NOÇÃO DE DIREITO ADMINISTRATIVO

NOÇÃO DE DIREITO ADMINISTRATIVO

§14.NOÇÃO DE DIREITO ADMINISTRATIVO

 

Caracterizada a Administração Pública como o conjunto de entidades, de direito público ou privado, exercendo tarefas segundo o direito público ou privado, que desempenham a Função Administrativa do Estado-Comunidade, passemos a problemática sobre a ontologia do direito administrativo.

 

O que é, então, o direito administrativo?

A procura de uma definição para o direito administrativo está ligada a escolas jurídicas que se foram afirmando em França:

- as escolas clássicas de LÉON DUGUIT (escola do serviço público) e MAURICE HAURIOU (escola do poder público);

- as doutrinas ecléticas de MARCEL WALINE e RENÉ CHAUS; e

- a doutrina das base constitucional de GEORGES VEDEL.

 

O direito administrativo cobre todas as áreas da vida da Administração Pública, dado que a existência das diferentes pessoas colectivas, órgãos, serviços e pessoal e a gestão dessas pessoas colectivas está sujeito ao princípio da submissão da Administração ao direito.

 

E quais são os princípios fundamentais do direito administrativo?

Quais os princípios essenciais que é possível retirar da massa imensa de normas jurídico-administrativas?

 

Os autores voltam, hoje, a tentar reconduzir todas as normas administrativas a uma unidade passando pela noção central, que serviria de critério identificador, do serviço público.

Noção que há muito entrara em crise, após o seu apogeu, no início do século XX, com a teorização de DUGUIT e JÈZE, a partir de certos Acórdãos do Conselho de Estado e Tribunal de Conflitos franceses.

 

Nos seus termos, que hegemonizaram, pela sua simplicidade e operatividade, a jurisprudência e a doutrina da primeira metade do século passado, a diferença essencial entre a actividade pública e privada residiria no facto de a primeira estar consagrada à gestão de entidades desempenhando tarefas ligadas à satisfação do interesse geral (necessidades colectivas), ou seja, serviços públicos.

 

Isto levava a permitir a definição do Direito Administrativo como o direito dos serviços públicos, assim se separando os campos jurídicos e jurisdicionais: os serviços públicos marcam simultaneamente o conteúdo do Direito Administrativo (com as soluções que lhe são próprias, configuradas segundo uma razão de ser unificada pelas necessidades do serviço público), a fronteira do Direito Administrativo em face dos outros ramos do direito e a competência dos tribunais administrativos.

 

Acontece que a Administração Pública não se limita a gerir serviços públicos (v.g., quando exerce o poder regulamentar circunscritivo da actividade dos particulares, a chamada actividade de polícia), sendo certo que o direito administrativo tem uma função mais ampla do que aquela para que esse critério aponta, enquanto que, por outro lado, a gestão do serviço público não tem que utilizar apenas o direito administrativo, o que fazia já aparecer uma área tradicional de excepções ao princípio definidor do direito administrativo.

 

E acontece que, após a primeira guerra mundial, se acentuaram as mudanças económico-sociais superadoras da teoria liberal, que já vinham do século XIX, num desafio crescente ao aumento das tarefas administrativas, com a concomitante alteração do conceito de interesse público, a partir do fim desse século (deixando de integrar um número limitado de tarefas bem definidas, que aliás, em si mesmas, por razões de operacionalidade, já vão impor outro tipo de exigências para a sua realização eficaz, num fenómeno de extensão das tarefas clássicas), passando-se a um Estado intervencionista, Estado que vai proteger e incentivar empresas privadas ou mesmo controlá-las, devido ao perigo da sua interferência sobre o poder político, e também, depois, a ter serviços sociais (no Estado-providência), vai intervir na gestão da vida urbana, etc.

 

Esta ultrapassagem das tarefas tradicionais para um desenvolvimento de serviços económicos e sociais muda a natureza tradicional da actividade administrativa, que vai exigir novos instrumentos de acção e colocar em cheque a noção tradicional de serviço público.

 

O Estado, ao assumir actividades económicas, isto é, industriais e comerciais, com fins lucrativos e, por isso, desenvolvendo actividades da mesma natureza dos particulares, organizadas segundo um mesmo modelo estrutural e em concorrência com essas empresas privadas, vai ter de lhes aplicar o mesmo direito que elas (além do Fiscal, também o Direito Privado, quer o Civil quer o Comercial), hoje inelutavelmente por imperativo do Direito da União Europeia.

E vai ter de as sujeitar, também, na resolução dos conflitos relacionais, aos mesmos tribunais da jurisdição comum.

Elas escapam, portanto, ao direito administrativo, excepto as que, apesar de ter forma empresarial, sejam de índole política, realizando serviços públicos.

 

Ao mesmo tempo, o Estado confia certas funções públicas a entidades de direito privado, suas ou pertencentes a particulares.

E mesmo nos serviços tradicionais vai aplicando, cada vez mais, o direito privado em simultâneo com o direito administrativo.

Tudo revelando que o serviço público não tem de ser construído e gerido necessariamente com recurso ao direito da organização administrativa ou ao direito da actividade administrativa, ou seja, ao direito administrativo.

 

As entidades que desempenham a actividade administrativa agem ou em «gestão pública», assumindo o seu poder administrativo, ou em «gestão privada».

 

Daí a crise da concretização de uma noção unificadora do direito administrativo.

 

Em face disto, alguns autores, têm pugnado por outra construção:

RENÉ CHAPUS propôs aquilo que poderíamos chamar de uma concepção dual estruturada em dois círculos, continuando o critério fundamental do Direito Administrativo a estar ligado à noção de serviço público e o critério da competência da jurisdição administrativa a estar ligado ao exercício do poder administrativo.

 

Mas tal distinção não colheu o apoio da doutrina, que continuou à procura de um critério único.

 

E haverá outro princípio geral capaz de organizar sistematicamente o conjunto das normas jurídicas, a demarcar como Direito Administrativo, de modo a fugir a um critério dual, ou a critérios empíricos (critério da necessidade ou critério do voluntarismo, na afectação de privilégios ou na limitação de poderes) ou, pior ainda, a um critério sem critério, de afirmação de um puro existencialismo jurídico-administrativo, reduzindo-o a uma simples colecção de soluções de casuísmo legal, administrativo ou jurisprudencial?

Isto, sabendo-se que a Constituição portuguesa permite toda a iniciativa organizacional pública (mesmo de índole económica, embora com aplicação dos mesmo princípios comunitários da livre e leal concorrência), independentemente da realização de qualquer serviço público, mas pela simples invocação de um dado interesse público?

 

Será que a noção de interesse público ou a noção de utilização de «poder de autoridade» podem desempenhar este papel?

 

Em França, MARCEL WALINE, durante algum tempo, tentou defender a substituição da noção de serviço público pela noção de interesse geral, dado o facto de ela comandar toda a actividade da Administração Pública, mas os problemas introdutores da crise da noção de serviço público, voltam a afirmar a sua força destrutiva, dado que a generalidade dos serviços industriais e comerciais aplicam o princípio da gestão privada, precisamente por imperativo de interesse geral, nacional e Comunitário Europeu.

 

É, portanto, uma noção que comanda a aplicação de qualquer ramo do direito, questão puramente instrumental a objectivos que não são a ínsitos ao direito administrativo e que este aliás em certas situações até prejudicaria. Isto é, é precisamente o interesse pública a impedir a aplicação do direito administrativo, pelo que ela não pode caracterizar o direito administrativo.

 

A noção de poder de autoridade, combinada com a de poder executivo, foi objecto de elaboração (mas com um conteúdo redefinidor do conceito clássico de autoridade pública), desde a década de sessenta até princípios da de oitenta do século passado, por parte de VEDEL, na suas aulas, e, designadamente, num artigo intitulado «As bases constitucionais do direito administrativo».

 

Segundo esta tese, o direito administrativo seria o conjunto de normas autónomas aplicáveis à actividade administrativa com recuso à puissance publique.

Ou melhor, ele seria o direito comum do poder administrativo, englobando não só as prerrogativas da Administração, os poderes de autoridade, mas também as normas derrogatórias ao direito privado que caracterizam a acção administrativa.

Não é, portanto, uma concepção ligada aos poderes de autoridade da Administração Pública.

 

E, de tese em tese, vivemos, hoje, sem ter, ainda, descoberto o tal critério unificador do direito administrativo.

Alguns autores acreditam que será, ainda, na procura de uma teorização refundadora da, historicamente mais fecunda, noção de serviço público que este escopo poderá ser conseguido.

 

A noção de serviço público só é operativa na medida em que esteja ligada à ideia de Função Administrativa do Estado (Estado em sentido amplo de Estado-Comunidade, todos os poderes administrativos existentes dentro de um Estado, e não só de administração estadual, que é apenas uma das Administração Pública que realizam essa função).

 

Seria descaracterizar tal noção, tratando como um todo aquilo que apenas é parte. Mas deste tema trataremos posteriormente a propósito da Administração em sentido material.

 

As dificuldades sobre a definição e os critérios identificadores do direito administrativo e da repartição das competências jurisdicionais resultam da complexidade crescente da sociedade actual e da actividade administrativa que a segue e procura adaptar-se a ela.

 

É, pois, um fenómeno normal da sociedade moderna, nesta sua fase de evolução, acompanhando por vezes orientações de sentido diferente.

 

Há o reenquadramento de velhos problemas ou problemas novos que vêm trazer a alteração de técnicas jurídicas tradicionais (Administração sancionatória, acompanhando a tendência descriminalizadora de comportamentos sem dignidade penal; ou a Administração programadora e planificadora, v.g. planos administrativos no domínio da economia, ordenamento do território e urbanismo, com normas sem carácter geral, de tipo directivo -não executória nem puramente interpretativa-, de duração determinada, de aplicação diferida dada a sua natureza prospectiva) ou impor o recurso a novas modalidades de intervenção (administração incentivadora e de concertação) e simultaneamente inflexões neoliberais de liberalização de intervenções com prevalência de processos contratuais ou a reprivatização, acompanhando orientações de descomprometimento directo da Administração Pública designadamente na economia, mas não só, mexendo por vezes já com áreas tradicionais da grande administração, ligada a tarefas da soberania (com fugas ao direito administrativo que muitas vezes são fugas ao controlo público).

 

O direito administrativo é sempre chamado a absorver estes fenómenos, por que ele é um puro instrumento ao serviço da sociedade.

Ele impõe-se à sociedade, mas a sociedade também se impõe a ele, não o deixando sedimentar e ganhar a estabilidade suficiente para uma construção teórica que consiga perdurar.

***

 

Chegados a esta altura da exposição da matéria, já é possível dar uma noção de direito administrativo, em termos compreensíveis.

A que costumamos dar, mais ou menos nos termos que se seguem, vai naturalmente, independentemente das expressões usadas, na linha da que é corrente na nossa literatura jusadministratista.

 

O direito administrativo é o sistema de normas jurídico-públicas que disciplinam a organização, o funcionamento e o relacionamento das entidades da Administração Pública entre si e com os particulares, no exercício da função administrativa, assim como a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

 

Em termos de noção mais omnicompreensiva, podemos dizer que o direito administrativo é o ramo do direito constituído por normas jurídicas de carácter organizacional (direito orgânico da Administração), «processual» (direito procedimental administrativo e outro de natureza «processual», regulando os comportamentos da Administração) e material, ou seja, que disciplinam a organização (entidades que desempenham a Função Administrativa do Estado-Comunidade, suas atribuições, seus órgãos, competências e serviços; diferentes pessoas colectivas (públicas que desempenham tarefas da satisfação de necessidades colectivas da população legalmente assumidas como integrantes da função administrativa do Estado e entidades particulares, concessionárias ou delegadas destas), o seu funcionamento e o relacionamento entre elas com os particulares e outras Administrações (a maior parte de natureza material, direito objectivo da Administração, designadamente dos diferentes ramos do direito administrativo especial; caracterizadas quer pela atribuição de prerrogativas e sujeições administrativas, quer pelo exercício de direitos), com recurso à gestão pública (aplicação de direito público, e, nessa medida, sujeitando os conflitos que daí resultantes à apreciação dos tribunais da jurisdição administrativa).

 

A gestão privada é a designação usada precisamente nas situações em que a Administração age com recurso não ao direito administrativo, mas ao direito privado, e nessa medida sujeitando os conflitos que daí surjam à apreciação dos tribunais comuns. Pelo contrário, a expressão «gestão pública» quer dizer administração com recurso ao Direito Administrativo e sujeita aos tribunais administrativos.

 

Voltando a considerações sobre a definição do direito administrativo, podemos dizer, de outro modo, em termos mais explícitos, que o direito administrativo é o conjunto de normas jurídicas que, não fazendo parte do direito privado, regem essencialmente como seus objectivo primário a organização da função Administrativa e a sua actividade, integrando, pois, essencialmente mormas sobre:

a)- a organização e o funcionamento  da Administração Pública;

b)- as relações estabelecidas entre entidades das diferentes pessoas colectivas (públicas ou privadas que desempenham  tarefas da satisfação de necessidades colectivas da população legalmente assumidas como integrantes da função administrativa do Estado); e

c)- as relações destas com os particulares, caracterizadas:

    α)- quer pela atribuição de poderes regulamentares e prerrogativas decisórias, ligadas ao regime de auto-tutela declarativa e executiva e, ainda, a especificidades do direito contratual público

    β)- quer de sujeições administrativas, inexistentes na disciplina do direito privado imposta à regulação de relações materialmente semelhantes estabelecidas entre os particulares.

 

Recapitulando, tendo presente a globalidade das normas- objectivo, normas-meio e normas-garantia, podemos dizer que o direito administrativo é constituído por normas de carácter organizacional, de funcionamento, procedimental e material, tipificáveis essencialmente em termos quadridimensionais: normas orgânicas (direito orgânico da Administração), funcionais (normas de direito procedimental e outras de regulação dos comportamentos da Administração) e relacionais (a maior parte de natureza material, direito objectivo da Administração, designadamente dos diferentes ramos do direito administrativo especial e sancionatório administrativo) e normas garantísticas.

 

***

 

Depois de, já anteriormente, termos dedicado algumas palavras à origem histórica da expressão, importa passar agora a tecer também breves notas sobre os vários ramos do direito administrativo e outras áreas da ciência jurídica, a autonomia, formação, evolução e crise deste ramo do direito e, posteriormente, o desenvolvimento do tema do direito administrativo como sistema normativo: modelos da submissão da Administração ao direito, ou seja, em que termos está hoje a Administração sujeita ao direito, quer actue em «gestão pública» ou em «gestão privada», referindo aqui a teoria do direito privado administrativo ou administrativizado e a sua consagração no ordenamento constitucional e ordinário português, preparando, para um momento posterior, a questão dos modelos de organização e submissão à tribunais: o sistema de dualidade de jurisdição ou de regime administrativo, o sistema unitário e o sistema paradual. Diferenças, semelhanças e linhas de aproximação.

 

No que diz respeito aos vários ramos do direito administrativo, quer com autonomia científica, quer meramente pedagógica do estudo do direito administrativo, quer à sua relação com outras áreas da ciência jurídica, de natureza auxiliar, importa começar por fazer a distinção entre o direito administrativo geral e os direitos administrativos especiais, definindo alguns destes ramos, domínios específicos do direito administrativo e mesmo áreas de estudo mistas.