§6. TEORIA DOS ACTOS POLÍTICOS DO GOVERNO
Vejamos, agora, a temática da insindicabilidade dos actos ditos políticos do governo (actos da Função Política: Gubernaculum).
Nesta matéria sobre a Administração e a teoria dos actos de Governo, costumo referir que há uma actividade estadual, tida como sendo de natureza essencialmente política, e que, por isso, tradicionalmente, era tida como não redutível ao direito ou não apreensível normativamente, concepção essa que permanece mesmo no século XIX, isto é, ao longo da vigência do Estado de Direito, com as leis erigidas em expressão máxima do poder do Estado.
Esta função não caberia nem na função legislativa, nem na função executiva, nem na função jurisdicional, pelo que não era apreendida pela clássica fórmula tripartida jurídico-funcional, identificada com a separação de poderes.
Ela era tida, em geral, até há pouco tempo, como uma função juridicamente livre, incondicionada e autónoma, fora da teoria jurídica do Estado.
Nesta abordagem sobre o Direito e a Função Política, pode afirmar-se que a teoria dos actos de governo deriva de construções jurisprudenciais complexas e é explicável pelo tipo de relação existente entre a «jurisdição administrativa» e o Poder Executivo.
A sua construção, com origem historicamente situada no âmbito de uma jurisdição administrativa não independente, choca com os princípios do Estado de Dereito, seja delimitando genericamente um dado âmbito da actuação do Poder executivo regido só pelo Direito constitucional, e isento do controlo da Jurisdição Contencioso-administrativa, seja estabelecendo uma lista de pressupostos excluídos do controlo judicial.
Os actos de governo são aqueles actos jurídicos ou materiais que revestem a aparência de actos ou actividades administrativas, mas escapam a qualquer recurso jurisdicional.
Trata-se de uma função lógico-materialmente governamental, traduzida na orientação e direcção superior do Estado, na determinação do interesse público e interpretação dos fins do Estado, na fixação das suas tarefas e na escolha dos meios materiais, técnicos e organizacionais adequados à realização, conservação e desenvolvimento da ordem jurídica estadual[1].
A lista de actos de governo e, portanto, de actos não sujeitos a controlo jurisdicional tem diminuído, devido à contínua penetração do princípio da juridicidade na jurisprudência, e sobretudo às pressões do Direito Internacional e do Direito Comunitário Europeu.
A sua eliminação total será de grande alcance histórico, como refere a doutrina do país vizinho a propósito da lei de processo contencioso-administrativo espanhola[2] -[3].
Mas, em Portugal, não chegámos ainda ao momento da sua eliminação, mesmo que só em relação a actos agressivos de direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Tal só ocorrerá com a declaração de susceptibilidade geral de sindicabilidade contenciosa de toda a actuação do Poder Executivo, constante já hoje da legislação contenciosa espanhola[4].
O catálogo destes actos irrecorríveis decompõe-se em dois conjuntos heterogéneos, que RENÉ CHAPUS designa como actos de governo na ordem interna e actos de governo na ordem internacional (relações com organizações internacionais e Estados estrangeiros)[5].
Pertencem ao primeiro grupo, os actos do Poder Executivo e do Presidente da República, ligados às relações com o Parlamento (v.g. decreto de dissolução do Parlamento, medidas no exercício do direito de iniciativa legislativa, decretos de promulgação, assinatura de decretos do Governo, decretos submetendo uma lei a nova deliberação); ou que se prendem com as relações constitucionais entre o Presidente da República e o Governo (constituição do governo e apresentação de demissão, etc.); a ligação entre os órgãos de soberania e o eleitorado, corporizada no recurso ao referendum; as nomeações pelo Presidente da República de membros do Tribunal Constitucional; e outras designações de órgãos do Estado ou da Administração, como a das chefias militares.
Os actos de governo tomados na ordem internacional, supõem-se actos adoptados em ligação com as negociações ou execução de Convenções Internacionais (medidas tomadas e comportamentos no decurso de negociações de tratados; a assinatura, ratificação, aprovação, adesão, execução ou inexecução de compromissos internacionais, suspensão ou denúncia de convenção internacional); medidas relacionadas com a condução das relações diplomáticas, designadamente o exercício ou não, ou o exercício deficiente, do direito de protecção diplomática; medidas ligadas ao relacionamento com organizações internacionais, como o voto no Conselho de Segurança, etc., e os actos de guerra.
Assente inicialmente na teoria do móbil político[6] (e daí também a designação de actos políticos, abrangendo também os actos de escrutínio político e os actos parlamentares), esta imunidade de jurisdição, apesar de referida a actos hoje determinados de maneira objectiva, permitindo falar em «matérias de governo», não é validamente explicável, pelo menos, no seu conjunto (actos ofensivos dos direitos dos cidadãos), sendo certo que o Poder Executivo em Estado de Direito não pode deixar de estar submetido à lei, e, desde logo, à Lei Fundamental, quando se trate de actos de inscrição constitucional.
Qualquer acto do executivo deve ser sindicável por natureza em Estado de Direito. E, de facto, não o é não porque não haja legislação que enquadre a sua justiciabilidade, mas em certos países por declaração de incompetência dos próprios tribunais administrativos e judiciais, sendo certo que, quando causem prejuízos aos particulares, poderiam ser passíveis de apreciação pelos Tribunais Administrativos[7].
Estamos perante uma zona do Estado enquadrada pelo Direito, mas em que a summa potestas pode passar ao lado do direito, incumprindo-o.
De qualquer modo, a tendência tem sido para limitar a invocação da noção de acto de governo, devido desde logo ao fenómeno de internacionalização crescente da normatividade.
Como dissemos, o enriquecimento do bloco da legalidade por fontes de Direito Internacional Público e de Direito Comunitário tem ajudado a fazer recuar os actos de governo na ordem internacional ou supranacional, devido quer à internacionalização do processo de decisão governamental, quer à aceitação paulatina do princípio do primado das normas de Direito Internacional Público e de Direito Comunitário sobre o ordenamento jurídico interno, sendo certo que, no que diz respeito ao Direito Comunitário Europeu, este veio permitir uma redefinição oficial do papel do juiz, porquanto ele não deixa espaço para qualquer teoria nacional de acto de governo.
No domínio sensível das operações militares, o Conselho de Estado francês, desde 1950, vem considerando que só há acto de governo quando uma decisão foi tomada em relação com operações que tenham oficialmente o carácter de uma guerra[8].
Nesta perspectiva, a jurisprudência pretende acantonar a teoria do acto de governo aos actos jurídicos, considerando actos de governo apenas factos materiais praticados em relação com operações qualificadas de guerra no sentido de Direito Internacional Público (e não às simples hostilidades).
Assim não se permite, em muitas situações, o afastamento do princípio da irresponsabilidade do Estado por danos devidos a operações militares.
Aliás, quanto aos actos de governo praticados na ordem interna, a partir dos anos 20, em França, a incompetência da jurisdição administrativa ficou acantonada estritamente ao domínio das relações internacionais, considerando a teoria do acto destacável que muitos actos e comportamentos devem ser destacados da execução e das relações internacionais em geral e passíveis de recurso contencioso.
Esta teoria nasceu já em 1905 e tomou expressão no domínio do acto de governo, nos Acórdãos GOLDSCHMITT, de 27.6.1924 e D.ME CAPACO, de 5.2.1926. Segundo ela, o acto diz-se destacável quando é um acto de direito interno que pode ser ponderado em si, independentemente das relações internacionais.
Aplicada aos tratados, permite isolar dois tipos de medidas, as destacáveis da execução de um acordo internacional e as que, sem interferirem com tal execução, traduzem a consequência deste acordo, sendo dele separáveis[9].
O progresso constante do princípio da legalidade, neste âmbito, passou pela eliminação da imunidade de jurisdição das medidas conexionadas com as relações internacionais.
O reconhecimento do princípio do primado do Direito Comunitário leva a jurisdição administrativa a confrontar o Direito Internacional com o Tratado da Comunidade Europeia.
E, em geral, o Direito Convencional regula cada vez mais matérias cuja conflituosidade deve ser apreciada pelo juiz administrativo[10].
Hoje, a Função Política é exercida cooperativamente num processo que envolve Presidente da República, Parlamento e Governo, qualquer deles praticando actos políticos.
[1] Uma função que está acima do âmbito das três funções jurídico-estaduais e por isso estava atribuída ao órgão superior do Estado, Chefe de Estado ou Parlamento, no caso dos sistemas de governo parlamentarista.
[2] V.g., CANO MATA, A. -«Admisión por el Tribunal Constitucional de los actos políticos o de gobierno». REDA, n.º72, 1991, p. 555; EMBID IRUJO, Antonio -«La justicia de los actos de Gobierno (de los actos políticos a Ia responsabilidad de los poderes públicos». In Estudios sobre la Constituición Española. Homenaje al profesor E. García de Enterría. Vol. III, Madrid, 1991, p. 2958 e ss.; COBREROS MENDAZONA, E -Actos políticos y jurisdicción contencioso-administrativa, Madrid. 1995.
[3] Como se referiu na altura da alteração legislativa espanhola, «Ellos no acaban del todo, pero su legitimación de principio sufre un corte irreversible de acantonamiento material y al estrechamiento explicativo estrictamente indispensable de actos del ejecutivo con tal argumentación, en la medida en que la ley «parte del principio de sometimiento pleno de los poderes publico al ordenamiento jurídico, verdadera cláusula regia del Estado de Derecho, lo que es «incompatible con el reconocimiento de cualquier categoría genérica de actos de autoridad - llámense actos políticos, de Gobierno, o de dirección política- excluida «per si» del control jurisdiccional», adecuando el régimen legal de la Jurisdicción Contencioso-administrativa a la letra y al espíritu de la Constitución, lo que impide «la introducción de toda una esfera de actuación gubernamental inmune al Derecho. (…).El sometimiento de los actos de gobernación a la jurisdicción administrativa (hecha tendencialmente jurisdicción de «todos los asuntos» jurídico-públicos no atribuidos a otra jurisdicción) debe ser leída en términos relativos, visto que sufre algunas limitaciones, por ejemplo las connaturales a la defensa de las informaciones del Secreto de Estado. En tres sentencias de 4 de Abril de 1997, tal como en otra reciente de 30 de Enero de 1998(46), el TS considera que el acto de desclasificación no es un mero acto administrativo, sujeto al régimen común de control judicial, pues la «naturaleza sobre su desclasificación es propria da le potestad de dirección política que atribuye al Gobierno el artículo 97.º de la Constitución (sentencia de recurso n.º 601/96)», hablando también de una excepción propria de las arias sensibles «atinentes a la permanencia del orden constitucional (...)». Según la Jurisprudencia se trata de documentos que tienen carácter secreto, demostrando que existe una clara posición jurisprudencial sobre la admisibilidad de una actividad política del Gobierno». Pero esta exigencia objetiva de actos de la dirección política no impide, cara a los artículos 9 y 24.1, el control jurisdiccional de la legalidad cuando el legislador haya «definido mediante conceptos judicialmente ejecutables los límites y requisitos previos a los que deben estar sujetos los referidos actos. En este caso se dará prevalencia a otros valores, desde luego, el derecho a la tutela judicial efectiva, que puede justificar el pedido de desclasificación, por lo que la zona negativa al control judicial es una excepción que cede ante una excepción de ella propia, firme a la teoría de los «conceptos asequibles» que limitan y afectan a la teoría de los actos del Gobierno, limitando la validad de las zonas exentas al control judicial (CONDESSO, F. -La ley de la jurisdicción contencioso-administrativa y las especialidades del proceso en materia de personal. Policopiado, FD da UNEX, 1999, p.27)..
[4] Ley de Jurisdicción Contencioso-Administrativa, la Ley 29/1998, de 13 de Julho (Boletin Oficial del Estado, de 14.7.1998), alterada pela Lei 50/1998, de 30 de Dezembro, de «Medidas Fiscales, Administrativas e de Orden Social», cujo projecto genético de 1997, havia sido publicado no Boletin de las Cortes n.º1788-89.
[5] CHAUS, RENÉ –Droit administrtif général, 1993, p. 754-755.
[6] Ac. Duc D’Aumale, Conselho de Estado, 9.5.1867, até Ac. Prince Napoleón, C.E., 19.2.1875.
[7] Além de que o Tribunal Constitucional seria o órgão jurisdicional apto a proceder ao controlo desses actos na perspectiva do controlo público da sua constitucionalidade, se se ampliasse a sua competência para estes actos mesmo que não revestindo a forma normativa.
[8] Ac. C.E., de 22.11.1957, Myrtoon Steamship et Cie: decisão pronunciando-se sobre o envio forçado de tropas por um navio estrangeiro durante a 2ª Grande Guerra.
[9] O Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 2.12.1991, veio reconhecer o carácter de acto destacável a uma decisão ministerial anterior a um acordo de que ela, de qualquer modo, constitui a consequência.
[10] A obrigação de fundamentar as decisões administrativas, por exemplo, de recusa de extradição, solicitada ao abrigo de um tratado, retira-lhe a natureza livre de acto de soberania, sujeitando-a ao controlo jurisdicional do Tribunal Administrativo.