na fase de controlo sucessivo, podendo anular a norma contrária ao direito internacional111b.

Hoje, como veremos, a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional prevê a apreciação por este destas situações denominadas de «ilegalidades» (desconformidades entre normas de valor hierárquico diferente), pelo que a competência do TC é ponto assente, mesmo para quem considere que aqui há simples ilegalidade e não uma inconstitucionalidade propriamente dita. No processo 100/92-1ª Secção, o TC não declara a inconstitucionalidade de uma norma nacional contrária a uma norma de direito convencional, com argumentos, que nos merecem demarcação e que, por isso, se citam (nos termos sumariados do Acórdão) e comentam: O Aresto começa por recordar que «O Tribunal Constitucional definiu já através de sua primeira secção uma reiterada jurisprudência no sentido de, mercê do funcionamento da cláusula rebus sic ctantibus e relativamente aos títulos nacionais, haver por caducado o compromisso convencional resultante das normas dos artigos 48.2 e 49.2 da Lei Uniforme sobre letras e livranças, deixando assim de existir em tais casos qualquer impedimento para a edição de normas, que elevem a taxa de juros de mora de letras emitidas e pagáveis em território português». E, depois de tecer algumas considerações sobre a cláusula em causa, admitida no direito internacional, dentro de condicionalismos e formalismos hoje enquadrados na CVDT, acrescenta um argumento complementar, em justificação final da suficiência de uma simples argumentação, feita a nível nacional no puro âmbito do processo legislativo (preâmbulo do diploma), de alteração das taxas de juros a praticar no plano nacional, em que diz: «De resto, o Estado português, porque não ratificou a Convenção de Viena, não está obrigado a socorrer-se de processo previsto nos seus artigos 65 e 67 para obter a extinção das normas em causa (respectivamente, as normas sobre o procedimento a seguir quanto à nulidade, de um tratado, cessação da sua vigência, recesso, ou suspensão da sua aplicação e os instrumentos a seguir para o efeito, isto é, que têm por objecto declarar a nulidade de um tratado, pôr-lhe fim, realizar o recesso ou suspender a aplicação do tratado).

 Ora, importa criticar esta argumentação de inaplicabilidade geral da Convenção de Viena de 1969, utilizada pelo TC, por falta de ratificação de um Estado, neste caso Portugal, porquanto a aplicação das normas deste Tratado de Viena de 1969, umas nunca dependeram e outras há muito já não dependem de qualquer aceitação dos Estados. Elas obrigam Portugal, como qualquer outro Estado, independentemente da referida ratificação, dado que a maioria das suas normas já era direito consuetudinário, que foi codificado, e as outras, entretanto, após a sua articulação na Convenção, até com oposições (como aconteceu, vg. com a consagração da normação sobre o ius cogens, que levou à sua não ratificação pela França), tornaram-se direito por esta via, regulando hoje o processo concretizador do princípio «pacta sunt servanda», sendo normação em geral de aplicação na sociedade internacional, mesmo para os Estados não signatários ou não ratificantes, como é pacífico na doutrina jusinternacionalista (independentemente da possibilidade de invocação autónoma do direito costumeiro sobre a matéria, o que é outra questão), tendo assim entrado na ordem jurídica portuguesa automaticamente, nos termos do art.º 8.1 da CRP.

E, portanto, independentemente da existência da factualidade substantiva justificativa da invocação da cláusula rebus sic stantibus em relação a uma norma de um tratado, questão e análise em que não entramos, não é possível emitir uma norma nacional que desrespeite esse tratado, sem ou antes de cumprir as regras procedimentais vigentes na ordem jurídica internacional para fazer funcionar a referida cláusula112. Há sentenças em que o Tribunal se apreciou causas envolvendo alegadas violações de direitos tutelados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem ou pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem113, ou normas da Organização Internacional do Trabalho114. Tal como também se vê envolvido com causas que contêm referências a normas de Direito Comunitário115 ou à Concordata celebrada com a Santa Sé115a. Quanto ao ATC 184/89-P116, as normas apreciadas foram o regulamento de aplicação ao território nacional do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, aprovado pela Regulamento Comunitário 44/86, de 5.6.1986117. Aqui, não se trata de apreciar este Regulamento, ou as suas possíveis contradições com a CRP, nem eventuais contradições das suas normas com o direito administrativo comunitário que vem executar, mas em causa está puramente a questão do valor da norma interna, tida como ferida de inconstitucionalidade por ser matéria de regulação legal e não regulamentar. E, portanto, o TC posiciona-se fora da nossa temática.

Vejamos. A decisão declara a inconstitucionalidade, com força obrigatoria geral, de certas normas118 . No seu percurso fundamentador, o Tribunal Constitucional diz que é competente para «conhecer, em fiscalização abstracta sucessiva, da inconstitucionalidade das normas de um Regulamento publicado em anexo a uma Resolução do Conselho de Ministros e dela fazendo parte integrante, pois que as Resoluções do Conselho de Ministros que tenham natureza normativa são susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade ou ilegalidade»119. Ora para dar execução ao Regulamento comunitário, o Governo podia, em princípio (desde que a matéria não envolva outras exigências constitucionais referentes ao processo e forma legislativa), utilizar, como utilizou, um regulamento. Face ao «sistema de recepção automática consagrado na Constituição». E um regulamento, em obediência ao «princípio da precedencia da lei», segundo a qual não existe poder regulamentar sem fundamento numa lei anterior, pode reportar-se directamente a normas do Direito internacional, designadamente convencional, ou de direito comunitário. No que se reporta ao regulamento nacional impugnado não tinha que ter a forma de decreto regulamentar quer por a tanto não ser obrigado, nem pelo Regulamento comunitário120, nem pelo direito português, por não ser um regulamento independente121.

Com efeito, invocando o Regulamento comunitário, indica expressamente a «lei» que visa regulamentar. Não é um regulamento autónomo, sendo legal, desde que não trate matéria reservada ao legislador e respeite em geral as normas superiores do ordenamento jurídico, de fonte nacional ou supranacional. No entanto, algumas normas do Regulamento impugnado122 não respeitam o estatuto competencial das autarquias locais, incluído na «reserva relativa de competencia legislativa parlamentar», uma vez que aí se dispõe sobre a apresentação de candidaturas à intervenção do FEDER, por parte dos municípios e associações de municípios, matéria incluída nas atribuições genericamente fixadas para as autarquias locais, na Lei das Autarquias Locais123. E outras normas124 contêm regras sobre a repartição dos recursos do FEDER entre, por um lado, a Administração central e os municípios, e por outro, pelos municípios entre si, matéria abrangida pelo regime das finanças locais, que se inclui na reserva relativa de competência legislativa parlamentar. Acontece que as normas que declaram quais as "orientações e normas aplicáveis" para a execução do Regulamento do FEDER (art.º2), definem as «prioridades de política regional» (art.º4) e caracterizam os sectores prioritários de investimento público para efeitos da aplicação do Regulamento comunitário (art.º5) e definem os objectos e as formas de contribuição e de intervenção da Administração em cada operação integrada de desenvolvimento (n.º 1 do artigo 21, ao atribuir ao Conselho de Ministros a competência para tratar matéria reservada pela Constituição à lei, assim como outras normas, designadamente os n.ºs 3 e 4 do artigo 23), contêm disciplina inicial que só poderia constar de diploma legislativo e são, por isso, inconstitucionais por violação do princípio da precedência da lei e das normas que definem as competências legislativas. Continua ainda hoje a não ser pacífica a questão de saber se a inconstitucionalidade contemplada pelo sistema de fiscalização é apenas a inconstitucionalidade directa, ou seja, a inconstitucionalidade produzida pela infracção directa e imediata das normas constitucionais (ou recebidas pela Constituição), ou também a inconstitucionalidade indirecta ou mediata. Trata se das situações em que uma norma viola outra norma, que, embora infraconsti¬tucional, goza de supremacia (conferida pela Constituição) sobre a primeira. Estas relações de subordinação observam se não apenas nas relações entre as normas infra¬legislativas e as leis que evidentemente não entram na categoria da inconstitucionali¬dade mas também nas relações das próprias leis com certas outras leis ou com as normas de direito internacional, sendo aqui que o problema se põe.

 À partida há casos em que a violação da «norma interposta» se traduz necessariamente numa violação directa da Constituição. Assim, se um decreto¬ lei autorizado desrespeita uma lei de autorização da AR, ou se um Decreto Lei de desenvolvimento desrespeita a respectiva lei de bases em matéria de reserva de com¬petência legislativa da AR, então a violação da lei de autorização ou da lei de bases envolve automaticamente violação da própria norma constitucional de reserva de com¬petência legislativa parlamentar, por ser emitida «a descoberto». Noutros casos, porém, ao desrespeitar a norma de grau superior ou de precedên¬cia, a norma subordinada só infringe o respectivo princípio constitucional da hierar¬quia ou da primazia (por exemplo, a regra de primazia do direito internacional sobre o direito interno, dos estatutos regionais sobre as demais leis gerais da República, das leis quadro sobre as leis de concretização). A única violação da Constituição é mesmo a da norma ou princípio constitucional que estabelece a primazia ou a hierarquia. O único interesse constitucional aí em causa é um interesse de ordenação do sistema jurídico e de repartição defunções normativas. Nada distingue essas regras de prima¬zia ou de hierarquia da regra de respeito das leis pelos regulamentos (salvo o facto de estarem em causa actos legislativos).

 Nesses casos, portanto, a violação do princípio da primazia não preenche a figura da inconstitucional idade, nem a respectiva fiscaliza¬ção cabe na fiscalização da constitucional idade. Na verdade, a Constituição não considerou como inconstitucionalidade, mas sim como ilegalidade, a «desconformidade» normativa de normas legislativas com os estatutos regionais e com as leis gerais da República nem com as leis de valor refor¬çado, entre as quais se contam as «leis orgânicas» e seguramente várias das leis acima referidas (arts. 115.2, 280.2 e 281.1). Todavia, submeteu essas formas de ilegali¬dade a um regime semelhante ao da fiscalização da constitucionalidade (arts. 280 e 281), o que revela a especificidade daquela face às formas comuns de ilegalidade. Como se viu, o conceito de lei reforçada deve ser entendido no sentido de abran¬ger todas aquelas situações em que, por força da Constituição, certas leis servem de parâmetro ou de precedente necessário de outras leis, o que abrange a generalidade das situações de «inconstitucionalidade indirecta» tradicionalmente consideradas. Isto não quer dizer que tenha deixado de haver o problema suscitado quanto a outras situações que não se possam reconduzir a nenhuma daquelas categorias específicas de ilegali¬dade (relação das leis com as normas de direito internacional, ou com as normas pro-cedimentais contidas nos regimentos parlamentares).

A LOTC, no seu art.º 70,1, i), na redacção criada em 1989 (Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro), prevê que «Cabe recurso para o TC, em secção, das decisões dos tribunais: (...) d) que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo TC».

Em síntese, hoje, o controlo da incompatibilidade ou inconformidade do direito interno com o direito internacional é feito quer difusamente pelos tribunais em geral, quer pelo TC, a título de fiscalização da ilegalidade, correspondendo em tudo a um controlo da constitucionalidade no que se reporta a diploma legislativo, com excepção da apreciação preventiva que, neste caso, não existe. Portanto, passa em termos de actologia e controlo, há que referir, desde já, que o sistema de fiscalização da constitucionalidade não abrange todos os actos do Estado, nem apenas a fiscalização da constitucionalidade em si mesma, directa.

A fiscalização da consti¬tucionalidade refere se quase exclusivamente aos actos normativos. E a Constituição regula também a fiscalização de certas formas qualificadas de ilegalidade, garantindo o respeito de normas de fonte externa e de vigência constitucionalmente garantida e de certas leis dotadas de particular relevância, nomeadamente os Estatutos das Regiões Autónomas e as leis gerais da República, no confronto com a autonomia normativa regional, e as leis reforçadas, no confronto com as demais leis ordinárias. Os artigos 277 e 278 da Constituição, bem como a epígrafe do «título» em que se inserem, só falam em inconstitucionalidade. Mas a verdade é que não é só a inconstitucionalidade que está em causa, pois a Constituição estabelece hoje um regime idêntico para a fiscalização de certas formas de ilegalidade, nomeadamente a resul¬tante da violação das leis reforçadas, dos estatutos das regiões autónomas e das leis gerais da República (art.º 280.2 e 4 a 6, e 281, b) a d e n.º3).

Quanto à fiscalização das normas regionais que desrespeitem os estatutos ou as leis gerais da República, e dos diplomas da República que desrespeitem os estatutos regionais, trata se de ilegalidades com particular relevância constitucional, pois elas têm a ver com a figura das Regiões Autónomas, na unidade do estado, detendo elas também poder legislativo. Trata se, ao fim e ao cabo, por um lado, de garantir a autonomia regional contra as incursões do Estado, e por outro lado, de garantir a unidade nor¬mativa do Estado contra os abusos das Regiões Autónomas. Aí estão envolvidos con¬flitos orgânicos entre o Estado e entidades infra-estaduais dotadas de autonomia política, que, à semelhança dos conflitos de tipo federal, constituem matéria do com¬petência do TC em vários países.

No que respeita à outra modalidade a das leis que desrespeitem leis de valor reforçado, está em causa a garantia de leis a que a própria Constituição atribui valor paramétrico em relação a outras leis, devendo portanto prevalecer sobre elas, ou que, por serem leis politicamente muito «sensíveis», estão sujeitas a processos mais exigentes de elaboração e aprovação e que, por isso, não podem ser contrariadas por leis «comuns». Trata se de leis que em geral têm um papel especial na regulação do processo político, podendo dizer se em relação a algumas delas que, não tendo embora valor formalmente constitucional, regulam porém assuntos material¬mente constitucionais.

No que se reporta a normas que contrariem tratados internacionais a doutrina divide-se sobre a ideia da existência de inconstitucionalidade indirecta ou ilegalidade, como acima expusemos, sendo certo que a quetão carece de relevo especial dado que hoje o TC aprecia também este tipo de ilegalidades para que a situação aponta. A LOTC acrescenta hoje expressamente aos casos de ilegalidade anteriormente configurados, o da desconformidade do legislação interna com o DIP. Neste plano, importa referir que, quanto às normas desrespeitadoras do DIP, o TC só fiscaliza a recusa da aplicação de leis que contradigam o DIP, mas isso não significa indiferença do ordenamento jurídico pelas outras normas inconstitucionais, pois os tribunais não podem aplicar regulamentos ou actos administrativos contra o disposto no DIP, o que acontece, diferentemente do que se passa com as normas lgais, é que o TC não aprecia essa ilegalidade nem sequer com base em decisões jurisdicionais que a envolvam, tudo se resolvendo no sistema de reapreciações das causas da organização jurisdicional não constitucional.

5.A APLICAÇÃO DO DIREITO SUPRALEGAL, CONSTITUCIONAL E SUPRANACIONAL, PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Hoje, entre os princípios integrantes da ideia de Estado de Direito, afectando directamente a administração pública, temos, desde logo, o princípio do respeito pelo bloco da normatividade e mesmo pelas suas próprias decisões (em geral sujeita, em todos os seus tipos de intervenção social, ao princípio da legalidade positiva, ou melhor ao principio da juridicidade), o princípio da tutela judicial efectiva e o princípio da garantia patrimonial, além da imperiosidade de respeitar o princípio da divisão de poderes e as regras estruturais do sistema normativo que traduzam a Administração como organização e actividade ligada a um dos poderes e a sua subordinação aos outros poderes.

Portanto, uma dimensão importante referente ao Estado nomocrático, tem que ver com a submissão da Administração ao direito aplicável em geral no país. Vejamos, pois, alguns tópicos explicativos, referentes às manifestações históricas do Estado de Direito em relação à Administração Pública. Há uma relação entre acção administrativa e direito. Mas será que essa relação é indispensável? Historicamente, essa relação nem sempre existiu.

E além disso, há modelos diferentes de submissão da Administração ao Direito. Com efeito, a Administração pode, teoricamente, não estar submetida ao Direito. Por exemplo, antes dos regimes democráticos, durante as monarquias absolutas, a administração actuava, de certo modo, arbitrariamente. Isso não significa que não houvesse regras. Pode haver regras sem haver subordinação ao Direito. Se há regras mas a Administração tem toda a liberdade de as fazer e de as mudar, se elas se criam para ter influência apenas no círculo dos administradores, é óbvio que não nos encontramos numa Administração submetida ao Direito.

Uma Administração submetida ao Direito é aquela em que as regras existem para a defesa do cidadão e, quando não são cumpridas, aquele tem o direito de reagir, se se sentir prejudicado por isso.

O chamado Estado de Polícia é o Estado em que a Administração, que nessa altura se designava Polícia, está submetida a uma dada regulamentação, mas não tendo essa regulamentação qualquer valor jurídico no plano exterior à Administração. Era, assim, ainda a Administração no século XVIII, no tempo do Absolutismo, do Iluminismo ou do Despotismo Iluminado. Ainda hoje, por vezes, se encontram vestígios deste modo de actuar em certos documentos de valor interno, chamados circulares ou directrizes, que são documentos que têm, por vezes, repercussões, que não são neutras, na vida dos cidadãos, bem como nos seus interesses. A Administração tem de ser objecto de controlo exterior. Não pode ser um simples assunto interno. Por contraposição ao Estado de Polícia surge-nos, assim, o Estado de Direito, em que é suposto reger totalmente o princípio da legalidade. O Estado de Direito é característico dos regimes modernos, dos regimes democráticos.

Os seus princípios fundamentais são o liberalismo político, que nasceu com a Revolução Francesa que teve, desde logo, a ver com a ideologia da criação e defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, a ideologia de 1789. A existência de separação de poderes está ligada à prevenção contra a queda na ditadura. Os poderes devem ser divididos por várias entidades, de modo a não haver a hegemonia de uma só pessoa e, por outro lado, devem assentar na supremacia do Parlamento, órgão directamente legitimado pelo Povo. A lei, uma vez criada, tem de ser respeitada - é este o papel da Administração. É daqui que vem o hábito de chamar aos Governos o Poder Executivo. A Administração tinha, e ainda hoje tem, uma função essencialmente executiva, embora também já possa legislar. A Administração também pode criar regulamentos, mas estes têm que ser permitidos pela lei, nunca podem ser independentes desta.

O princípio da legalidade (positiva: só é legítimo actuar nas áreas em que a lei expressamente dá poderes para tal, sendo a lei que define os limites em que ser pode actuar), embora, de facto, não seja aplicado em relação à actividade prestacional e de fomento, senão na sua formulação de vinculação negativa, é fundamental para enquadrar e legitimar a Administração Pública. Mas, hoje, existe também o princípio da constitucionalidade, ou seja, o princípio da supremacia da Constituição. A Constituição é a regra soberana. Todos os Poderes lhe devem respeito e, portanto, a Administração deve-lhe também respeito.

Tema importante é o da posição dos cidadãos perante normas inconstitucionais: inconstitucionalidade das normas administrativas e sistema institucional de controlo pela Administração e pelos tribunais: a inconstitucionalidade em geral, noção de inconstitucionalidade, o sistema constitucional de garantia da Constituição, a hierarquia das normas, inconstitucionalidade e ilegalidade controlável pelo Tribunal Constitucional de normas desconformes com leis ordinárias paraconstitucionais, tipologia da inconstitucionalidade e das formas de invalidade das normas inconstitucionais, inconstitucionalidade e desvio de poder legislativo; norma jurídica, imperatividade e meios de garantia de sua efectividade; sistemas de garantia institucional e o modelo hiperbólico português: caracterização geral, falta de recurso geral de amparo, a fiscalização difusa e concentrada, critérios substantivos e processuais de fiscalização, consequências da declaração de inconstitucionalidade e, por fim, a margem de sindicabilidade administrativa da constitucionalidade: a AP, princípio da legalidade e princípio da constitucionalidade, a AP perante norma declarada inconstitucional erga omnes, a AP e as situações de inexistência jurídica-constitucional, a AP e as situações de mera irregularidade orgânico-formal, a AP perante a normal figura de paranulidade da norma, AP e direito de resistência dos cidadãos no caso de matéria de Direitos, Liberdades e Garantias, os requisitos orgânicos gerais de ponderação administrativa da inaplicabilidade da norma, os requisitos substantivos da inaplicabilidade da norma, critério de invalidade manifesta, a AP estatal e a infra-estatal no caso da inconstitucionalidade orgânica, o caso da inconstitucionalidade formal, vícios de procedimento documentado, vícios de forma, o caso de inconstitucionalidade material manifesta, as situações consideradas na doutrina unânime, as situações já apreciadas pelo Tribunal Constitucional em fiscalização preventiva e sucessiva, as normas dependentes de leis de revisão constitucional com ofensa do clausulado sobre limites materiais, as normas e actos praticados com ofensa do artigo 19.º da Constituição, a AP e a apreciação jurisdicional de regulamentos e actos administrativos, a situação de regulamentos inconstitucionais ou ilegais em face de leis paraconstitucionais, a situação de normas e actos dependentes de leis paraconstitucionais declaradas inconstitucionais, a declaração de inconstitucionalidade e a modulação dos seus efeitos na actividade disciplinar e contra-ordenacional da AP, a interdição de indefesa procedimental e processual e o ordenamento jurídico português.

O regime geral das inconstitucionalidades é a invalidade na forma de nulidade de regime misto , enquanto segue os elementos caracterizadores da anulabilidade (as autoridades e os cidadãos devem obedecer à norma enquanto não declarada nula) e da nulidade (efeitos ex tunc, porque ab inicio inválida, pois a declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional retroage ao momento da sua produção: nulidade radical, de direito; excepto se o Tribunal Constitucional decidir diferentemente e com possíveis efeitos putativos, mas em direito constitucional determinar-se o respeito por expectativas razoáveis e com base em condutas públicas ou particulares a respeitar (n.º 4 do artigo 282.º), tal implica um desvio que revela uma nulidade não radical. Mas e qual a posição da Administração face a normas inconstitucionais que seja chamada a aplicar em casos concretos ou a executar?

No que concerne à aplicação da Constituição pela Administração Pública, em geral (e mesmo em caso de normas de aplicabilidade directa ou de exequibilidade de per se, se acontece haver normas de desenvolvimento desconformes), tem-se afirmado a tese da não atribuição constitucional de poderes de inaplicação de normas aos órgãos administrativos , por força do princípio da legalidade, quando estas sejam inconstitucionais, perante o artigo 204.º, o qual só manda fazê-lo aos tribunais. Mas tal é, nesta leitura radical, questionável, pois a Constituição da República Portuguesa manda a todas as autoridades respeitar a Constituição e há um afloramento de um princípio que deve reputar-se geral, nos nºs 6 e 7 do artigo 19.º (não respeito dos limites dos poderes materiais e orgânicos em situação de estado de sítio).

Assim, parece não dever seguir-se totalmente por esta posição, desde que os actos dos distintos poderes possam ser controlados pelos tribunais, o que só não ocorre na actividade governativa: actos políticos, constitucionais ou de governo do Executivo. Esta tese de exclusão por princípio não o permitiria nem sequer, pelo menos, quando haja direito de resistência, no caso de direitos fundamentais?

Somos de parecer que não há, por princípio, uma faculdade genérica de inaplicar normas com fundamento na invocação da inconstitucionalidade, mas (sem prejuízo de tal só dever caber aos órgãos máximos da Administração Pública, suscitada a questão pelos subalternos, e da consagrada sindicabilidade jurisdicional de todos os actos pelo destinatário da decisão, neste caso com inaplicação da lei ou regulamento) em casos limite de inconstitucionalidade manifesta ou quando a doutrina ou a jurisprudência já se venham pronunciando nesse sentido, isto é, desde logo quando os tribunais ou o Tribunal Constitucional, mesmo sem declaração obrigatória (porque neste caso é pacífico: não há aplicação, dada a sua eliminação do ordenamento jurídico), se pronunciaram já nesse sentido, a Administração Pública pode decidir os casos em apreciação, com inaplicação da norma considerada inconstitucional, notificando sempre do fundamento de suas decisões concretas os destinatários, para efeito de impugnação. Directamente, sobre as normas internacionais e Unionistas europeias, e mesmo decisões devidamente aprovadas, de fonte supranacional, se elas são aplicáveis pelos cidadãos e tribunais, nenhum a razão, dentro dos mesmos critérios de cautela e sujeição ao controlo jurisdicional a posteriori de tal apreciação, existe para que, também elas, seguindo a mesma lógica de raciocínio, não sejam de aplicação pela Administração Pública, com prejuízo das normas legais e regulamentares que as contradigam, tal aliás devendo entender-se resultante também do texto constitucional, integrando o grande bloco da legalidade a que a Administração Pública está sujeita.

6.A FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS EM GERAL

6.1.O sistema geral de controlo da constitucionalidade e seus objectivos

6.1.1. O objectivo do controlo e a supremacia constitucional

O objectivo da fiscalização da constitucionalidade é garantir a aplicação, ou seja, a vigência e a subsistência das normas constitucionais125. Ela visa ou prevenir a criação de nor¬mas inconstitucionais (controlo preventivo da constitucionalidade), ou eliminar novas normas, repri¬mindo as violações da Constituição (fiscalização da inconstitucionalidade por acção) ou fazer cumprir e executar as suas imposições e directivas (fiscalização da inconstitucionalidade por omissão). A ordenação da matéria na Lei Fundamental começa pela definição da inconstitucionalidade por acção, regulando cada uma das suas modalidades: a fiscalização preventiva e a fiscalização sucessiva, e, dentro desta, a fiscalização concreta e a fiscalização abstracta, e terminando com a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão. Isto é, o sistema do controlo da constitucionalidade define o alcance da própria Constituição como lei fundamental, ao preservar a sua onticidade, ao apresentar-se com virtualidade suficiente para «garantir e preservar a Constituição contra os actos ou omissões do Estado que a infrinjam»126. Através da imposição da fiscalização da constitucionalidade, pretende-se afirmar a supremacia da Constituição como lei superior, fundamental, da ordem jurídica, como Grundnorm, imposta a toda a actividade do Estado incluindo a normativa, em ordem essencialmente a evitar que o legislador quotidiano, mesmo democrático, possa ser liberticida. Ela concretiza e garante a ideia de que Constituição é a lei básica do país, a que toda a ordem jurídica deve conformidade. Ela é o corolário da evolução natural da ideia de constituição, que passou de texto puramente programático não normativo para uma concepção pan-normativa, mesmo que com normas de aplicação diferida (direitos sociais, etc.). Hoje, estamos perante a consideração da Constituição como facto jurídico, como realidade normativa fundamen¬tal da ordem jurídica, impondo o respeito pelo topo da hierarquia normativa. E como norma do topo do ordenamento, norma suprema do país, todas as demais normas a devem respeitar, não aceitando a doutrina constitucionalista em geral a distinção entre as normas criadas ao abrigo da sua ordenação e as outras normas também vigentes no seu espaço de ordenação, mas de fonte não organicamente organizada por ela, porque oriundas de instituições sobreintegradoras127.

6.1.2.O sistema orgânico de controlo da constitucionalidade

Quanto aos órgãos de apreciação da constitucionalidade, eles são os tribunais, quer os tribunais comuns em geral quer o Tribunal Constitucional em particular. Trata se de um sistema integralmente jurisdicional. Historicamente, a emergência do conceito de fiscalização da constitucionalidade ficou assinalada por dois elementos fundamentais: a possibilidade de declarar a ilegitimidade de uma norma por motivo de desrespeito pela Constituição e a entrega dessa competência a instâncias independentes, de natureza judicial, sejam os tribunais comuns («sistema americano»), seja um tribunal especializado, um tribunal constitucional («sistema austríaco», de HANS KELSEN). O que há de original no sistema português é que, em vez de optar por um dos modelos de fiscalização jurisdicional acima referidos, a CRP conjugou os dois, integrando as potencialidades de um e de outro128. Quanto às origens e à formação do sistema de fiscalização, há que dizer no que se refere ao sistema pré constitucional, que o sistema de fiscalização da constitucionalidade definido na Constituição tem as suas raízes na tradição constitucional portuguesa nesta matéria e nas soluções da ordem constitucional revolucionária pré constitu-cional.

O sistema tradicional entre nós era o americano, de controlo judicial difuso, inci¬dental e concreto introduzido pela Constituição de 1911 (artigo 63.º) e que transitou para a Constituição de 1933 (artigo 123.º). Mas esta, na revisão de 1971, veio acrescentar à fiscalização concreta a fiscalização abstracta concentrada, conferindo à Assembleia Nacional a faculdade de declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral (n.º2 do artigo 91.º da Constituição). Este sistema misto foi mantido na estrutura constitucional provisó-ria após o 25 de Abril, e logo a Lei n.º 3/74, de 14.5, reiterando essa componente de controlo concentrado, veio reconhecer ao Conselho de Estado competência para declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de quaisquer normas (n.º 3 do artigo 13.º).

Com a insti-tucionalização do Conselho da Revolução (Lei n.º5/75, de 14.3) e da Comissão Constitucional, este rece¬beu as competências até então atribuídas ao Conselho de Estado (artigo 62.º), incluindo as de órgão de controlo da constitucionalidade. Quanto ao sistema originário da Constituição actual, ele aparece como um sistema extremamente complexo, combinando, portanto, elementos de vários modelos. É um modelo pluralmente misto de controlo, modelo político e jurisdicional, modelo difuso e concentrado, de impugnação directa e incidental, de efei¬tos abstractos e concretos. No fundo, segue as características essenciais do sistema misto ensaiado na ordem constitucio¬nal tutelada pelos militares, transitoriamente instaurada após a Revolução de 25 de Abril de 1974, combinando a fiscalização judicial difusa com a fiscalização não judicial concentrada abstracta, efectivada por uma comissão do Conselho (militar) da Revolução, mas introdu¬zindo-lhe elementos profundamente inovadores. Desde logo, era original a criação de dois novos tipos de fiscalização: a fiscalização das omissões inconstitucionais e a fiscalização preventiva dos actos legislativos ou equiparados; e a criação do um novo órgão de fiscalização, a Comissão Constitucional, de composi¬ção e com funções híbridas129; o carácter não definitivo das decisões dos tribunais que julgassem no sentido da inconstitucionalidade, pois tais decisões eram recorríveis para a Comissão (recurso obrigatório no caso do Ministério Público, em alguns casos).

A revisão constitucional de 1982, a maior e mais inovadora, de reconfiguração democrática em face do poder militar e revolucionário130, manteve o sistema complexo consa-grado no texto originário.

A principal inovação (para além de outras relati¬vas ao regime dos vários tipos de controlo) residiu na criação do Tribunal Constitucional em substituição da Comissão Constitucional, resquício do pacto constitucional de 1975 entre o Movimento das Forças Armadas e os Partidos, que então chegava ao fim tal como o próprio Conselho da revolução131. Prefigurado pela antiga Comissão Constitucional, o Tribunal Constitucional, na linha da orientação europeia deste século, surge confor¬mado pela Constituição como o principal órgão da justiça constitucional, dispondo da competência para decidir, com carácter definitivo, sobre ques¬tões de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade a ela equiparáveis), tanto em via de recurso das decisões dos outros tribunais, proferidas a título incidental nos feitos submetidos a julgamento, qualquer que seja o sentido da deci¬são132, como a título principal e com força obri¬gatória geral, decidindo as questões que lhe sejam apresentadas directa¬mente por certas entidades individualizadas na Constituição.

A primeira revisão estendeu, também, o sistema de fiscalização da constitucionalidade a alguns casos especiais de ilegalidade, nomeada¬mente a fiscalização das infracções aos Estatutos das Regiões Autónomas por parte dos diplomas regionais ou dos órgãos de soberania, bem como das infracções das «leis gerais da República» por parte dos diplomas regionais. Na segunda revisão constitucional de 1989, não se verificaram modificações substanciais quanto ao sistema de fiscalização. As principais inovações consistiram no alargamento do âmbito material do sistema de fiscalização, estendendo o ao «bloco de legalidade reforçada», com a consequente extensão da competência de fiscalização dos tribunais e do Tribunal Constitucional, de modo a abranger a ilegalidade dos actos legislativos desconformes com as leis de valor reforçado (alínea a) do artigo 280.º; e 1, alínea a) do artigo 281.º e a ampliação da competência para a fiscalização preventiva da nova cate-goria das leis orgânicas (n.º4, 5 e 6 do artigo 278.º). 6.1.3.A apreciação da constitucionalidade e a interpretação conforme A questão da constitucionalidade pressupõe sempre uma operação de interpretação das normas fiscalizadas.

A inconstitucionalidade traduz se na descon¬formidade ou incompatibilidade entre uma norma ou princípio constitucional e uma norma infraconstitucional. Ora isso implica necessariamente uma tarefa de interpreta¬ção não apenas da Constituição mas também da norma infraconstitucional em causa. Pode acontecer que uma norma infraconstitucional tenha mais do que um sentido, e que, com um deles viole a Constituição, ao passo que com outro isso não suceda. Em sede de fiscalização abstracta, em que é o próprio TC que procede à tarefa de confronto das duas normas, sem ter de apreciar nenhuma decisão anterior de outro tri¬bunal, nada impede (e tudo requer) que a norma só seja declarada inconstitucional, se nenhuma das interpretações possíveis da norma evitar esse resultado (interpretação conforme à Constituição). Ponto é que a interpretação tida por conforme à Constituição seja comportável pela norma, não sendo necessário «forçar» esta de modo a admitir tal interpretação133.

Nos casos em que a norma já vigora com uma interpretação doutrinária jurisprudencial pacífica, em princípio o TC conforma-se com ela, e é com esse sentido consolidado que nos seus Acórdãos a procura confrontar com a Constituição, embora não esteja vinculado a essa interpretação, nada o impedindo de um exercício hermenêutico actualista constitucionalizador. No caso da fiscalização concreta, cabe aos tribunais comuns e administrativos efectuar, se necessário, uma interpretação conforme à Constituição, só devendo julgar a norma inconstitucional se ela não comportar razoavelmente um sentido com¬patível com aquela. Mas, depois, nos recursos de constitucionalidade, o TC não vai apreciar a questão da constitucionalidade em abstracto, mas sim no quadro da decisão recorrida, ou seja, justamente para confirmar ou revogar a decisão recorrida quanto à solução dada à questão da constitucionalidade.

O problema com que o TC se vê confrontado é o de saber se pode basear a sua decisão num diferente entendimento da norma em questão. Também, neste caso, a resposta é que pode, pois não existe qualquer norma constitucional que o interdite ou balize o seu poder interpretativo no exercício da actividade fiscalizadora, embora haja quem defenda, até com base em considerações do próprio Tribunal, que será «mais conforme com o sentido do recurso de constitucionalidade» (o que é questionável, até por este estar também concebido como uma passadeira para a eliminação da norma da ordem jurídica) e com «a autonomia dos tribunais comuns no âmbito do sistema de controlo difuso na aplicação do direito ordinário», que, em princípio, a norma deve ser tomada com o sentido concreto que o tribunal recorrido lhe atribuiu, «não devendo o TC afastar se, senão excepcionalmente, do entendimento que aquele fez da norma fiscalizada134». Compreende-se a argumentação e o seu acerto de princípio, mas pode perguntar-se se não é levar longe de mais esta autonomia, uma autonomia de julgamento, mas que convive com a existência, no nosso sistema misto, de um poder de controlo da constitucionalidade difusa, que está sujeito a recurso definitivo para o TC.

E onde está a fronteira entre a normalidade e a excepcionalidade, sempre que o TC, para salvar a Constituição, interprete a norma em sentido diferente do tribunal recorrido ou considere que há inconstitucionalidade precisamente por esse sentido só forçadamente exercitar uma interpretação conforme à Constituição, mas desconforme às exigências sociais referentes à matéria da legislação em causa., que, preferentemente, deve ser reformada a ser deficiente ou insuficientemente aplicada?

6.1.4. Tipologia das formas de controlo

Vejamos agora quais os tipos e órgãos de fiscalização da constitucionalidade. Existem quatro formas de fiscalização, como já referi: a fiscalização preventiva da inconstitucionalidade por acção, a fiscalização sucessiva concreta da inconstitucionalidade por acção, a fiscalização sucessiva abstracta da inconstitucionalidade por acção e a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão. Os órgãos de fiscalização da constitucionalidade são, por um lado, o TC e, por outro, os demais tribunais (todos e cada um dos tribunais). O pri¬meiro tem o exclusivo de fiscalização preventiva, da fiscalização sucessiva abstracta e da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão e julga os recursos das decisões de constitucionalidade dos outros tribunais. Os tribunais comuns e administrativos decidem das questões de constitucionalidade, levantadas em cada caso sub-judice, mas as suas decisões são sempre recorríveis para o Tribunal Constitucional. Quanto à fiscalização preventiva, é uma fiscalização inserida no processo de criação normativa, portanto anterior à própria introdução das normas na ordem jurídica. Ela tem por objecto normas com processo emissor ainda não concluído, normas imperfeitas.

Por isso, aó pode ser, por natureza, um controlo abstracto. E, no caso de declaraçãode inconstituciona¬lidade, o processo legislativo não pode, em princípio, ir até à sua vigência, pelo que as normas do diploma em causa não chegam a entrar na ordem jurídica. Quanto aos órgãos com poderes para requerer a fiscalização, há a distinguir três situações competenciais:

a)-O Presidente da República pode pedir a fiscalização de qualquer diploma legislativo ou convenção internacional que lhe seja submetido para promul¬gação, assinatura ou ratificação;

b)-O Primeiro-ministro e um certo número de deputados à AR podem pedir a fiscalização das «leis orgânicas»;

c)-Os Ministros da República para as Regiões Autónomas podem pedir a fiscaliza¬ção dos diplomas regionais. O âmbito da fiscalização preventiva é mais restrito do que o da fiscalização sucessiva, pois abrange apenas os diplomas legislativos da República ou das Regiões autónomas, ou diplomas equiparados, como são os tratados internacionais e decretos regionais de regulamentação de leis da República. O órgão competente para a efectivar é o Tribunal Constitucional.

Quanto à fiscalização concreta, este controlo judicial concreto abrange todas as normas do ordenamento jurídico susceptíveis de controlo sob o ponto de vista da constitucionalidade.

A competência para julgar da inconstitucionalidade é reconhecida a todos os tribunais (artigos 207.º e n.º1 do 280.º), que podem apreciar, por impugna¬ção das partes ou por iniciativa do juiz, a existência de inconstitucionali¬dade das normas aplicáveis ao caso concreto submetido a julgamento.

Todavia, há sempre possibilidade de recurso para o TC, que é obrigatório para o Ministério Público, em certos casos. Ao TC cabe tomar uma decisão definitiva sobre a questão, que vale apenas para o caso que deu ori¬gem ao recurso. O regime da fiscalização concreta tem natureza mista, entre o sistema difuso, tradicional em Portugal, e o sistema concen¬trado, kelseniano, de tipo austríaco. Este sistema de controlo é original, na medida em que, dife¬rentemente do que acontece com outros sistemas dotados de um tribunal constitucional, os tribunais de julgamento normas das causas também controlam directamente o respeito pela Cons¬tituição, dispondo de competência plena para julgarem e decidirem as ques¬tões constitucionais suscitadas pelas partes ou oficiosamente. Mas diferentemente dos sistemas anglo-saxónicos, de «judicial review», no sistema português as decisões sobre matéria constitucional dos tribunais de julgamento da causa são recorríveis para um órgão específico exterior à jurisdição ordinária, que é o Tribunal Constitucional, que tema palavra final, definitiva sobre a matéria.

Quanto ao controlo abstracto e concentrado, que coexiste com o controlo concreto e difuso, também designado pela doutrina como controlo em «via principal», em «via de acção» ou em «via directa» (a não confundir com o recurso directo de constitucionalidade, também chamado recurso público ou, nos países de expressão castelhana, recurso de amparo, ainda inexistente em Portugal), um controlo universal, dado que abrange todas as normas susceptíveis de fiscalização por inconstitucionalidade, e que é independente da fiscali¬zação concreta, embora não estejam de costas voltadas um para o outro, pois existe uma passarelle efectivadora do trânsito do controlo concreto repetido para o controlo abstracto, a fim de se obter a generalização das decisões proferidas em controlo concreto (n.º3 do artigo 281.º). Compete ao TC em exclusivo, a requerimento de certos órgãos públi¬cos, não estando aberto à generalidade dos cidadãos, nem sequer aos interessados na fiscalização da norma.

Quanto à fiscalização visando a constatação da inércia legislativa em domínios de normação obrigatória, da inconstitucionalidade por omissão, a sua existência significa que, além do controlo da inconstitucionalidade por acção, existe também um controlo concentrado de omissões legislativas (controlo da inconstitucionalidade por omissão).

As decisões do TC sobre a existência da inconstitucio-nalidade por omissão têm como efeito prático apenas a certificação dessa omissão e a participação da decisão, para conhecimento, ao órgão legisla¬tivo competente (artigo 283.º), que é o responsável pela elaboração da norma. O TC, normalmente legislador negativo, porque anula a obra do legislador, retira a norma da ordem jurídica, como dissertou HANS KELSEN, (embora não deixe de ser construtivo, ao interpretar), nunca chega a ser legislador substitutivo135, nem mesmo aqui quando constata a falta do dever constitucional de legislar, o que a existir o tornaria claramente num poder legislativo, mesmo que ramo residual, supletivo dele; ao lado do Governo que, no quadro constitucional português, por inércia da Constituição de 1933, tem por direito próprio amplos poderes legislativos concorrentes com a Assembleia da República, sem prejuízo da consagração de matérias de reserva parlamentar, tal com há uma matéria de reserva legislativa governamental, a da organização do próprio Governo. E a competência para requerer este tipo de fiscalização é muito restrita. Os cidadãos ou grupos de cidadãos não o podem fazer. O seu âmbito subjectivo activo abrange apenas o PR, o Provedor de Justiça e os Presidentes das Assembleias Regio¬nais (estes no caso de envolvimento de direitos constitucionais das Regiões Autónomas)136.

 6.1.5.O regime geral da inconstitucionalidade por acção

A)-Considerações gerais

Ao domínio da vida dos tratados internacionais interessa a matéria que, no Título I da Parte IV, trata da fiscalização da constitucionalidade por acção. É o artigo 277.º que enquadra o regime geral da inconstitucionalidade por acção, contendo um comando dirigido a quasquer normas aplicáveis na ordem jurídica interna e, depois, uma norma específica precisamente para os tratados internacionais.

 Diz o artigo em causa: «1. São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. 2. A inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental». Portanto, o legislador constitucional enquadrou a questão da inconstitucionalidade de modo a aplicar também ao direito internacional público o sistema geral de controlo do n.º 1 do artigo 277.º, apenas com excepção das situações previstas no seu n.º 2. Este preceito inicial dedicado à fiscalização da constitucionalidade trata das formas de inconstitucionalidade que se traduzem, na lógica do princípio da prevalência ou preeminência da Constituição, como escalão normativo hierarquicamente superior da ordem jurídica, numa actuação normativa dos poderes públicos desconforme com a Constituição, distinguindo se assim da inconstitucionalidade por omissão, a que se reporta o artigo 283.º. Nos termos do n.º3 do artigo 8.º, a validade das leis e demais actos do Estado e dos poderes públicos depende da sua conformidade com a Constituição.

Ora, a inconstitucionalidade por acção consiste precisamente na violação do «disposto na Constituição» ou dos «princípios nela consignados» (n.º 1 do artigo 277.º).

Assim, tanto cria inconstitucionalidade a violação das normas disposições (regras consagradas na Constituição mediata ou imediatamente preceptivas, isto é, de aplicação directa, ou programáticas, de aplicação diferida, segundo meios e calendarização a dispor pelo legislador ordinário) como a violação dos princípios constitucionais (princípios expressos, isto é, as normas princípio, ou apenas implícitos, isto é, princípios de raíz constitucional, designadamente os dedutíveis das cláusulas do Estado de direito, democrático, social, etc.137. E também há inconstitucionalidade no desrespeito a normas recebidas pela Constituição.

Estamos aqui perante textos normativos de fonte interna ou externa que, embora não formal¬mente integrados na Constituição, são objecto de recepção material ou formal pela Constituição, ficando protegidos pela força própria desta, não podendo ser infringidos, tal como as próprias normas constitucionais, os quais só podem ser alteradas nos termos aí previstos, sendo constitu¬cionalmente ilegítimas as normas que as contrariem. Os prin¬cípios cooperativos são normas recebidas, enquanto princípios densificadores do conceito constitucional de cooperativas para que remete expressamente a lei fundamental no n.º2 do artigo 61.º137a Observância de princípios que aliás colocam hoje questões de constitucionalidade no âmbito do regime do ensino particular cooperativo, com Estatuto mais desfavorecido do que o dos estabelecimentos universitários privados de natureza confessional, independentemente da questão do princípio da igualdade, que, mesmo que não impusesse o privilegiar das cooperativas, não permite, pelo menos, o seu desfavorecimento.

Como entendo que há inconstitucionalidade noutros casos, designadamente na infracção de nor¬mas de direito internacional geral ou comum (n.º1 do artigo 8.º), de valor supraconstitucional ou, pelo menos, constitucional138.

B)-O elenco dos actos sujeitos a controlo

a)-O elenco dos actos controláveis

Não só as normas podem infringir a Constituição.

Mas o sistema específico de fiscalização da constitucionalidade está limitado quase exclusivamente ao controlo de actos de carácter normativo. Ficam, assim, excluídos os actos jurídicos de outra natureza, desde os actos administrativos e contratos administrativos aos actos judiciais em si mesmos e aos actos políticos, categoria que continua a existir em geral no direito português139, como fórmula de insindicabilizar jurisdicionalmente certos actos dos poderes executivos, nacional e regionais autónomos.

Mas, neste sistema de fiscalização da constitucionalidade estão abrangidas todas as normas, qualquer que seja a sua natureza, a sua fonte, a sua forma, a sua hierarquia, desde que tenham natureza jurídica e façam parte ou vigorem na ordem jurídica portuguesa. E, portanto, também o direito internacional vigente em Portugal. No direito constitucional português são objecto da fiscalização não apenas os actos normativos primários (leis, tratados internacionais) mas também os actos normativos secundários ou terciários (regulamentos, despachos normativos, etc.).

No entanto, o conceito de de norma para efeitos de controlo da constitucionalidade começou por ser uma questão a enquadrar de novo, fora desta doutrina e portanto problemático. Neste âmbito, opera-se com o que poderíamos designar de conceito material-orgânico.

Com efeito, em geral, fora do sistema de controlo da constitucionalidade, vigora um conceito mais exigente. A doutrina aponta dois requisitos para se poder falar em norma jurídica. Por um lado, o requisito material, segundo o qual a norma deve equivaler a uma regra ou padrão, orientadora e reguladora de condutas ou comportamentos, e não a actos de aplicação dessa regra ou padrão.

Por outro, o requisito orgânico, segundo o qual uma norma deve ser estabelecida por acto de um poder normativo, isto é, de «uma entidade pública ou dotada de poderes públicos, com competência para criar regras de conduta ou padrões de valoração». Acontece que o conceito constitucional de norma não implica os requisitos de generalidade e de abstracção que tradicionalmente densificam as posições da doutrina, pelo menos quando estejam em causa os actos normativos típicos, como os actos legislativos e os actos regulamentares, embora, realmente se coloquem questões de fronteira com os actos administrativos gerais (que se esgotam numa única aplicação sem entrarem a reger as situações futuras e, portanto, sem entrarem no ordenamento jurídico do país) e mesmo questões ônticas, com leis e regulamentos que o são, não pelo conteúdo material abstacto-geral, isto é, universal quanto às situações abrangidas e destinatários abrangíveis, mas pela fonte legislativa ou regulamentar que os produz e denomina. O conceito específico adequado ao sistema garantístico da Constituição resulta claramente da jurisprudência constante do Tribunal Constitucional140.

Aparece-nos, pois, um conceito misto formal-material: formal quando se trata das formas normativas típicas e material, nos restantes casos. De qualquer maneira, ficam fora da fiscalização da inconstitucionalidade, os actos do poder público que não revistam a natureza de norma no sentido dado pelo Tribunal Constitucional (e as regras emitidas por entidades privadas, salvo se estiverem no exercício da Função Administrativa do Estado-Comunidade141).

E estão sujeitas ao controlo as próprias normas saídas de um processo de revisão constitucional, na medida em que resultem de um processo de reforma inconstitucional, desrespeitador das regras limitadoras materiais, temporais e procedimentais de revisão, isto é, ofendam as que são o padrão de controle, as normas vigentes spbre os limites colocados ao próprio poder de revisão constitucional, a menos que haja uma dupla revisão, alterando primeiro as normas constitucionais bloqueantes, o que pressupõe um duplo procedimento reformador, mesmo que temporalmente sucessivo, o que só é possível inserindo, pelo menos, um processo de revisãoextraordinário alheio à solução de adaptação social quinquenal.

O elenco dos actos normativos, sujeitos a fiscalização da constitucionalidade, são:
a)- as leis de revisão constitucional, pois são normas sujeitas às regras de revisão constitucional142;
b)- as normas emitidas por organizações internacionais de que Portugal faça parte, segundo a tese da maioria dos constitucionalistas, em que integram, também, as pertencentes ao direito comunitário, abrangi¬das no conceito de normas, utilizado no art.º8.3143;
c)- os actos normativos do Presidente da República, isto é, os Decretos de declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, que, além do mais, contêm o regime normativo de restrição dos direitos, liberdades e garantias, durante o período do estado de excepção144;
d)- os actos legislativos em geral, ou seja, as leis da Parlamento, os decretos leis do Governo e os decretos legislativos das Regiões Autónomas (n.º1 do artigo 115.º), independente¬mente do seu conteúdo145;
e)- as resoluções normativas do parlamento nacional e dos parlamentos regionais; Eles aprovam as leis, os seus próprios regimentos, resoluções, etc., que têm ou podem ter carácter normativo, como sucede com as resoluções do Parlamento que recusem a ratificação de decretos leis ou de decretos legislativos regionais, ou que suspendam a sua vigência (artigo 172.º)146;
f)- os Regulamentos, enquanto actos normativos da Administração públika, que sãï norma{ jurídicas emanadas dos órgãos dotaäos de poder regulamentar no exercício da Função Administrativa do Estado-Comunidade, istï é, qualquer que sejq a entidade que os produzam147, qualquer que seja a sua forma e a sua designação148;
g)- os regulamentos dos outros órgãos de soberania, que têm administrações instrumentais das suas funções legislativas e judiciais, e por isso dotados de poderes administrativos149;
h)- os estatutos e regulamentos das associações públicas, quer os que são normas públicas aprovadas pela própria associa¬ção de base pública, particular ou mista, quer os aprovados pelo Estado, sob a forma de regulamento ou mesmo de lei;
i)- os Regimentos das assembleias e de outros órgãos colegiais públicos, pois hoje está hoje superada a doutrina clássica, que considerava os regimentos insindicáveis, por serem actos interna corporis, visto que eles regulam o procedimento de formação dos actos desses órgãos, além de frequentemente concretizarem os direitos das minorias; j)- os referendos locais, quando disponham acerca da aprovação de normas jurídicas em substituição dos órgãos autárquicos150;
l)- os contratos e acordos colectivos de trabalho, cuja eficácia depende da lei (n.º 3 e 4 do artigo 56.º), mas que têm natureza normativa151;
m)- as normas consuetudinárias internas, nos domínios onde estas normas são admitidas como fonte de direito interno152;
n)- as cláusulas compromissórias e os compromissos arbitrais153;
o)- os regulamentos emitidos por entidades privadas, por concessão ou devolução de tarefas e poderes de entidades públicas154.
p)- as normas de direito internacional.
Além destas normas, também são controláveis actos não normativos, como os actos de convocação de referendos ou de consultas populares locais, que estão expressamente sujeitos a controlo preventivo obrigatório da constitucionali¬dade e da legalidade (n.º6 do artigo 118.º e artigo 137.º). Nos termos das normas constitucionais, também os instrumentos de direito internacional, nomeadamente as convenções inter¬nacionais [independentemente da sua natureza (tratados normativos ou tratados contrato), da sua forma (tratados solenes ou acordos em forma simplificada)154a, ou da sua incidência (eficácia apenas nas relações externas ou também efeitos normativos internos], dado que não estão excepcionados pelo n.º1 do artigo 278.º.

Mesmo quanto ao Direito Internacional Comum, a questão põe-se segundo os constitucionalistas (v.g., Gomes Canotilho e Vital Moreira), que fogem depois ao problema do controlo, afirmando que, apesar de não excluído –eu diria expressamente-, «não é de por a questão do controlo, por ser improvável qualquer incompatibilidade entre o direito internacional geral e a lei fundamental».

Entendo que melhor será, numa perspectiva de enquadramento científico, reconhecer-lhe valor constitucional, como faz certa doutrina. Pessoalmente, considero que, pelo menos, o direito internacional, qualquer que seja o método criativo, contendo ius cogens, tem natureza supra-constitucional. Nem todas as normas referidas estão sujeitas a todas as formas de controlo da inconstitucionalidade por acção, pois a fiscalização preventiva está reservada para cer¬tos tipos de normas, as de natureza legislativa ou equiparada, incluindo aqui os tratados internacionais (artigo 278.º)155.

b)-O controlo sucessivo de normas não vigentes

A fiscalização da constitucionalidade não incide apenas sobre normas exis¬tentes e vigentes.

Pode também incidir quer sobre normas ainda não existentes, quer sobre normas que já deixaram de estar em vigor (por revogação ou caducidade), quer sobre normas com eficácia suspensa.

Quanto ao controlo de normas ainda não existentes, no sentido de normas cujo processo de formação ainda não está perfeito, as «normas imperfeitas», é dele que trata especificamente e só a fiscalização preven¬tiva da constitucionalidade (artigos 277.º e 278.º). E só ela.

Quanto à fiscalização de normas já revogadas, ela tem que ver com o julgamento de um facto passado à luz do direito vigente à data da sua ocorrência156 ou a apreciação de uma norma que, apesar de revogada ainda seja susceptível de se aplicar a casos pendentes157. Tudo advém do facto de a revogação ter normalmente efeitos apenas para o futuro, enquanto que a declaração de inconstitucionalidade tem normalmente, salvo aplicação das cláusulas flexibilizadoras pelo TC, eficácia retroactiva (ex tunc). Só não há controlo de inconstitucionalidade quando a revogação tenha produzido efeitos retroactivos, apagando todos os efeitos produzidos pela norma158.

E o TC também tem recusado conhecer da inconstitucionali¬dade de normas revogadas quando é manifesto que os efeitos por elas produzidos são ressalvados, evitando uma declaração de inconstitucionalidade inútil ou irrelevante159. No que se refere à fiscalização de normas de efi¬cácia suspensa, quer por ainda não terem entrado em vigor, quer por a sua eficácia ter sido suspensa, desde que elas possam vir a ter eficácia, são passíveis de controlo de inconstitucionalidade, pois existe o requisito viabilizador da sua fiscalização.

c)-A Constituição e o direito internacional privado

Podemos ter aqui um fenómeno de inaplicabilidade de normas de direito interno doutro Estado, por «razões de ordem pública», conceito enformado essencialmente por uma densificação de conteúdo constitucionalizado.

Tratar-se-á de normas que, de outro modo, seriam vigentes em Portugal, por força das regras sobre conflitos de normas de ordenamentos jurídicos diferentes, isto é, por força do comummente chamado direito internacional privado. Com efeito, além das normas que fazem parte da ordem jurídica portuguesa, por terem sido originariamente produzidas por acto normativo interno ou por terem sido recebidas nela (caso das normas de direito internacional e das normas oriundas de organizações internacionais), os tribunais portugueses podem ser chamados a fazer aplicação de normas de direito estrangeiro, por efeito das regras de direito interna-cional privado, que solucionam os conflitos de competência entre ordens jurídicas diversas (artgos 25.º e seguintes do Código Civil).

Por natureza, a Constituição só tem força de parâmetro normativo em relação às normas vigentes na própria ordem jurídica, pelo que em relação ao direito estrangeiro não se põe sequer um problema de inconstitucionalidade por violação da CRP, pois o que pode é surgir um problema de inconstitucionalidade por violação da Constituição res¬pectiva. Nestes termos, o sistema próprio da fiscalização da constitucionalidade não se aplica, como tal, às normas de direito estrangeiro aplicáveis por força das regras próprias do direito de conflitos.

Todavia, é princípio geral de direito internacional, positivado no artigo 22.º do Código Civil, que os tribunais podem recusar se a aplicar normas de direito estrangeiro, chamadas a regular o caso concreto, se essa aplicação envolver ofensa dos «princípios fundamentais da ordem pública internacional» do seu próprio Estado (a chamada cláusula de ordem pública).

Ora, a densificação deste conceito de ordem pública não pode ser alheia à Constituição. Pelo contrário, ele deve ser integrada precisamente por aqueles princípios constitucionais de tal modo essenciais que a sua violação repugne totalmente à ordem constitucional democrática. É de acentuar, porém, que quando a Constituição seja invocada para recusar a aplicação de direito estrangeiro, este não pode ser rejeitado com base na sua inconstitucionalidade, mas, embora em face de motivação assente implicitamente na Constituição, apenas com fundamento em ofensa à ordem pública, cons¬titucionalmente enformada. Por isso, não pode haver lugar para os recursos próprios da inconstitucionalidade (artigo 281.º).

d)-Os actos incontroláveis pelo sistema garantístico da Constituição

Embora não sejam só os actos normativos a poder infringir a Constituição, o sistema de fiscalização da constitucionalidade foi criado a pensar quase exclusivamente nos actos de natureza normativa. Por isso, os artigos 277.º e seguintes têm em conta apenas as normas.

Assim, como já referimos, estão excluídos do controlo da inconstitucionalidade todos os actos públicos que não contenham normas jurídicas, independentemente da sua natureza, sejam eles actos constitucionais ou decisões ou contratos jurídicos-adminis¬trativos. E o mesmo sucede com os actos privados. Mesmo os actos de direito privado praticados em gestão privada da Administração pública.

Quanto às declarações do estado de sítio e do estado de emergência, a questão não se coloca pois elas revestem natureza normativa, e por isso são naturalmente objecto da fiscalização, nos termos gerais. À cabeça dos actos isentos de fiscalização da inconstitucionalidade aparecem os actos de natureza política, também designados por actos de governo ou actos constitucionais, que não podem ser judicialmente invalidados por inconstitucionalidade160. Também não são susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade$as decisões judiciais.

Pode se atacar uma deci¬são judicial, recorrendo dela para o Tribunal Constitucional se0ela aplicou uma norma arguida de inconstitucionalidade ou se deixou de aplicar uma norma por motivo de inconstitucionalidade. Mas não se pode impugnar junto do Tribunal Constitucional uma decisão judicial, por ela mesma ofender por qualquer motivo a Constituição. É esta a orientação jurispruden¬cial, repetidamente afirmada- como se constata, v.g. pelos ATC n.º 26/85, 349/86, 75/87, etc.. Contra uma decisão judicial que viole ela mesma a Constituição só restam as vias de recurso ordinárias que caibam ao caso.

Não existe no direito português, como em alguns outros ordenamentos constitucionais, a possibilidade de recurso para o TC nessas hipóteses, sobretudo quando se trate de casos respeitantes a direitos fundamentais161.

Também os actos administrativos, como actos jurídicos não normativos, estão fora do sistema de fiscalização da consti¬tucionalidade162.

As normas de natureza privada também não estão sujeitas a controlo de constitucionalidade. É o caso dos regulamentos das associações privadas, não públicas, mas já não as de origem privada e natureza pública, que são associações públicas, como as de profissionais liberais, embora nem sempre seja fácil saber quando se está perante normas de uma organização privada ou de uma entidade pública163. Não o são, por exemplo, os estatutos e os regulamentos de locais privados abertos ao público, etc., mas as normas de entidades particulares que cooperem em funções de certa entidade administrativa, em termos «delegados», entidades de natureza não lucrativa, que designaria como entidades de direito privado e regime jurídico misto, são controláveis pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade.

As normas de entidades de natureza e actividade privada, naturalmente que podem infringir a Constituição, porque esta tem normas também aplicáveis directamente a entidades particulares (n.º2 do artigo 18.º), e os actos desrespeitadores dessas normas são inválidos por violação da Constituição. Mas os meios de defesa dos particulares ou de entidades públicas ofendidos não são os meios específicos do controlo da constitucionalidade, mas sim os meios jurisdicionais de impugnação de actos ilícitos.

De resto, como acima se viu, são de considerar como normas públicas para efeito de controlo de constitucionalidade os regulamentos emitidos por entidades privadas no exercício concessionado de poderes públicos ou por delegação dos poderes públicos. Mas não são, em princípio, controláveis as normas dos regulamentos privados sujeitos a aprovação ou homologação pública, porquanto normalmente nestas situações, o que está em causa é a mera verificação da regularidade dos mesmos perante as exigências do interesse público, expresso em normas de direito administrativo, o que não impede as autoridades da Administração Pública de evitar também dar a sua aprovação a estes regulamentos enquanto o seu conteúdo ofender a CRP, sob o controlo da jurisdição administrativa, onde a questão da fundamentação do acto administrativo por razões de inconstitucionalidade será apreciada.

Também os negócios jurídicos privados, actos unilaterais ou contratos, são insusceptíveis de controlo da constitucionalidade em sentido próprio, independentemente da sua natureza, mesmo que infrinjam directa ou indirectamente a Constituição, designadamente as suas normas sobre de direitos fundamentais (n.º1 do artigo 18.º), facto que não deixa de produzir a invalidade do negócio. No entanto, o regime jurídico de sancionamento do facto não passa pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade, devendo usar-se os meios jurídicos comuns relativos à ilicitude por violação da lei163a.

Quando se tratar de normas puramente privadas, criadas por associações privadas, não estão, em princípio, sujeitas ao controlo da constitucionalidade, excepto se elas estiverem a desempenhar funções de carácter público. Tudo depende não propriamente da natureza pública ou privada das entidades envolvidas, mas simultaneamente das funções exercidas e do carácter jurídico normativo das regulamentações em apreço.

C)-A tipologia clássica da inconstitucionalidade

No caso do controlo do direito internacional, ganha importância uma classificação tradicional de formas de inconstitucionalidade, que distingue entre três tipos: a material, a orgânica e a formal.

A inconstitucionalidade de uma norma consiste na ofensa da disciplina constitucional em qualquer dos seus aspectos: incompetência do órgão normador, vício de forma ou de procedimento de criação da norma ou a contradição entre o conteúdo da norma e o conteúdo normativo da Constituição.

Em suma, uma norma é inconstitucio¬nal sempre que viole qualquer dos aspectos constitucionalmente vinculados. De resto, teo¬ricamente, uma norma pode ser inconstitucional, mesmo quando emitida numa área constitucionalmente deixada à liberdade de conformação do legislador (ou outro poder normativo). É o que ocorre quando se verifica desvio do poder legislativo (em paralelo com o desvio de poder, como vício do acto administrativo), ou seja, quando a discri¬cionariedade legislativa tenha sido exercida, não para realizar os concretos fins constitu¬cionais, mas sim para prosseguir outros, diferentes ou mesmo de sinal contrário àqueles. Como pode ser inconstitucional por revogar, sem substituição de disciplina, normas criadas ou em cumprimento de preceito constitucional ou em desenvolvimento de normas programáticas.

A actual Constituição não deu, em geral, relevo à distinção entre vícios formais e vícios substanciais, e, consequentemente, entre a inconstitucionalidade formal, que resulta da infracção das normas sobre a forma e o processo de formação dos actos; a inconstitucionalidade orgânica, que resulta da infracção das normas de competência para criar normas jurídicas; e a inconstitucionalidade material, que é um vício substancial, ligado ao conteúdo do acto)164. Hoje, o relevo constitucional em termos de regime de consequências da distinção entre as inconstitucionalidades formal e orgânica e a inconstitucionalidade material limita se quase só aos casos dos tratados internacionais, visto que em certas circunstâncias as respectivas normas podem conti¬nuar a vigorar na ordem interna, apesar de confirmada a inconstitucionalidade orgânica ou formal de que padeçam (n.º 2 do 277.º).

No entanto, esta distinção clássica é ainda relevante para efeito de análise sobre sanabilidade de inconstitucionalidades, podendo considerar-se que no caso de inconstitucionalidade orgânica, ela é sanada com a rati¬ficação do diploma em causa pelo órgão constitucionalmente competente. Assim ocorre na ratificação pela Assembleia da República de decretos leis governamen¬tais organicamente inconstitucionais ou a aprovação parlamentar em tratado maios abrangente do conteúdo de um acordo anterior ferido de inconstitucionalidade orgânica não salvo pelo art.º277.2.

E a distinção tem interesse quanto aos efeitos da revisão constitucional em relação a normas anteriores. Se, por um lado, a inconstitucionalidade orgânica e formal não é sanada pela revisão constitucional, e também não há inconstitucionalidades supervenientes dessa natureza.

Mas já a inconstitucionalidade material é sanada embora se mantenham os efeitos do vício no passado, enquanto existia, pelo advento de norma constitucional compatível com a norma anteriormente viciada e as normas anteriores que eram constitucionais, após a revisão constitucional tornam-se super¬venientemente inconstitucionais se passam a ter conteúdo desconforme às normas saídas da revisão constitucional (ATC n.º 468/89)165.

7.O CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE E O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

7.1.A análise dos casos fiscalizados pelo Tribunal Constitucional

7.1.1.O caso da Convenção n.º 96 da OIT

O Tribunal Constitucional foi chamado por duas vezes a apreciar a constitucionalidade de normas internacionais, em processos que deram origem aos Acórdãos 32/88 e 168/88. Além destes, há o caso do Acórdão 184/89, em que o «Tribunal se moveu em zonas de fronteira» (com as normas comunitárias), pois o que acabou por ter de apreciar foi um regulamento interno português, o regulamento de aplicação ao território nacional do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional» . 

A ele já nos referimos anteriormente, a propósito da hierarquia das normas. No processo166 em que se apreciou este caso estava em causa a invocação de «inconstitucionalidade formal originária» das normas do Decreto da AR n.º100/80, de 9 de Outubro e o Decreto do Governo n.º68/84, de 17 de Outubro, que aprovaram, o primeiro para ratificação, a Convenção n.º96 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre agências de colocação não gratuitas, a pedido do Procurador-Geral da República, efectuado nos termos da alínea a) do n.º1 do artigo 281.º da Constituição e no artigo 62.º da Lei n.º28/82, de 15.11. Neste caso, de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, estava envolvida uma questão doutrinal importante: saber se haveria sido violada uma «disposição constitucional fundamental», o que, nos termos do n.º2 do artigo 277.º, afastaria o regime especial de irrelevância da inconstitucionalidade formal invocada.

No Acórdão 32/88-P, de 27 de Janeiro, o Tribunal decidiu não tomar conhecimento do pedido, com invocação da inexistência de objecto constitucionalmente admissível, pelo facto de se estar perante formas de actos do iter de aprovação do tratado, e, assim, as normas polémicas serem normas imperfeitas e não normas jurídicas para efeito de apreciação deste tipo de constitucionalidade.

O Tribunal começa por declarar que o pedido de fiscalização abstracta e sucessiva de constitucionalidade tem por objecto normas jurídicas perfeitas, isto é, normas inseridas em diplomas em relação aos quais o processo legislativo se completou plenamente.

Ora, no caso, o pedido de fiscalização tinha por objecto «normas jurídicas imperfeitas», normas inseridas em diplomas em relação aos quais ainda não tinha ocorrido a completude do respectivo processo legislativo. E, a propósito, o Tribunal refere que o processo legislativo que conduz à vigência, na ordem interna portuguesa, das convenções internacionais passa pelas seguintes fases: aprovação e ratificação (para os tratados) ou mera aprovação (para os acordos); publicação no Diário da República do texto das convenções, o que ocorre juntamente com a dos respectivos diplomas de aprovação, e ainda, para os tratados, dos avisos de ratificação, cumprimento de formalidades de conteúdo variável, impostas pela própria convenção ou, no silêncio desta, por princípios do direito internacional geral ou comum, e essencialmente destinados à manifestação na ordem externa do consentimento do Estado português em ficar vinculado por convenções internacionais.

Como não se tinha chegado a concluir o procedimento normativo da Convenção n.º 96 da O.I.T., embora já aprovada para ratificação pelo Decreto n.º100/80, de 9 de Outubro, e mesmo que se pudesse ter por válida a sua ratificação presidencial, não datada, o certo e que esta não foi de forma alguma publicitada, pelo que não podia o pedido de fiscalização abstracta sucessiva das suas normas ser apreciado, por falta de objecto constitucionalmente admissível. Por isso, o Tc não conheceu do pedido formulado pelo Procurador-Geral da República, relativo a essa parte.

E, porque à data do pedido, também não se tinha completado o procedimento normativo da referida Convenção, tal como foi aprovada pelo Decreto do Governo n.º 68/84, de 17 de Outubro, por não ter sido atá então publicitado o acto presidencial finalizador do processo conclusivo, não podia o mesmo, ainda por via sucessiva e nesta parte, ser apreciado, também por carecer de objecto constitucionalmente admissível. Em síntese, para chegar a esta solução, o Tribunal Constitucional considerou que as Resoluções e os Decretos de aprovação de convenções internacionais não são actos normativos para efeitos de apreciação da constitucionalidade abstracta sucessiva. E, assim, o Tribunal decidiu não conhecer do pedido, dado que este, no momento em que foi formulado, se dirigia a normas jurídicas imperfeitas: não se concluíra o procedimento necessário à produção de efeitos da convenção na ordem interna. Isto é, apresentado em sede de fiscalização sucessiva, o pedido do Procurador Geral da República consubstanciava um verdadeiro pedido antecipado que o Tribunal não podia obviamente conhecer167.

 7.1.2. O caso dos Acordos com os EUA de meados da década de oitenta

O Acórdão 168/88, de 13 de Julho168, versou sobre um pedido formulado por deputados do grupo parlamentar do Partido Comunista Português, solicitando a declaração, com força obrigatória geral, de várias normas de quatro Acordos com os Estados Unidos da América: a)- O «Acordo, por troca de notas, entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América, ao Abrigo do Acordo de Defesa, de 6 de Setembro de 1951»; b)- O «Acordo, por troca de notas entre o Governo Português e o Governo dos Estados Unidos da América, pelo qual se autoriza o Governo dos Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação electro óptica para vigilância do espaço exterior (GEODESS)»; c)- O «Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da Anérica, de 6 de Setembro de 1951 »; d)- O «Acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, respeitante ao emprego de cidadãos portugueses pelas Forças dos Estados Unidos da Amé¬rica nos Açores».

Pelo seu interesse, em termos de enquadramento da noção em geral de norma para efeitos de controle de inconstitucionalidade, pela doutrina em especial sobre a normatividade dos tratados-contratos e a tese da convalidação de um tratado principal através de um outro tratado posterior autónomo daquele, reproduzo a decisão, antecedida de um resumo de toda a sentença.

Por um lado, ela começa por referir que a competência de controlo da constitucionalidade do Tribunal Constitucional e o respectivo sistema respeitam apenas a normas jurídicas, sendo relevante para o efeito, segundo jurisprudência uniforme do Tribunal, um conceito funcional e formal de norma, e não um conceito material assente designadamente nas características da generalidade e abstracção. Este conceito integra na noção de norma sindicável qualquer acto de um poder normativo do Estado (lato sensu), ainda que de conteúdo individual e concreto, mas não já as decisões judiciais (faltando a consagração do recurso directo de amparo) e os actos de governo em sentido estrito (actos políticos).

O Tribunal Constitucional reconhece-se competente para conhecer, em fiscalização abstracta, da constitucionalidade destes Acordos por troca de notas, mesmo que se lhes atribua a natureza doutrinal de tratados-contratos, dado que o conceito de «convenção internacional», consagrado no n.º 2 do artigo 8 da Constituição, é um conceito amplo, compreendendo tanto os tratados sujeitos a aprovação do parlamento e ratificação do Presidente da Republica, como os acordos sujeitos apenas à aprovação parlamentar ou governamental e assinatura do Presidente da República. Ora, na ausência de uma definição vinculativa no direito constitucional português, o Acórdão afirma dever «recorrer-se, para proceder à distinção material entre acordos e tratados, à definição dos dois conceitos correntes no direito internacional, podendo dizer-se que, em geral, se impõe a forma de tratado quando se pretende uma disciplina primária semelhante a das leis internas, e se estabelece a forma de simples acordo para os instrumentos diplomáticos executivos (‘executive agreements’) de tratados ja celebrados»169. E diz, ainda, o Tribunal Constitucional que «A aprovação pela Assembleia da República de um Acordo Técnico que recebe materialmente um Acordo por troca de notas anterior, torna irrelevantes eventuais vícios de inconstitucionalidade deste último, que resultassem de não ter sido aprovado pelo Parlamento. E é inútil conhecer das questões de inconstitucionalidade no periodo anterior àquela recepção material do Acordo, uma vez que qualquer hipotética declaração de inconstitucionalidade imporia manifestamente, por força de razões de segurança jurídica e interesse público, a imperiosa necessidade de limitar os respectivos efeitos, salvaguardando as situações geradas, pelo que não existe interesse jurídico no conhecimento do pedido nessa parte.

Quanto aos poderes do governo, afirma o Acórdão que «Cabe na competência política do Governo aprovar acordos internacionais que versem sobre assuntos militares quando assumam a natureza de "executive agreement" de tratado já celebrado. Os princípios constitucionais em matéria de vinculação internacional do Estado exigem que a aprovação de convenções internacionais por parte do Governo revista a forma de decreto, qualquer que seja a forma consagrada no plano do direito internacional»

Acontece que «O pedido de fiscalização abstracta e sucessiva de constitucionalidade tem por objecto normas jurídicas perfeitas, isto é, normas inseridas em diplomas em relação aos quais o processo legislativo, ao tempo em que é feito o pedido, se completou plenamente»170.

Por isso, o Tribunal declara carecer de objecto constitucionalmente admissível o pedido de fiscalização da constitucionalidade de convenções internacionais relativamente às quais ainda não se haja completado o processo complementar de formalidades a praticar. Portanto, o Tribunal Constitucional171, adoptou uma postura que ANTÓNIO DE ARAÚJO qualifica de «controlo intensificado das questões processuais» e só declarou a inconstitucionalidade de um dos acordos celebrados por troca de notas, o qual, por não ter sido coberto por qualquer aprovação parlamentar que o recebesse materialmente, ofendia a CRP.

Tratou-se do «Acordo, por troca de notas, entre o Governo Português e o Governo dos Estados Unidos da América, pelo qual se autoriza o Governo dos Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação electro óptica para vigilância do espaço exterior (GEODESS)». Por um lado, o Tribunal decidiu não tomar conhe¬cimento do pedido relativamente à constitucionalidade do «Acordo, por troca de notas, entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América ao Abrigo do Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951»;«Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951»; e «Acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, respeitante ao emprego de cidadãos portugueses pelas forças dos Estados Unidos da América nos Açores». Fê lo, considerando que o Acordo por troca de notas fora objecto de recepção material por parte do Acordo Técnico. No entender do Tribunal, a aprovação pela Assembleia da República do Acordo Técnico «retirou qual¬quer sentido e significado a eventuais vícios do acordo por troca de notas, por sanação posterior172, razão pela qual não existe interesse jurídico no conhecimento do pedido na parte que se vem considerando»173.

O Tribunal apenas considerou inconstitucional o Acordo para instalação de uma estação GEODESS (ground based electrooptical deep space surveillance), afirmando que os acordos por troca de notas (cujo regime de conclusão a nível nacional é o do acordo em forma simplificada) violam o preceituado na Constituição (na altura, o art.º200, n.º2 e, actualmente, art.º 197, n.º2, após a revisão constitucional de 1997).

Esta norma estatui que «A aprovação pelo Governo de acordos internacionais reveste a forma de decreto».

7.2. O controlo preventivo das normas convencionais

No domínio dos tratados, importa ainda considerar outras normas que directamente se lhes referem. Quanto à fiscalização preventiva da constitucionalidade regula o n.º1 do artigo 278.º, que diz que «O Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitu¬cional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe tenha sido subme¬tido para ratificação, de decreto que lhe tenha sido enviado para pro-mulgação como lei ou decreto lei ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura. A apreciação preventiva da constitucionalidade deve ser reque¬rida no prazo de oito dias a contar da data da recepção do diploma (n.º3). Toda esta matéria, designadamente a procedimental está regulada na Lei n.º28/82, de 15.11, Lei do Tribunal Constitucional, alterada pela Lei n.º 143/85, de 26.11 e pela Lei Orgânica n.º 85/89, de 7.9. O Tribunal Constitucional deve pronunciar se no prazo de vinte e cinco dias, o qual, no caso de normas de acordos internacionais, pode ser encurtado pelo Presidente da República, por motivo de urgência (n.º8).

Esta regulação constitucional da fiscalização preventiva de normas de tratados internacionais em geral em ratificação exige algumas clarificações, que se sintetizam: o PR pode solicitar a apreciação da constitucionalidade dos tratados em forma solene aquando da apresentação para ratificação. Quando a aprovação de um acordo em forma simplificada tiver sido feita pelo Governo, ela é feita por decreto, o qual, nos termos do art. 137 está sujeito à assinatura presidencial, pelo que a submissão do decreto governamental de aprovação a assinatura presidencial equivale à apresentação para ratificação, abrindo a possibilidade de o PR solicitar nessa ocasião a fiscalização preventiva da constitucionalidade, pois não teria sen obrigá lo a assinar a aprovação de um tratado suspeito de inconstitucionalidade sem lhe permitir submeter antes a questão ao TC.

Quanto à aprovação dos tratados solenes, as resoluções de aprovação não carecem de assinatura presidencial e o tratado é apresentado apenas para ratificação pelo que é este o momento da provocação da apreciação jurisdicional. Quanto aos acordos em forma símplificada, que não são submetidos a ratificação presidencial, o momento da fiscalização preventiva é o da assinatura dos instrumentos de aprovação. A norma em apreço fala apenas nos «decretos de aprovação», o que abrange a os casos de aprovação pelo Governo, mas há também as resoluções da AR, que no caso da aprovação dos acordos internacionais simplificados também são assinadas pelo PR (alínea b) do artigo 137.º), justamente para lhe permitir um controlo de última instância.

7.3. As normas sobre o controlo sucessivo da inconstitucionalidade dos tratados

Quanto à fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade (artigo 280.º da CRP), a Constituição prevê que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo (n.1). E quando a norma cuja aplicação tiver sido recusada constar de convenção internacional, (...) os recursos de qualquer norma «são obrigatórios para o Ministério Público» (n.3). Os recursos das decisões que apliquem norma considerada no processo como constitucional (...) só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, devendo a lei regular o regime de admissão desses recursos» (n.º4). Cabe, ainda, recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público, das decisões dos tri-bunais que apliquem norma anteriormente julgada incons-titucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional» (n.º5).

Quanto à fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade (artigo 281.º), «O Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral: a) a inconstitucionalidade de quaisquer normas; b) a ilegalidade de quaisquer normas constantes de acto legislativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado». E no que respeita às entidades que podem requerer ao Tribunal Constitucional a declara¬ção de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral, temos o Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro Ministro, Provedor de Justiça, Procurador-geral da República, um décimo dos Deputados à Assembleia da República, os Ministros da República, as assembleias legislativas regionais, os presidentes das assembleias legislativas regionais, os presidentes dos governos regionais ou um décimo dos deputados à respectiva assembleia legislativa regional, quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas ou o pedido de declaração de ilegalidade se fundar em violação do esta¬tuto da respectiva região ou de lei geral da República (n.º2).

O Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ile¬galidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos (n.3).

7.4. A apreciação da inconstitucionalidade material de normas do direito internacional

7.4.1. A questão do direito não convencional

A) Os actos unilaterais

Quanto a estas declarações que obrigam na sociedade internacional, a Constituição não refere expressamente a validade em geral de actos jurídicos unilaterais internacionais. Apenas ressalva caso de declaração de guerra. Deve, por isso, entender-se, na concepção tradicional e constitucional do monismo moderado, que a validade e a recepção segue os mesmos termos dos actos enunciados no n.º1 do artigo 8.º (e, como regra deste direito internacional público entrado na ordem jurídica portuguesa pelo n.º 1 do artigo 8.º, os tribunais sejam insusceptíveis de declaração da sua inconstitucionalidade, quando não escritos)174.

B) O direito consuetudinário, os princípios gerais de direito e o ius cogens de origem convencional

Quanto às normas de direito costumeiro, resultante de práticas internacionais, com ou sem a participação portuguesa, e aos princípios gerais de direito internacional, fontes de natureza não escrita, e no que concerne aos últimos, na sua maior parte integrados já no actual ius cogens, não são controláveis pelo TC, pese embora uma não previsão expressa do legislador constituinte, embora esta conclusão não seja impedida pelo n.º3 do artigo 3º da CRP, referente á soberania e legalidade, e siga na linha do que é apontado pelo n.º2 do artigo 16.º. Entram automaticamente e vigoram incondicionada e obrigatoriamente na ordem jurídica portuguesa, por imperativo do n.º1 do artigo 8.º da Constituição, com um valor hierárquico supraconstitucional, pelo menos aquelas normas de ius cogens e as outras com um valor, no mínimo constitucional, sendo ilegais por inconstitucionalidade indirecta, todas as normas de direito interno que as contradigam.

7.4.2. A questão do direito convencional negociável

A)-A leitura do texto constitucional

O n.º 1 do artigo 277.º da Constituição diz que «São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados». Assim dito, teoricamente, em face da letra da Constituição, temos um enquadramento que não excepciona do controlo da inconstitucionalidade nenhuma norma. Segundo a letra do art.º277, n.º1 e o consequente art.º 280 da Constituição, as normas de direito internacional podem ser inconstitucionais e como tais declaradas pelos tribunais em geral e, em última instância, pelo Tribunal Constitucional.

B) A jurisprudência de self-restraint

Mas entendo que isto não diminui a sua capacidade de trilhar os caminhos do self restraint, comuns nas jurisprudências com outros ordenamentos jurídicos semelhantes, em situações aí não comandadas, designadamente de inconstitucionalidade material, como aconteceu, v.g., no ATC 154/86, em que o mais alto tribunal de julgamento da constitucionalidade adoptou uma postura semelhante à dos seus congéneres alemão e americano, nos termos antes expostos sem base constitucional, o que funda verdadeiramente um conceito que apelidaria de política jurisprudencial175. Os tratados em geral devem ser interpretados, num plano valorativo, harmonizadoradamente em relação à Constituição, e de qualquer modo, aplicados em termos de «self restreint» (excepção feita em matéria dos direitos fundamentais, questão aliás puramente teórica dado que na matéria, independentemente da consagração interna de um catálogo inicial e de normas dispersas na CRP, associados a uma cláusula aberta à recepção de qualquer direito do homem de qualquer fonte interna ou externa, sempre vigora a CEDH e se impõe a sua interpretação feita externamente pelo Tribunal de Estrasburgo, na ordem jurídica portuguesa, tratando-se de normas incluídas nas considerações feitas em A).

 Aliás, entendo que, no mínimo, se impôe a prática de «self restreint» sobretudo nas situações que correspondem ao conteúdo do n.º 3 do artigo 91.º da Constituição holandesa, que constitucionaliza, impedindo a apreciação negativa das normas inconstitucionais votadas por dois terços dos deputados. Isto é, adaptando a ideia ao direito português, impõe, digamos, a autolimitação por força da Constituição (uma vez que só haveria hetero-vinculação se ela o dissesse expressamente com resulta da Constituição holandesa), nas situações em que a CRP permite a vigência de normas declaradas preventivamente inconstitucionais quando confirmadas por dois terços dos deputados em segunda leitura parlamentar única orientação que dá sentido à vontade reafirmada pela representação popular com uma maioria igual à da revisão constitucional, a que corresponde.

7.5.O regime especial da inconstitucionalidade orgânica ou formal dos tratados solenes

7.5.1. O conteúdo do n.º 2 do artigo 277

O n.º1 do art.º277 regula em geral a questão da inconstitucionalidade, mas, no domínio da fiscalização sucessiva, concreta, há uma norma constitucional específica referente ao direito internacional público: a norma do n.º2 do artigo 277.º da Constituição da República Portuguesa, que dá expressamente irrelevância à inconstitucionalidade orgânica ou formal. É sobre o seu regime, de grande importância na economia da relação internormativa, que vão incidir as considerações que a seguir se tecem: O n.º2 do artigo 277.º da CRP dispõe que: «A inconstitucionalidade orgânica e formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental». Estabelece, assim, os seguintes pressupostos de aplicação: a)-casos de normas com inconstitucionalidade não material (orgânica ou formal); b)-constantes de tratados internacionais regularmente ratificados, isto é, tratados em forma solene e não de acordos em forma simplificada, que não recebem este favor da Constituição; c)-normas que sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte; d)-a inconstitucionalidade não resulte da violação de uma disposição fundamental. A primeira exigência do n.º 2 do artigo 277.º é a de que se trate de uma inconstitucionalidade orgânica ou formal, referindo unaniemente a doutrina que a inconstitucionalidade material está excluída do âmbito de aplicação desta norma da CRP175a.

7.5.2.O âmbito de abrangência dos tratados internacionais

Quanto ao segundo requisito, ele pressupõe a determinação dos tipos ou modalida¬des de convenções internacionais abrangidas por este regime.

Segundo um entendimento pacífico da doutrina portuguesa, o n.º2 do artigo 277.º apenas abrange os tratados solenes. Isto é, da previsão da norma estão excluídos os acordos em forma simplificada176. Contudo, ao contrário da tese defendida por RUI MEDEIROS , esta discriminação não significa, de modo algum, que os executive agreements possuam um «estatuto desprotegido» no ordenamento jurídico português. Mesmo quem entenda que o regime em apreço configura um tratamento privilegia¬do dos tratados solenes ou ainda que, com as maiores reservas, se aceite, em tese, a ideia de um «estatuto desprotegido», daqui não se podem extrair quaisquer conclusões para a resolução do problema do posicionamento hierár¬quico do direito internacional convencional. «Estatuto desprotegido» quanto aos efeitos especiais heterofixados (pois o o poder-dever do TC de limitar esses efeitos verificados os requisitos legais do n.º6 do art.º 282, mantêm-se)177.

Trata-se de um «regime privilegiado quanto ao seu controlo»178, só excepcionado quanto aos Acordos de aprovação governamental, por estarem em causa precisamente os poderes do parlamento. Mas deve entender-se que termina aqui o desfavor aceitável, embora a doutrina não seja conclusiva quanto à problemática de saber se este regime se aplica só a tratados lei ou também a tratados contratos e indiferentemente ou não a tratados bilaterais e a tratados multilaterais. Mas há que responder, em relação à primeira questão que o n.º2 do artigo 277.º se deve aplicar indiferenciadamente às convenções normativas e às convenções contrato179. Quanto à questão de saber se aquele preceito se aplica indistintamente a tratados bilaterais e a tratados plurilaterais, não é relevante o uso da expressão «outra parte», embora seja complexa a exigência de operar com a cláusula da reciprocidade, o que fornece a alguma doutrina argumentos contra a inclusão dos tratados multilaterais.

No entanto, não é aceitável que os tratados multilaterais não se encontrem abrangidos pela previsão desta norma, pela simples diferença do número de celebrantes sem qualquer influência no conteúdo do compromisso, o que só poderia aceitar-se se houvesse razões de natureza substancial, que justificassem a restrição do âmbito de abrangência deste preceito apenas às conven¬ções bilaterais, único argumento que poderia justificar a diferença de tratamento. Ora, os tratados não mudam a sua natureza ôntica pelo facto de terem mais ou menos partes contraentes, não se vendo qualquer base para um critério distintivo assente no seu número.

7.5.3.O pressuposto da regularidade da ratificação

Quanto à fixação do pressuposto da regularidade da ratificação, há que começar por questionar se essa regularidade se afere à luz das normas internas ou das normas internacionais. E, depois, determinar quais as violações que, em concreto, permitem afirmar a existência de irregularidade da ratificação excludente da aplicação do artigo em causa. Isto impõe que o n.º2 do artigo 277.º seja interpretado em termos adequados aos valores que o legislador constitucional quis proteger. E

sta ineficácia da inconstitucionalidade orgânica ou formal consentida ou «autorizada» pressupõe exigências mínimas, que visam não permitir que se consubstancie uma violação dos requisitos formais ou dos trâmites procedimentais da ratificação, tal como ela foi concebida pelo legislador estadual.

Isto é, a regularidade da ratificação deve ser aferida à luz das normas constitucionais, e não do direito internacio¬nal. Se o regime «de favor» é estabelecido pelo e para o direito interno, se este não dispuser expressamente de maneira diferente, então por um princípio de unidade da «ratio legis» e da vontade que a impõe, os requisitos da sua aplicação devem ser aferidos à luz dos princípios desse ordenamento, sendo de qualquer maneira, certo que o próprio regime do art.º 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece que a perfeição de uma ratificação se afere pelos parâmetros dos direitos internos. Posto isto, há que acrescentar que a regularidade da ratificação, para poder ter um sentido unívoco no nosso direito constitucional, não pode deixar de exige que o sentido com que o conceito opera no artigo 277.º deve corresponder ao sentido usado no artigo 8.º.

Ora, sendo assim, tudo isto aponta para a ideia de que o vício de inconstitucionalidade de uma norma de um tratado solene, para não ter consequência inaplicativos, não pode ter que ver com o desrespeito de regras que estejam ligadas com a regularidade do procedimento de ratificação. A nossa posição é diferente. Mas vejamos primeiro o enquadramento constitucional da matéria. Quanto à intervenção do Presidente da República, ela é distinta, con¬soante se esteja em presença de tratados ou de acordos em forma simplificada. Cabe ao Presidente da República ratificar o tratado (ou pra¬ticar outro qualquer acto de valor equivalente, como a adesão), manifestando assim que o Estado dá o seu consentimento definitivo a estar vinculado a um compromisso internacional que tinha sido anteriormente sujeito a assinatura. E ele é também competente para assinar o acto interno através do qual se irá proceder à conclusão do procedimento adequado à pro¬dução de efeitos internos e, em alguns casos, internacionais, de acordos em forma simplificada. A fase da manifestação definitiva do consentimento a estar vincudado internacionalmente vai implicar o envio ao Presidente da República das Resoluções do Parlamento e dos Decretos do Governo, através dos quais haviam sido aprovados internamente os compromissos internacionais.

Mas o objectivo da remessa ao Presidente da República das Resoluções da Assembleia da República é diferente, consoante aprovem tratados (enviadas para ratificação do tratado, em conformidade com a alínea b) do artigo 135) ou acordos internacionais (remetidas para assinatura, nos termos da alínea b) do artigo 134.º). Os actos de assinatura e de ratificação do Presidente da República são sujeitos a referenda do Governo, pelo Primeiro Ministro (n.º1 do artigo 140.º)180. No plano do controlo da constitucionalidade, a assimilação entre a ratificação e a assinatura do acto interno de aprovação de acordos em forma simplificada transparece de ser este o momento em que pode ser requerida a fiscalização preventiva da constitucionalidade.

Com efeito, o Presidente da República tem o direito de suscitar a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes dos seguintes tratados (alínea g) do artigo 134.º e do n.º1 do artigo 278.º): 1.º- tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação. 2.º- acordo internacional simplificado cujo decreto governamental de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura. 3.º- acordo internacional simplificado cuja resolução parlamentar lhe tenha sido submetida para assinatura (alínca b) do artigo 134). A fiscalização preventiva da constitucionalidade permite ao Tribunal Constitucional poder pronunciar se pela inconstitucionalidade ou pela não inconstitucionalidade das normas objecto de apreciação. Mas a pronúncia do Tribunal Constitucional no sentido da inconstitucionalidade de norma constante de convenção internacional cria um quadro de consequências que, ultrapassando o relacionamento dos órgãos internos de soberania, são de natureza distinta das existentes no caso da declaração de inconstitucionalidade de um acto de produção interna. O destino das normas inconstitucionais depende do acordo das partes envolvidas na negociação se a ultrapassagem da situação implicar uma reformulação da norma considerada inconstitucional, situação em que, devolvido o tratado ao órgão que a tenha aprovado, podemos assistir a várias soluções.

Vejamo-las: 1.º- A tentativa de modificar o articulado em conformidade com a decisão do Tribunal Constitucional. A sua viabilidade depende, no entanto, do tipo de procedimento adoptado (no caso dos acordos em forma simplificada a produção de efeitos já pode ter começado a partir da assinatura) e das partes envolvidas (a alteração de uma convenção bilateral é formalmente mais fácil de ser alcançada do que a de uma convenção multilateral). 2.º- A aposição de reservas, no caso de tratados multilaterais181, se elas não forem contrárias ao objecto ou ao fim da convenção ou não forem por estas proibidas (artigo 19 da CVDT69 e o n.º1 do artigo 216 do Regimento da Assembleia da República). 3.º- A reaprovação, caso se esteja em presença de um tratado internacional aprovado pela Assembleia da República (n.º4 do artigo 279 e artigo 215 do Regimento da Assembleia da República)182. 4.º- A decisão do Estado de não se vincular internacionalmente, quando não se esteja em presença de um acordo internacional que já tenha começado a produzir efeitos ou da vinculação a uma convenção internacional resultante da participação de Portugal na União Europeia. 5.º- A assunção da responsabilidade internacional em face do incumprimento de obrigações internacionais, caso se esteja em presença de um acordo internacional que já tenha começado a produzir efeitos (acordo assinado sem reserva de produção de efeitos) ou da vinculação a uma convenção internacional derivada da participação de Portugal na União Europeia (violação das normas que integram o direito da União Europeia).

Neste domínio da ratificação, importa ainda saber se o Presidente da República tem o direito de não ratificar os tratados internacionais. E tem-no o direito de opção em duas situações: 1.º- Quando o tratado lhe é remetido pela primeira vez após aprovação pela Assembleia da República. 2.º- Quando o tratado tenha sido objecto de reaprovação pelo Parlamento, após declaração de inconstitucionalidade das normas que o integram (n.º 4 do artigo 279.º).

A competência do Presidente da República de ratificação dos tratados internacionais está prevista na alínea b) do artigo 135.º, enquanto o direito de não ratificar, não expressamente previsto no Direito interno, é uma competência que encontra o seu fundamento no Direito Internacional consuetudinário. Mas independentemente da liberdade que lhe assiste segundo o DIP e até da inexistência ou não de sanção no direito interno para a não ratificação mesmo que, se aprovado pelo órgão de soberania competente, ele fosse obrigado a ratificar e não o fizesse, em termos internos importa ver o enquadramento da matéria e suas consequências.

Ora, o Presidente da República pode, por razões de discordância política, negar se a ratificar qualquer tratado que tenha sido negociado pelo Governo, não obstante a atribuição a este órgão da direcção da política externa. Basta a leitura do n.º 4 do artigo 279.º, que não prevê a obrigatoriedade da ratificação do tratado numa situação de reaprovação. Com efeito, diferentemente da disposição semelhante para a reaprovação parlamentar das leis internas (artigo 136.º que prevê a obrigatoriedade da promulgação, quando tenha havido confirmação de um decreto da Assembleia da República que tenha sido vetado) o preceito referente a norma de tratado estabelece que quando se reunir a maioria de aprovação prevista (e só nesta situação), o tratado «poderá» ser ratificado. Isto é, sem a maioria constitucionalmente prevista de imposição do tratado em segunda leitura parlamentar o Presidente da República não pode ratificá-lo, mas se ela existir não fica obrigado a ratificar, é livre de o fazer ou não.

E no que se relaciona com os acordos internacionais, o Presidente da República tem um direito de não assinar os actos internos de aprovação, na medida em que não existe uma distinção material ou hierárquica entre tratados e acordos em forma simplificada na ordem jurídica portuguesa e é esta a forma adequada a manifestar a sua discordância política. 0 recurso à não assinatura só deverá ter lugar, no entanto, em situações limite, de oposição do Presidente da República, tendo em consideração a potencialidade do acordo internacional para produzir efeitos desde o momento da sua assinatura. No âmbito da União Europeia, o Estado português pode intervir em qualidades diferentes.

O Presidente da República pode intervir também em certos actos. Mas os efeitos da não assinatura do Presidente da República não são idênticos em todos os casos. No caso da não assinatura do acto interno de aprovação de acordos internacionais em forma simplificada com relevância comunitária os efeitos têm, em princípio, uma relevância interna, dado que a vinculação internacional pode resultar da assinatura, a menos que tenha sido deferida para um momento posterior à conclusão dos procedimentos internos de aprovação. No caso da não ratificação de acordos mistos que tenham a forma de tratado isso pode implicar o bloqueio da sua entrada em vigor, em conformidade com a cláusula de subordinação que tiver sido prevista. Finalmente, quando não sejam ratificados tratados que tenham sido concluídos pelos Estados enquanto membros das Comunidades ou participantes na União Europeia, isso pode significar o bloqueio da sua produção de efeitos, na medida em que tenha sido prevista a ratificação de todos os Estados que tenham participado na sua negociação.

Que dizer então? Há que relacionar este artigo com o n.º2 do artigo 277.º da CRP, referente à fiscalização da constitucionalidade dos tratados e que utiliza exactamente a mesma expressão. Em face desta interligação, importa começar por fazer uma reflexão global sobre esta parte da norma. A questão da inconstitucionalidade ficará para momento posterior. Diz ela que os tratados celebrados em forma solene se aplicam na ordem interna mesmo que feridos de inconstitucionalidade orgânica ou formal, desde que «regularmente ratificados, se não tiver sido violada nenhuma disposição constitucional fundamental». Resulta desta norma que os tratados em forma simplificada, ou seja, os acordos internacionais, aprovados pelo Governo, em forma de decreto, não são aplicáveis na ordem interna, quando feridos de qualquer tipo de inconstitucionalidade, contrariamente aos tratados que exigem o acto de ratificação propriamente dito, traduzido no acto específico de ratificação do Presidente da República. Se esta se verificou, produzem todos os efeitos na ordem interna, mesmo que tenha havido vícios no processo formativo da resolução de aprovação parlamentar ou da proposta governativa que formulou a iniciativa da resolução.

Ou seja, no caso de tratados sujeitos a ratificação do Chefe de Estado, a inconstitucionalidade formal ou orgânica não os torna ineficazes, desde que não haja “violação de uma disposição fundamental”, expressão que não pode deixar de ser interpretada em sentido concordante com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 46º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que foi a sua fonte de inspiração. De qualquer modo, o legislador constituinte gorou o seu esforço para compatibilizar o nosso direito interno com o disposto sobre a matéria na Convenção de Viena, que consagra a tese internacionalista moderada, com uma exigência suplementar, de que o carácter manifesto da violação formal do direito interno «afecte uma norma de importância fundamental».

A indicação expressa de que o acto ratificador pelo PR é de importância fundamental é natural e vai ao encontro do sentido da Convenção. Mas a exigência adicional de que não haja «violação de uma disposição fundamental» vai no sentido contrário ao da Convenção: ela usa esta exigência adicional para reduzir ao mínimo a invalidação de tratados mesmo que com irregularidades manifestas, enquanto a Constituição portuguesa parece usá-la para abrir as portas, para além da irregularidade do acto específico de ratificação, a um conjunto indefinido se situações irregulares. Significa isto que não só não clarificou as situações com que no direito internacional, haveria de ser densificada a exigência adicional da Convenção, como manteve a incerteza e insegurança quanto a esta questão, permitindo à doutrina mais «nacionalista» a expansão das situações de invalidade invocáveis. Em conclusão, a interpretação conjugada do termo «regularmente», usado quer no artigo 8.º, quer no 277.º, leva a que ele seja coerentemente interpretado como referindo-se a tratado ratificado pelo Presidente da República, sob pena de a norma não ter sentido, quanto aos Tratados solenes.

Quanto aos acordos aprovados pelo Governo, a inconstitucionalidade, mesmo a orgânica ou formal, produz efeitos, mesmo que tenha havido a promulgação do Decreto presidencial. E quanto à inconstitucionalidade material, a vontade do legislador constituinte em fazê-la relevar em todos os tratados internacionais. Mais tarde voltaremos ao tema, que não tem – nem juridicamente nem na prática- esta leitura tão unificada e absoluta que os constitucionalistas pretendem retirar da CRP. Mas esta doutrina leva-nos, realmente, a uma das questões mais controvertidas na doutrina portuguesa, designadamente após a adesão às Comunidades Europeia. Isto é, leva à conclusão de que todo o direito internacional teria um valor infraconstitucional. E quanto à legislação ordinária do Estado português, o direito internacional público prevaleceria sobre ela ou não? Lendo as Actas da Assembleia Constituinte, constata-se que aí JORGE MIRANDA defendia que «deverá entender-se que (as normas de direito internacional) têm legalidade superior à legalidade das leis», acrescentando que «tal não se encontra explicitamente afirmado», e, por isso, será «matéria provavelmente para estudo técnico, mas a formulação tal como se encontra no artigo 8º levará a esse entendimento. As normas do direito internacional prevalecem sobre as normas de direito interno, sobre as leis»182a. Segundo este constitucionalista e a doutrina em geral (embora alguns autores, tal como nós próprios, entendam que a redacção do art.º 8.º implica necessariamente a supremacia, sob pena da sua inexequibilidade, e daí a solução não dependa de nenhum estudo que possa eventualmente admitir-se que viesse infirmar a supremacia) há supremacia do direito internacional recebido convencional sobre o direito interno ordinário.

Para alguns autores, o direito interno que contrarie o direito internacional seria inconstitucional, porquanto estaria em contradição com o nº 2 do artigo 8º, que impõe a vigência (e, portanto, a manutenção da vigência na ordem interna, ou seja, a não eliminação da sua vigência), do direito internacional que vincula o Estado Português no plano internacional. E o direito internacional consuetudinário também teria primazia, pois a lei interna que afastasse a sua vigência na ordem jurídica nacional contrariaria o texto constitucional que integra este direito internacional no direito português (nº 1, artigo 8º). A lei que o contrariasse, “desintegrava-o” do direito português. Aliás, o princípio da coerência entre a actuação interna e internacional do Estado impede que as normas internacionais tenham uma posição diferente em função do critério da fonte de direito internacional, em relação às normas de direito interno, quando o DIP não diferencia o seu valor. Equiparadas em eficácia e força vinculante no DIP, devem ser objecto do respeito do princípio da sua equivalência na ordem jurídica interna.

Portanto, o direito interno anterior ou posterior à criação da norma internacional, que contrariasse o direito internacional é modificado ou derrogado por este. Assim, o direito internacional integrado teria valor supra-legislativo. Mas teria valor infra-constitucional, dado o disposto no nº2 do artigo 277º (que excepciona da aplicação na ordem interna, desde logo, todos os tratados feridos de inconstitucionalidade material), no nº 3 do artigo 280, e na alínea a), nº 1, artigo 281, aquele mencionando directamente a recusa judicial da aplicação de normas constantes de convenções internacionais, com a cominação da declaração da força obrigatória após 3 recusas de aplicação da mesma norma em casos concretos, além da previsão geral não excepcionada para os tratados, dessa declaração para quaisquer normas, a requerimento das entidades referidas no nº 2 do artigo 281º. Será assim? E os tratados de conteúdo materialmente constitucional, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, mandando a própria Constituição no seu artigo 16 aplicar o Direito internacional público referente aos direitos fundamentais e, até, mandando integrar as lacunas constitucionais e mesmo interpretar as normas constitucionais de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, constante de uma Resolução da Assembleia-geral da ONU, sobretudo se se entender que não é direito convencional, tendo quanto muito natureza de prova de direito internacional consuetudinário? No mínimo, estaríamos aqui confrontados com um problema de natureza paritária hierárquico-normativa183?

No entanto, repare-se que não é o direito internacional público que é mandado interpretar de acordo com o direito constitucional, mas o contrário. O que significa que, independentemente da questão pontual, explicitada pela sua importância em face da cláusula aberta dos direitos fundamentais, há uma aceitação do carácter supra-constitucional de normas de direito internacional. Importa clarificar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem entrou no direito internacional público ou por força do Pacto de 1966 ou por via consuetudinária e faz mesmo parte hoje do jus cogens. Há normas de ius cogens dispersas em princípios gerais, em direito costumeiro e em tratados gerais e até regionais (como a Convenção Europeia dos Direitos do homem, válida na medida em que não afronta normas de ius cogens universal, mas as aprofunda, complementa). E elas têm valor supra-constitucional.

Mas não só. Em geral, em relação ao direito internacional recebido na ordem jurídica interna, por força do nº 1 do artigo 8º, sem colocação de qualquer condição para a sua integração no direito português e onde se englobam as normas consuetudinárias, os princípios gerais do direito internacional público e as normas dos tratados de carácter geral (para-universal, resultantes da codificação do direito consuetudinário, do processo costumeiro e da diplomacia normativa), há que atribuir-lhe carácter supra-constitucional, pelo que aos tribunais fica vedado efectuar a fiscalização da sua constitucionalidade, pese embora o disposto no sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade, que assim se vê reduzido ao plano de direito convencional particular, que se integra no direito português, em termos condicionados, por força do nº 2 do artigo 8º.

De qualquer modo, se esta aferição invalidante se verificar fora dos casos de irregularidades manifestas referentes a normas de importância fundamental, o artigo 46º da Convenção de Viena não permite que se abra o caminho à nulidade do tratado no plano internacional, o que implicará, na falta do seu cumprimento, a responsabiliddadde internacional do Estado.

7.5.4.A questão da reciprocidade

Quanto à questão da reciprocidade, aparece aqui um requisito de difícil interpretação e aplicação, inspirado nos artigos 55.º184 e 28.º das Constituições Francesa e Grega, onde aliás recebe inúmeras críticas da respectivas doutrinas. Ele, nos tratados-contratos (onde vigora sinalagmaticamente a heterogeneidade de direitos e obrigações), postula naturalmente uma leitura baseada na diversidade dos efeitos do tratado na ordem interna de cada um dos Estados. Isto em ordem a que a salvaguarda dos efeitos tenha um alcance circunscrito aos segmentos do compromisso efectivamente aplicados nas ordens jurídicas das outras partes contratantes. Mas, no que diz respeito às normas de tratados multilaterais, basta que elas sejam aplicadas na ordem jurídica de um dos contratantes para que essas normas sejam aplicadas na ordem interna portuguesa. Portanto, a reciprocidade a considerar é a estabelecida norma a norma e não sujeito a sujeito, única tese adaptável à natureza das tratados lei.

7.5.5.A violação de disposição não fundamental

Quanto em concreto às violações admitidas pelo artigo 277.º, isto é, às situações que não afrontam o requisito de violação apenas de disposição não fundamental, é fácil referir a exigência de um carácter de gravidade no desprezo das disposições fundamentais em causa, mas é difícil em abstracto elencar essas situações que implicam a relevância, por excepção, da inconstitucionalidade orgânica ou formal. Só através de apreciações casuísticas do TC poderá vir a devida clarificação. Há quem considere como podendo caber aqui a hipótese de «incompetência absoluta» (aprovação de tratado por órgão sem competência de aprovação de tratados internacionais, como seria o caso de um Ministro do Estado ou um órgão de governo de Região Autónoma), «incompetência relativa» (aprovação pelo Governo de qualquer tratado político das categorias de aprovação reservadas ao parlamento -tratados de participação em organizações internacionais, de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras e respeitantes a assuntos militares e «inexistência jurídica da deliberação de aprovação» da Assembleia da República, por falta de quórum, de maioria de aprovação ou de reaprovação, no caso de declaração preventiva da inconstitucionalidade e a ratificação de tratado que, apesar de ter sido objecto de pronúncia de inconstitucionalidade, não foi sujeito à confirmação parlamentar nos termos do n.º4 do art.º279. Já nos parece excessiva a doutrina exposta no comentário ao artigo 277.º da Constituição por GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que considerando que certas normas de competência ou de forma podem assumir o estatuto de disposições fundamentais, pela sua «relevância quanto à distribuição da competência e à forma dos actos, vão até à inclusão das situações de negociação ou celebração de tratados sem a participação das regiões Autónomas (n.º 1 do artigo 229)185.

Estes autores em geral sobre esta matéria, tecem um conjunto articulado de considerações com as quais termino o apanhado da doutrina sobre o tema. Segundo eles, «o n.º 2, que consagra a irrelevância de certas formas de inconstitucionalidade de tratados, deve articular se com outros preceitos constitucionais, designadamente os artigos 8.º e 207.º. A razão de ser do preceito está em não invalidar na ordem interna normas de direito internacional jurídico internacionalmente válido, só por causa da violação de regras secundárias internas relativas à competência, à forma ou ao procedimento da celebração ou aprovação de tratado. Não é isenta de dificuldades a densificação do enunciado «violação de uma disposição fundamental». Ele não pode pretender referir se a normas e princípios sobre a matéria pois a violação destes reconduz se a uma inconstitucionalidade material, e quanto a esta vigora o regime geral: são inválidas normas materialmente inconstitucionais constantes de tratados.

O seu sentido parece ser antes o de referenciar aquelas normas de competência, procedimento ou forma que, embora não incidentes sobre a regularidade da ratificação, assumem grande relevância quanto à distribuição de competência e à forma dos actos186. Por tudo isto, o alcance do n.º 2 do artigo 277.º não é de enfatizar, na medida em que só é relevante quanto à inconstitucionalidade não material e só diz respeito aos tratados e não aos acordos. E, mesmo no caso da inconstitucionalidade orgânica ou formal dos tratados solenes, só vale para a fiscalização sucessiva.

Só diz respeito a normas de tratados «regularmente ratificados». Isto é, mesmo quanto a estas, a inconstitucionalidade só não tem relevo se não tiver afectado a regularidade da ratificação e não envolver a violação de uma norma fundamental». Tudo isto levaria a, pela via da irregularidade da ratificação ou da irregularidade do procedimento prévio. Se acabar por validar a inconstitucionalidade orgânica ou formal, o que o legislador constitucional pretendia precisamente evitar, em princípio, não dando relevância, para impedir a responsabilidade internacional do Estado por incumprimento de puras regras do sistema competencial, isto é, em situação de inconstitucionalidade não material, apenas com condicionantes de excepcional gravidade orgânica ou formal.

A tese em causa praticamente anula o interesse do n.º 2 do artigo 277.º e, por isso, entendo excessivas estas conclusões, defendendo que a solução mais correcta (e coerente com os objectivos inspiradores, mesmo que insuficientemente precisados, do legislador constituinte) é a de uma interpretação o mais aproximada possível do artigo 46.º da CVDT de 1969.

O n.º 2 do artigo 277.º., na sua aplicação pelos tribunais pressuporá normalmente um procedimento de controlo da constitucionalidade, porque só no desenvolvimento do processo de fiscalização é possível verificar se ocorrem ou não as circunstâncias exigidas e não ocorrem as impeditivas da sua aplicação. No entanto, nos casos em que claramente se configure que a norma constitucionalmente violada não é uma disposição fundamental não tem que ser desencadeado nenhum incidente ou processo de apreciação da questão da constitucionalidade das normas impugnadas, por tal ser inútil, dada a ineficácia segura da verificação efectuada em termos da decisão a tomar no processo e consequente constatação da existência de inconstitucionalidade não material, subsumível ao n.º 2 do artigo 277.º 187.

A haver formalmente tal apreciação, trata-se de incidente ou processo com especificidades, pois, no caso de fiscalização sucessiva abstracta do TC, não pode haver declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, pois ela sempre seria ineficaz, não eliminando a norma do ordenamento jurídico com efeitos obrigatórios gerais e no caso de fiscalização concreta, se os tribunais ou as partes suscitarem o incidente de inconstitucionalidade, a verdade é que os juízes, impedidos de aplicar o artigo 204.º da CRP, não podem, neste caso, recusar a aplicação da norma internacional com fundamento na constatação da sua inconstitucionalidade orgânica ou formal.

7.5.6. As questões de desconformidade não material e o controlo preventivo O n.º 2 do artigo 227.º não dispensa a efectivação dos mecanismos de garantia da constitucionalidade e, por isso, pode colocar se, antes de mais, a questão de saber se é possível a aplicação extensiva do seu regime, isto é, se ele também pode ser aplicado no âmbito da fiscalização preventiva.

A tese da extensibilidade do regime da irrelevância da inconstitucionalidade não material também à fiscalização preventiva, poderia ser construído deste modo: se o julgador vai ter de aplicar uma norma convencional ratificada inconstitucional que respeite o enqudramento mínimo do n.º2 do artigo 277.º, porque não se há-de deixar permanecer o tratado na análise preventiva sobre a sua constitucionalidade? Nos precisos casos em que apenas estão em causa irregularidades em que se sabe que, ratificado o tratado, não ficará inviabilizada a sua permanência na ordem jurídica, regimes diferentes traduzem apenas a cobertura da incúria dos órgãos encarregados de velar pela defesa da Constituição.

Não há razões que justifiquem dar relevância a vícios competências que se não forem analisados na marcha do procedimento serão desvalorizados logo que se entre na vigência do tratado. Esta é a posição da tese da interpretação linear da norma, lida a partir da ideia de irrelevância, no domínio das normas de tratados, dos valores procedimentais ofendidos.

Não comungo destas considerações, bastando colocar duas questões para colocar em cheque esta possível argumentação A primeira questão é a de saber se é desprezável a utilização pelo preceito da referência expressa a «tratados internacionais regularmente ratificados» e de com esta tese se estar a eliminar o requisito da ratificação do elenco dos elementos da previsão da norma do artigo 277.º da Constituição? A segunda questão é a de saber se está em causa a irrelevância dos valores orgânicos e formais envolvidos na disciplina constitucional de elaboração dos tratados ou a valorização prodominante do momento em que esses valores são já chamados à apreciação, inspirada pelas exigências do próprio DIP, em face da vigência efectiva do tratado na ordem internacional, originada precisamente pelo desconhecimento oportuno da irregularidade, no momento preventivo, e assim evitar as consequências penalizadoras da inconstitucionalidade nesta fase, tendo presente designadamente os artigos 27.º e 46.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, só aplicáveis a partir do momento em que o Estado português já está comprometido internacionalmente188?

Na linha da tese da aplicação extensiva, JORGE BACELAR GOUVEIA, efectuando uma «adaptação do padrão constitucional», não valoriza a referência normativa a tratados já ratificados, achando admissível a aplicação do seu regime em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade. Portanto, segundo ele, se pelo mecanismo da fiscalização preventiva se concluir pela desconformidade da norma à Constituição, é possível, nessa mesma ocasião, aplicar o regime do n.º 2 do artigo 277.º da Constituição. Parece-nos inaceitável esta posição, por variados argumentos. Vejamos. Na fase de apreciação preventiva ainda não há ratificação nem vigência e este tipo de controlo pretende precisamente prevenir uma ratificação inconstitucional em ordem a evitar o comprometimento.

Tal interpretação não decorre dele e está mesmo contra o teor literal da norma, que pressupõe a ratificação, e mais a ratificação regular. Por isso, na economia do sistema garantístico da Constituição, a orientação da irrelevância não traduzindo um desvalor da inconstitucionalidade orgânica e formal, situa um preceito claramente excepcional, que pode servir a uma argumentação extensiva na apreciação sucessiva, pelas mesmas razões mas nunnca na preventiva, em que as razões da irrelevância da inconstitucionalidade podem ainda ser evitadas. É que esta excepção à produção dos efeitos da inconstitucionalidade só é explicável para evitar consequências jusinternacionalistas, em certas condições em que a norma já vigora na ordem jurídica internacional, nas outras normas jurídicas estaduais e muitas sujeitas a condições de reciprocidade, tudo precisamente porque o controlo preventivo não funcionou, procurando então a Constituição, a posteriori, reduzir ao mínimo as exigências de direito interno que coloquem em causa a apli Na lógica compreensível do legislador constitucional, em face de preocupações internacionalista, trata-se de dar vida no direito interno numa quase forçada «regularização» ope constitucionis a um tratado que já a tinha no DIP, mas que, pelo sistema garantístico instalado na letra da Constituição, não a tinha no nosso direito. A mesma preocupação está presente noutras soluções, não pela via da ineficácia sistemática da inconstitucionalidade, mas da eficácia retroactiva dos efeitos das normas inconstitucionais ou da eficácia parcial.

Estender a solução à fiscalização preventiva significava eliminar o interesse da consagração de uma parte do sistema competencial de elaboração dos tratados, porquanto as respectivas normas poderiam sempre ser impunemente incumpridas. Mas, então, não podemos dizer que assim se criou uma técnica de, pela inércia, pelo silêncio conivente de quem pode impugnar as normas imperfeitas na fase preventiva, se impor tratados inconstitucionais? Pode, mas isso pressupõe que, independentemente da Constituição, não há um dissenso à volta dessa aprovação, melhor, que há um quase total consenso nacional no texto do tratado, dada a atribuição de poderes impugnatórios a um número reduzido de parlamentares. E só isso já teria significado suficiente para impedir a interpretação extensiva.

Na Constituição holandesa, esse significado foi mesmo levado ao ponto de constitucionalizar a aprovação parlamentar, por dois terços dos deputados, de tratados inconstitucionais (n.º3 do artigo 91.º) 189. JORGE BACELAR GOUVEIA aduz, entre outros, um argumento de natureza histórica, baseado na transferência do art 277 do âmbito da fiscalização abstracta sucessiva (onde se encontrava até à revisão de 1982, em que participei) para o início do título referente à fiscalização da constitucionalidade em geral. A nova inserção sistemática do preceito reflectiria uma intenção de lhe conferir um alcance mais vasto, susceptível de abranger o controlo preventivo da constitucionali¬dade. Mas esta utilização do argumento histórico faz uma leitura que não colhe, porqque a deslocação de sítio é acompanhada do aditamentoà norma constitucional do requisito da regularida¬de de ratificação, que de outra maneira não era necessário, precisamente para evitar a leitura que este autor ora vem pretender fazer. Portanto, houve historicamente, ao mexer-se na colocação do preceito, a intenção de que não houvesse alteração do sentido do artigo. Isto é, a nova inserção sistemática foi acompanhada da introdução de um requisito de teor restritivo com o objectivo de preservar o sentido originário do preceito, ou seja, precisamente para excluir a possibilidade da sua aplicação em sede de controlo preventivo de constitucionalidade.

Defendo, pois, que nada justifica a extensão do regime. Onde precisamente ele mais deve funcionar, para evitar o remendo do n.º2 do artigo 277.º, tal como o controlo preventivo pode evitar os remendos da política do serf restreint na inconstitucionalidade material e os remendos no plano da conformação casuística dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade (n.º6 do artigo 282.º). Aliás, no plano dos tratados, dado o princípio da vinculação dos Estados na sociedade internacional, independentemente do seu direito interno, a lógica das coisas apontaria para haver um sistema de controlo preventivo rigoroso, não o controlo sucessivo. Em conclusão, não há aplicação dos princípios do n.º2 do artigo 277.º em sede de controlo preventivo.

7.5.7.O controlo difuso das inconstitucionalidades não materiais

Alguma doutrina190, tem levantado o problema de saber se o regime do n.º2 do artigo 277.º pode ser aplicado pelos tribunais em sede de fiscalização difusa. Ou seja, qual a atitude que os tribunais em geral deverão tomar se chegarem à conclusão que se encontram perante norma inconstitucional que preenche os requisitos do n.º2 do artigo 277.º. Deverão recusar a aplicação das normas convencionais com fundamento em inconsti¬tucionalidade, em face da directiva de vinculação geral que é o n.º2 do artigo 277.º? Deverão aplicar essas normas não obstante a sua inconstitu-cionalidade? Este problema nasce devido a uma «pretensa» ausência de um preceito idêntico ao do n.º2 do artigo 277.º na parte da CRP referente aos tribunais em geral, onde o artigo 207.º aparece a dar tradução orgânica ao disposto no n.º 1 do artigo 277.º na parte referente ao regime da inconstitucionalidade.

Este artigo 207.º dispõe que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados», sendo, segundo o n.º1 do artigo 277.º, precisamente, «...inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados». Obviamente que o n.º 2, ao referir-se à questão da aplicação de normas inconstitucionais, se dirige a quem tem de as aplicar, isto é, aos tribunais, pelo que, constando nesta parte da Constituição, não exigia uma repetição da sua previsão na parte referente ao enquadramento específico da organização jurisdicional. E não sendo de aplicação facultativa, todos os tribunais estão obrigados a, verificados os seus pressupostos, garantir a produção dos efeitos dos tratados na ordem interna portuguesa.

O artigo 277.º não é uma norma sobre fiscalização concentrada da inconstitucionalidade nem uma norma sobre as competências ¬do TC. Por isso, quando muito, poderia discutir-se a questão da sua melhor colocação sistemática, nunca a dos destinatários da sua aplicação.

A argumentação restritiva à base da letra do artigo 207.º não tem qualquer valor, até porque, a entender-se de outro modo, o artigo 277.º não teria qualquer utilidade, na medida em que o seu sentido é precisamente excepcionar a aplicação peça organização jurisdicional do art.º207 e outros preceitos sobre o regime da inconstitucionalidade. Além de que, aplicando se o artigo 207.º também ao Tribunal Constitucional, que é um tribunal, então o argumento levaria a que nunca o regime do artigo 277.º pudesse ser aplicado. Reconheça-se que alguns autores tentam colocar a questão em termos mais hábeis, isto é, interrogam-se sobre se a verificação dos pressupostos do n.º 2 do artigo 277.º não estará reservada apenas ao Tribunal Constitucional. Mas bastará constatar que nenhuma norma expressamente lhe atribui essa competência, nem nenhuma norma expressamente retira essa competência aos outros tribunais para darmos resposta cabal à questão. Em síntese, os tribunais podem apreciar e não podem recusar a aplicação de um tratado inconstitucional sempre que se verifiquem os pressupostos do art.º277.2, o qual confere aos tratados, independentemente da sua desconformidade à Constituição nos domínios concretizdos, uma «norma de normas que vale «credencial de vigência obrigatória» na ordem interna portuguesa.

 7.5.8.A questão da natureza da inconstitucionalidade não material do direito internacional A doutrina tem entendido que o n.º2 do artigo 277.º aponta para situações designáveis de «irregularidade». É esta a tese tradicional, segundo a qual a norma em causa consagra a figura da irregularidade de normas inconstitucionais No entanto, esta questão dogmática mareceu uma tentativa de requalificação por parte de Jorge Bacelar Gouveia, que defende que aqui estarmos perante uma situação de atribuição de um «valor positivo» ao acto inconstitucional, que define como ligado à não produção de «consequências jurídi¬cas negativas da inconstitucionalidade intrínseca e menor de um acto do poder político do Estado».

"Valor positivo" designaria a situação oposta, quanto ao efeito que provoca, à do desvalor ou valor negativo do acto inconstitucional». À norma de tratado inconstitucional junta o acto político stricto sensu inconstitucional e o acto jurisdicional inconstitucional, que também integra nesta categoria, assim procurando unificar três tipos de actos profundamente distintos entre si, aliás unidos apenas pela consequência negativa da não produção de sanções para o autor do acto, alguns em crise acelerada de subsistência, além da disparidade substantiva, uns normas e outros actos administrativos ou judiciais190a.

Mas a expressão «valor positivo» que pode ser utilizada para categorizar perpectivas distintas de favor normativo (ausência de reacção negativa do ordenamento jurídico), ou a situação de «autorização concedida pelo ordena¬mento» a que certos actos, apesar de viciados, continuem a produzir efeitos jurídicos ou a de valorização ou preferência do ordenamento por certo tipo de actos ou situações Mas qual o interesse desta requalificação se nos planos da gravidade do vício, da ausência de responsabilidade do autor do acto e da subsistência dos efeitos («prototípicos» na expressão de MARCELO REBELO DE SOUSA) de um acto viciado, as consequências são as mesmas perante uma situação de irregularidade ou perante uma situação do chamado acto de «valor positivo». Sempre os seus efeitos se mantêm. Sobretudo, importa rejeitar esta categoria na medida em que com ela se pretenda efectivar uma construção teórica segundo a qual a ausência de reacção significa necessariamente uma valorização de certos actos, assente que seja nas ideias da preservação de uma margem de autonomia do político na condução das relações externas, da insindicabilidade dos actos políticos (que em Estado de Direito tem que acabar, sob pena da sua incompletude), ou da irresponsabilidade dos magistrados.

Não pode rejeitar-se a ideia de que o valor de um acto depende do tipo e intensidade da reacção aos seus vícios, pois a intensidade da reacção da ordem jurídica só pode estar ligada e portanto significar algo sobre a gravidade do vício ou contribuir para graduar ou mesmo desancionar o desvalor do acto, nunca para o definir. Esta aceitação da irregularidade constitucional desvalorizada a posteriori (na concepção que defendemos) não sana nem dá valor positivo ao que nasce sem ele, apenas traduz a ideia de que a ordem jurídica aceita pragmaticamente as consequências derivadas da não destruição de um acto viciado para evitar a constituição do Estado em responsabi¬lidade internacional, por razões de direito interno que não mexem com a materialidade das coisas nem com a constituição orgânico-formal nuclear.

7.5.9. A inconstitucionalidade não material e os seus efeitos jurídicos Quanto aos efeitos do juízo de inconstitucionalidade enquadrada na norma do n.º2 do artigo 277.º, ela vem limitar o efeito «natural» de um juízo de inconstitu¬cionalidade, que seria, em qualquer situação, a destruição do acto viciado. A imposição da manutenção dos efeitos do acto inconstitucional, consubstanciando uma hetero¬ vinculação191, não atribui ao aplicador do Direito a faculdade ou o poder discricionário de livremente poder aplicar ou desaplicar o tratado inconstitu¬cional. Estamos perante um poder judicil vinculado. Preenchidos os pressupostos de aplicação do n.º2 do artigo 277.º, o tribunal está vinculado a garantir os efeitos do tratado na ordem interna portuguesa.

Não pode desaplicar a norma, pelo contrário, tem de a aplicar. E também não pode desaplicar e considerar ilegais as normas internas que a executem, uma vez que são eficazes, vigorando na ordem jurídica com todas as virtualidades que tal lhe dá. Trata se, no fundo, de alcançar o mesmo objectivo dos esforços de auto limitação da political question doctrine (EUA) ou das Völkerrechtfreundlichkeit, Annährungstheorie, etc. (RFA)192, com a diferença que aqui a limitação vem de vinculação do exterior e decorre da própria Constituição, isto é, aparece como uma heterovinculação (que preclude a possibilidade de o julgador desaplicar tratados na ordem interna com fundamento em inconst¬itucionalidade).

7.6. A natureza e os efeitos da inconstitucionalidade Quanto aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade (artigo 282.º), «A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegali¬dade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado (n.1). Se se tratar de «inconstitucionalidade ou de ile-galidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última (n.2). Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em con¬trário do Tribunal Constitucional quando a norma respei¬tar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera orde¬nação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido (n.3).

7.6.1.O regime geral da eficácia da declaração de inconstitucionalidade

A natureza e os efeitos da inconstitucionalidade por acção dependem das formas de fiscalização. Na fiscalização preventiva, em que as normas em causa ainda não existem enquanto tais, a apreciação do Tribunal Constitucional interfere com o processo da formação da norma, ainda inacabado, estando incindivelmente ligada à sua promulgação ou assinatura, pelo Presidente da República ou pelo Ministro da República, terminando a declaração de inconstitucionalidade o processo ou obrigando a uma reponderação mais exigente, em segunda leitura. Sobre o tema dispõe o artigo 279.º.

Assim, quanto aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade na apreciação preventiva (artigo 279.º), «Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela incons¬titucionalidade de norma constante de qualquer (...) acordo internacional, deverá o diploma ser vetado pelo Presidente da República (...) e devolvido ao órgão que o tiver aprovado» (n.º1). «Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela incons¬titucionalidade de norma constante de tratado, este só poderá ser ratificado se a Assembleia da República o vier a aprovar por maioria de dois terços dos Deputados pre¬sentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções» (n.º4). Portanto, a Constituição admite, no caso da fiscalização preventiva, que a Assembleia da República possa superar o veto de inconstitu¬cionalidade do Presidente da República, permitindo assim que o Presidente da República venha a promulgar o diploma inconstitucional, se o desejar (art.º279.4, a meio: o decreto «... só poderá ser ratificado se...), o que não pode deixar de se considerar uma solução parareconstituinte, ao jeito de soluções constatáveis no direito comparado, embora menos declaradamente. A sua função é impedir que eles possam promulgar ou assinar diplomas com normas inconstitucionais.

Na fiscalização sucessiva, que tem por objecto normas já per¬tencentes à ordem jurídica, a função judicial é eliminá las, ou, pelo menos, afastar a sua aplicação.

Na fiscalização preventiva, a eficácia do juízo de inconstitucio¬nalidade passa por um acto de terceiros (o veto do Presidente da República ou o Ministro da República), Na fiscalização suces¬siva, o próprio TC declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral ou quer os demais tribunais, quer o TC julga as normas inconsti¬tucionais, e els em princípio não podem ser aplicadas. A natureza e os efeitos da fiscalização concreta são profundamente diferentes dos da fiscalização abstracta.

No controlo concreto, os tribunais limitam se a «desa¬plicar» no caso em juizo as normas que tenham por inconstitucionais, sem que essa decisão tenha qualquer influência sobre a vigência abstracta da norma, continuando esta em vigor e podendo vir a ser aplicada noutro processo, se outro for o entendi¬mento do tribunal competente. Ao invés, a declaração de inconstitucionalidade abs¬tracta pelo Tribunal Constitucional tem efeitos gerais (força obrigatória geral), com a consequente invalidação dessa norma e impossibilidade de ela continuar a ser aplicada por qualquer tribunal ou autoridade.

7.6.2. Os vícios da inconstitucionalidade

A inconstitucionalidade pode originar invalidade, inexistência, ineficácia ou irregularidade da norma.

Quanto ao regime da invalidade, em princípio, a inconstitucionalidade provoca a invalidade da norma em causa. É o que decorre explicitamente do n.º3 do art. 3.º: «A validade das leis (... ) depende da sua conformidade com a Constituição». Exceptuam se os casos em que a Cons¬tituição explicitamente fala em inexistência; aqueles em que fala em ineficácia (n.º2 do artigo122.º); e aqueles em que a inconstitucionalidade original não produz efeitos, pelo que a inconstitucionalidade acabará por constituir uma simples irregularidade (invalidade orgânica ou formal de tratado, sanada em face da aplicação da norma por outras ordens jurídicas), que não afecta a final nem a validade nem a eficácia da norma (caso do n.º2 do artigo 277.º).

O regime da invalidade é, em princípio, o da (artigo 282.º) figura típica da nuli¬dade, pois a declaração de inconstitucionalidade tem efeitos ex tunc (a norma não produz efeitos desde a origem) e eficácia repristinatória (repondo em vigor as normas que tenham sido revogadas pela norma declarada inconstitucional), mas o TC pode alterar a rigidez desse regime, retirando ou restringindo os efeitos ex tunc à declaração de inconstitucionalidade ou anulando o efeito repristinatório (art.º282.4). Quanto ao regime de inexistência, a Constituição determina expressamente a inexistência de certos actos quando lhes faltam certos requisitos essenciais promulgação ou assinatura (artigo 140.º) e referenda (n.º2 do artigo 143.º) , bem como de certos actos políticos, como sejam o Decreto de dissolução da Assembleia da República, que não marque a data de novas eleições ou que tenha sido ema¬nado durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º2 do artigo 175.º).

É difícil, embora teoricamente admissível que haja outros em que a solução constitucional seja, implicitamente, também a inexistência. No entanto, tal como no direito administrativo, também no caso de falta da aprovação de uma lei pela maioria constitucionalmente exigida, deve considerar-se como sujeito ao regime de nulidade, isto é, de invalidade constitucional, a que é aplicável a faculdade de fixar dos efeitos pelo TC prevista no artigo 282.º 193. O controlo da constitucionalidade pode verificar se em relação a quaisquer actos constitucionalmente viciados, designadamente os inexistentes (tal como acontece com o controlo pela jurisdição contencioso-administrativa dos actos inexistentes da AP), salvo no caso em que esses actos não podem, em geral, ser sujeitos a fiscalização da constitucionalidade, como acontece com os actos políticos.

Os actos inexistentes não obrigam, independentemente de qualquer declaração jurisdicional, e o natural é que não sendo executados, não produzindo efeitos, não sejam impugnados. Sendo-o, serão objecto de declaração de inexistência, situação que se impõe quando, apesar de inexistentes, continuam a produzir efeitos na ordem jurídica (ATC n.º 32188).

Quanto ao princípio dos efeitos represtinatórios, se o juízo de inconstitucionalidade afectar a validade da norma desde a sua origem, de tal modo que a declaração de inconstitucionalidade possui efeitos ex tunc (desde a origem da norma), fica sem efeito o próprio acto de revogação efectuado pela norma inconstitucional, pelo que a declaração de inconstitucionalidade implica, por princípio, a repristinação (reposição em vigor) das normas que tinham sido revogadas.

Da Constituição ressalta a repristinação no caso de declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral (n.º1 do artigo 282.º, in fine), mas a solução vale para o juízo concreto de inconstitucionalidade, facultando ao tribunal a aplicação de eventual norma anterior, em vez da norma julgada inconstitucional, sob pena de, para evitar o non liquet (artigo 207.º), entrar em construções da teoria geral para os vazios legislativos, aqui desnecessária. E se suceder que a norma repristinada também aparece arguida de inconstitucionalidade, o tribunal procede imediatamente à respectiva apreciação, no caso do juízo concreto. Pois o tribunal não pode aplicar normas inconstutucionais e não pode deixar de decidir a causa (artigo 207.º).

No caso de fiscalização abstracta o Tribunal Constitucional não é obrigado, salvo se tiver havido pedido cumulativo, a apreciar a constitucionalidade de normas cuja apreciação não lhe é solicitada, mas pode fazê-lo, no caso de a norma repristinada ser ela mesma inconstitucional. Senão faria anular uma norma inconstitucional e vigorar outra inconstitucional. E isso, porque a declaração implicará a repristinação das que ela tenha revogado, e assim sucessivamente.

Mas mais do que isso, até em face da faculdade de poder interferir na represtinação das normas, mesmo que não inconstitucionais (n.º4 do artigo 282.º), exercício que, a efectivar-se, implica logicamente saber qual a norma represtinada e a sua análise em face do caso concreto a que vai aplicar-se.

Pode também ocorrer, em matéria penal ou equiparada, que as normas repristinadas sejam mais gravosas do que as julgadas inconstitucionais. Nesse caso, a repristinação não pode deixar de ter como limite o princípio de que ninguém pode ser punido por uma lei mais gravosa do que a vigente no momento da prática de crime (n.º4 do artigo 292.º).

Finalmente, levanta se ainda a questão de saber se os efeitos repristinatório ocorrem em todas as hipóteses de inconstitucionalidade ou devem excluir se os casos de inconstitucionalidade superveniente. A verdade é que, neste caso, quando a norma revogou as normas anteriores, ela não tinha sido ainda declarada inconstitucional, mas era-o, e saí tem que, a partir da declaração em causa, ser retiradas as devidas consequências194.

7.6.3. O regime das decisões positivas e negativas do Tribunal Constitucional

Os efeitos da decisão em questões de constitucionalidade dependem do sentido desta. O sistema de fiscalização da constitucionalidade destina se a averiguar e declarar (ou não) a inconstitucionalidade das normas, mas não a podem declarar constitucional. O Tribunal Constitucional e os demais tribunais podem decidir que certa norma é inconstitucional, mas não a podem declarar constitucional. Isto é desde logo importante para a formulação do pedido e para a fórmula da decisão da questão de constitucionalidade

A distinção entre uma decisão positiva de inconstitucionalidade (provimento do pedido de inconstitucionalidade) e uma decisão negativa (denegação do pedido de inconstitucionalidade) torna se especialmente nítida na fiscalização sucessiva abs¬tracta, pois enquanto a declaração da inconstitucionalidade é irreversível, fazendo caso julgado, a não declaração é, em princípio, irrelevante. Na verdade, os efeitos obrigatórios gerais só se verificam nas «decisões de acolhimento» da inconstitucionalidade mas não nas decisões de rejeição da inconstitucionalidade.

Enquanto a declaração de inconstitucionalidade determina a sua nulidade ipso jure, eliminando a norma da ordem jurídica, a não declaração carece de quaisquer efeitos negativos, sendo admissível a repropositura ulterior de uma nova acção abstracta e a impugnação da sua constitucio¬nalidade por via incidental, por ausência de efeitos preclusivos.

Se o Tribunal Constitucional não se pronun¬ciar pela inconstitucionalidade das normas cuja apreciação lhe foi submetida, essa decisão não impede que os demais tribunais venham a desaplicá la, se a acharem inconstitucional, nem que o próprio Tribunal Constitucional venha a declará la inconstitucional em ree¬xame da questão, a requerimento de qualquer das entidades com poder para tal (que pode, aliás, ser a mesma). Todavia, as decisões negativas de inconstitucionalidade não são sempre, nem totalmente, irrelevantes.

Na fiscalização preventiva, se o Tribunal Constitucional se não pronunciar pela inconstitucionalidade das normas cuja apreciação lhe foi submetida em sede de fiscali¬zação preventiva, essa decisão impede o Presidente da República (ou o Ministro da República) de vetar o respectivo diploma por motivo de inconstitucionalidade (mas não impede naturalmente o veto político). E tanto na fiscalização preventiva como na sucessiva a decisão negativa estabelece uma presunção de não inconstitucionalidade, que pode ter alguns efeitos. Como exemplo desta, apontam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA que «mesmo que elas restrinjam direitos, liberdades e garantias, a Administração e os particulares não podem invocar esse facto para se recusarem a cumpri las, se o Tribunal Constitucional vier posteriormente a reexaminar o assunto e a declarar a inconstitucionalidade de tais normas, deve salvaguardar os efeitos entretanto produzidos»195. Na fiscalização concreta, as decisões negativas de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional proferidas em recurso de inconstitucionalidade constituem caso julgado na causa res¬pectiva, pelo que as normas questionadas não podem vir a ser desaplicadas nesse pro¬cesso com fundamento em inconstitucionalidade (pelo menos com os fundamentos apreciados pelo Tribunal Constitucional), pelo tribunal recorrido ou qualquer outro que venha a julgar da causa. No caso de o Tribunal Constitucional ter recorrido a uma interpretação conforme à Constituição, parece que tal vincula o tribunal recorrido e os demais tribunais que vierem a julgar a causa. Mas fora desse processo, as decisões negativas de inconstitucionalidade (tal como, de resto, as positivas) proferidas em fiscalização concreta não dispõem de nenhum efeito vinculativo, nem para os tribunais comuns nem para o próprio Tribunal Constitucional196.

7.6.4.A aplicação concentrada das cláusulas restritivas dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade do direito internacional público e de ilegalidade do direito interno desconforme com o mesmo

Se «a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito» (n.º4 do artigo 282.º). Quanto às normas de tratados, em ralação aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o TC, no caso GEODESS (Acórdão. 168/83, de 13.7), por razões de segurança jurídica e e interesse publico, que tem a ver, nomeadamente, com eventuais arranjos técnicos, previstos no acordo, cujas normas se declaram inconstitucionais, e que já hajam sido negociados ou estejam em curso de negociação, entendeu que era aconselhável fazer uso da faculdade de fixar os efeitos da inconstitucionalidade de modo a que eles se produzissem somente a partir da data da publicação do Acórdão no jornal oficial197. Na decisão que declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de certas normas do Regulamento da Aplicação ao Território Nacional do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (Resolução de Conselho de Ministros n.º44/86, de 5 Junho), ele restringe também os efeitos da inconstitucionalidade, por forma a que ela não atinja os processos de candidatura à intervenção do FEDER, já decididos ou pendentes197a.

Esta é uma possibilidade de uso geral nas declarações quer de inconstitucionalidade de normas do DIP, quer de ilegalidade de normas internas desconformes com o DIP. Portanto, «particulares e especiais razões de segurança jurídica e de interesse público» têm levado o Tribunal Constitucional a utilizar a faculdade de limitação dos efeitos temporais da declaração de ilegalidade inconstitucionalidade com força obrigatória geral198. Quanto aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade na apreciação preventiva (artigo 279.º), se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela incons¬titucionalidade de uma norma integrante de um acordo internacional, este tem de ser vetado pelo Presidente da República e devolvido ao órgão que o tenha aprovado (n.º 1). No caso de o Tribunal Constitucional se pronunciar pela incons¬titucionalidade de uma norma de um tratado, este não pode ser ratificado a menos que a Assembleia da República decida impô-lo, através da sua aprovação em segunda leitura parlamentar, por uma maioria qualificada de dois terços dos Deputados pre¬sentes, que seja superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (n.º 4).

7.7.Conclusão

Ao longo desta exposição, procuramos fazer um esforço de permanente conciliação das exigências do direito constitucional, do direito internacional público e do direito comunitário, tendo presente a necessária articulação aplicativa das suas normas na ordem jurídica portuguesa, o que me levou a apresentar as questões referentes à normação e à doutrina no plano da nomogénese e nomocracia relativa e defender, em concordância com a nomologia global adequada a um Estado participante quer na sociedade internacional (que continua o seu esforço para evoluir para uma Comunidade de Direito), quer na União Europeia (que é uma Comunidade de Direito), um conjunto de posições que ora se sintetiza e articula, num ou noutro aspecto essencial.

O direito internacional público, em Portugal, é incorporado enquanto tal e sem necessidade de transposição, a partir e enquanto vigora na sociedade internacional, tendo, em geral e segundo a doutrina dominante, pelo menos, carácter supra-legal na hierarquia das fontes de direito aplicável em Portugal. Esta recepção plena e o seu primado em face do direito interno infraconstitucional resulta, por um lado, do art.º 8 da Constituição da República Portuguesa, que o manda vigorar directamente, e, por outro, da parte garantística da própria Constituição, que consagra o sistema de fiscalização da constitucionalidade das normas, não só ao não excluir as normas de direito internacional público (quê normas?) do n.º1 do artigo 277.º e 288.1.a), como até ao referir-se expressamente, em várias disposição seguintes, à constitucionalidade dos tratados (n.º2 do artigo 277.º; n.º1 do artigo 278.º, 1ª parte; n.º4 do artigo 279.º), acordos (n.º1 do artigo 278.º, 2ª parte, n.º1 do 279.º) e Convenções (n.º3 do artigo 280.º). Este primado implica que uma norma de direito interno, anterior ou posterior a qualquer norma de direito internacional público, que disponha em sentido diferente, é inválida, passível de declaração de ilegalidade, porque ferida indirectamente de inconstitucionalidade, e como tal controlável difusamente pelos tribunais em geral e pelo Tribunal Constitucional, em sede de apreciação sucessiva à sua vigência, em fiscalização concreta (art.º280) ou abstracta com força obrigatória geral (n.º 3 do art.º281.º). O seu carácter de norma inconstitucional, embora indirecto, que num plano doutrinal não deixa de lhe competir, aparece hoje configurado como uma ilegalidade, sem prejuízo de se estar perante uma ofensa ao princípio do primado do direito internacional público, constitucionalmente consagrado, desrespeitado ao desrespeitar-se uma norma do direito internacional público, embora doutrinalmente, sempre que estejamos, não perante uma norma internacional considerável infraconstitucional, mas uma das referidas como tendo valor supraconstitucional ou constitucional, pelo menos aí melhor caberá a consideração de uma inconstitucionalidade.

Antes de me reportar apenas ao direito internacional público em geral, clarifico que quanto ao Direito Comunitário originário ou derivado, ao direito da União Europeia, tal como às normas de tratados fundadores de organizações dotadas com poderes decisórios em âmbitos de atribuições soberanas dos Estados, o n.º 3 do artigo 8.º, mesmo que complementado com o n.º 6 do artigo 7.º é, em termos de leitura literal, insuficiente para abarcar o poder impositivo supra-estadual vigente ao nível de certos sujeitos de direito internacional, como as Comunidades Europeias, a Organização das Nações Unidas ou o Conselho de Ministros da Convenção de Lomé, situações em que a realidade do direito supranacional se tem imposto à realidade do direito interno, havendo que considerar, de qualquer modo, quanto ao direito comunitário em sentido amplo, o princípio da sua primazia resultante da jurisprudência do Tribunal das Comunidades Europeias faz parte do acervo comunitário, a que todos os Estado estão obrigados e ele abrange tanto o direito ordinário, anterior e posterior, como o direito constitucional, isto é, o direito comunitário impõe-se a qualquer norma de fonte interna e mesmo de fonte externa, negociada pelo Estado à revelia do direito comunitário, que, independentemente da responsabilidade internacional deste pelo seu incumprimento, não pode ser aplicável pelas autoridades e tribunais nacionais, na medida em que contrariem a ordem jurídica comunitária.

Tudo isto, exige uma reformulação do direito constitucional português, adaptando-o às novas exigências unionistas, ao jeito dos EUA e quanto à Europa comunitária, dos Países Baixos. Ora, entendo que quanto ao direito internacional público em geral, importa distinguir as normas consuetudinárias, princípios gerais e também convenções gerais, e desde logo, à cabeça, as ligadas aos direitos humanos, que têm que ter claramente um carácter supra-constitucional e nessa medida insusceptíveis de inaplicação e portanto de fiscalização constitucional.

Aliás, quer o direito internacional público consuetudinário em geral, quer as declarações unilaterais não escritas, com força vinculativa na sociedade internacional são também insusceptíveis de fiscalização constitucional, devendo assim considerar-se em princípio de natureza constitucional, pelo menos as primeiras, sendo certo que as segundos levantam algumas questões delicadas.

A fiscalização fica reduzida aos tratados normais, livremente negociáveis pelos Estados e organizações internacionais. Quanto ao regime do n.º2 do artigo 277.º, as normas constantes de tratados solenes (mas não já as normas constantes de simples acordos) afectadas de inconstitucionalidade formal ou orgânica (mas não se se tratar de inconstitucionalidade material), não são inaplicáveis na ordem interna, se e na medida em que a inconstitucionalidade não incidir sobre elementos indispensáveis à regularidade da ratificação, pois de outro modo, nem sequer estaria preenchida a condição fundamental para entrarem a fazer parte da ordem jurídica interna, desde que a inconstitucionalidade não resulte da violação de disposição fundamental, mesmo que essa disposição não esteja relacionada com elementos essenciais à regularidade da ratificação e as normas do tratado sejam aplicáveis na ordem jurídica da outra ou das outras partes no tratado. Isto é, o vício original invalidante fica sanado se o tratado tiver vigência nas outras partes contratantes, é sanado ope constitucionis, a menos que haja violação de norma constitucional fundamental, designadamente ratificação irregular.

A inconstitucional originária da norma «não impede a sua aplicação», nem a aplicação de norma interna que se conforme com ela.

Não havendo inconstitucionalidade material, ela não transmite qualquer inconstitucionalidade a normas que a executem ou de qualquer modo dependam dela. São aplicáveis, porque são plenamente válidas. Validade que só normas válidas podem transmitir. E essa validade é transmitida, porque as normas internacionais habilitantes tornaram-se válidas nas condições do n.º2 do artigo 277.º. O sistema de controlo da constitucionalidade, operantemente remanescente no direito internacional, nesta concepção que perfilho, ou não é relevante (nas situações de irregularidade orgânica ou formal enquadradas pelo n.º2 do artigo 277.º) ou, sendo-o (por ser inaplicável o regime especial anterior, designadamente em situações de inconstitucionalidade material) e podendo como tal ser jurisdicionalmente declarada, nos termos do sistema constitucional vigente, não impede que os tribunais restrinjam o seu poder de declaração invalidante (prática de self-restraint) ou, pelo menos, os efeitos desta (n.º4 do artigo 288.º), tudo revelador da incomodidade, mas também da necessidade do Estado pós-bodiniano ultrapassar a rigidez, agora de base cultural, da concepção tradicional, historicamente situada mas ideologicamente ainda influente, de soberania nacional una e indivisível, poder supremo actuante não só para abaixo, na sociedade política em que vigora, mas pretensamente também acima de si, como se, ainda hoje, não se desejasse e lutasse contra poderes asfixiantes de impostos impérios europeus e papados temporais.

 

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