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NOMOGÉNESE URBANÍSTICA

NOMOGÉNESE URBANÍSTICA

IMPLICAÇÕES DA NOMOLOGIA COMUNITÁRIA E DO DIREITO INTERNACIONAL NA NOMOGÉNESE URBANÍSTICA
 
1.1. A complexidade das fontes normativas
O direito do urbanismo é um direito de génese hiperbólica e composição dispersa e contingente, dada a complexidade das fontes, com multiplicação de textos, impondo a elaboração de uma codificação das normas de aplicação geral ou, ao menos, de codificações parcelares passíveis de compilação natural, como ocorre com o Baugesetzbuch na RFA ou, ao menos, com o «Code de l’Urbanisme» em França.
As normas dos planos estão repletas de conceitos imprecisos e revisíveis periodicamente e sempre que a evolução urbanística o exija.
É um direito com uma nomogénese essencialmente nacional, ou seja, consti-tuído sobretudo (embora não exclusivamente) de fontes de aplicabilidade directa, de criação interna, oriundas do legislador nacional e das Administrações públicas nos diferentes níveis territoriais.
E é um direito de aplicação local, municipal, em termos do campo de eficácia directa das suas normas, com uma aprovação e sobretudo uma aplicação fortemente descentralizada, embora condicionado por normas e actuação planificadora governamental.
Mas, além disso, ele é um direito condicionado pelas políticas e normas jurídicas comunitárias e internacionais.
1.2. As fontes supra-nacionais
A nomologia urbanística não pode hoje esquecer a existência de um direito europeu, quer o de fonte internacional regional quer o comunitário (constituído esmagadoramente por normas de direito administrativo, de tal modo que podemos dizer que o direito comunitário é direito administrativo de fonte comunitária, sem com isso esquecer que também há normas, quer nos tratados, desde logo as orgânicas, quer em geral, mesmo no direito comunitário derivado, que contêm direito não administrativo, as referentes ao direito da concorrência não público e as do direito das sociedades), embora este direito de fonte supra-estadual não influencie sempre em termos frontais as instituições e categorias do nosso direito administrativo.
Mas frequentemente, contrariamente ao que parece deduzir-se de alguma doutrina nacional, este direito de fonte externa conforma-o de modo indirecto, quer condicionando-o, quer orientando-o.
E isso acontece, há muito tempo, também, com o direito do urbanismo, num movimento progressivamente envolvente, de penetração do nosso direito pelo Direito Comunitário e pelo Direito Internacional Público.
O Direito Comunitário e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem têm sido veículos de deslocação de um direito administrativo de opção nacional para um direito europeizado, com claros denominadores comuns europeus.
É certo que nem o Direito Comunitário nem o Direito Internacional Público elevaram o Direito do Urbanismo à órbita de matéria directamente a tratar ou tratada por instâncias extra-nacionais, como sua atribuição expressa e clara. Mas estes ordenamentos jurídicos intrometem-se crescentemente com ele, acabando com anteriores liberdades discricionárias do legislador nacional.
Com efeito, estamos numa época de europeízação do direito administrativo e de influências recíprocas dos direitos estaduais e do direito comunitário, com uma profunda repercussão deste no nosso direito interno, tradução jurídica do fenómeno de integração europeia, a que há que juntar a actividade convencional do Conselho da Europa, designadamente através da Convenção dos Direitos humanos e da aldeialização doutrinal propiciada pelo conhecimento do direito e jurisprudência comparados.
O direito administrativo europeu é cada vez menos (como afirma G. Falcon, in «Do Direito Administrativo Nacional ao Direito Administrativo Comunitário», RIDPC, 1995, pág. 351), «una specie di foresta non solo inesplorata, ma sconosciuta a molti nella sua stessa esistenza». A europeízação do direito administrativo avança até vir a ser realmente um Direito Administrativo Europeu, sendo certo que hoje ele é incipiente, o que cria limitações à sua abordagem, também devidas ao sistema de competências das instituições europeias, o qual não tem facilitado o apareci-mento de um direito administrativo comum aos Estados membros.
O processo de europeízação do direito administrativo nacional só pode ser medido através da análise das vias que o podem manifestar.
Ele desenvolve-se em princípio sobretudo através da aplicação pelas Adminis-trações Públicas estaduais dos princípios comunitários. E só excepcionalmente pela aplicação do Direito Comunitário por instâncias administrativas comunitárias.
Com efeito, o direito administrativo pressupõe uma administração que desenvolva as relações jurídicas que ele regula. Um dado direito administrativo pressupõe uma dada Administração de referência.
Um direito administrativo comunitário exige uma Administração sobre que incida o ordenamento jurídico comunitário, que o identifica. Ora, salvo casos excepcionais de Administração comunitária directa, normalmente são as Administrações Pú-blicas estaduais que executam o Direito Comunitário.
O direito administração, aplicado pela Administração comunitária directa-mente, não é o único direito administrativo comunitário, pois integram-se neste o conjunto de princípios jurídico-administrativos aparecidos nos direitos estaduais por força do Direito Comunitário, aplicáveis pelas Administrações Públicas na-cionais enquanto Administrações indirectas da Comunidade Europeia. O Direito Administrativo Comunitário ou Europeu é todo o direito regulador da execução do Direito Comunitário, criado e aplicado por quaisquer Administrações que sejam chamadas a funcionar como Administrações da Comunidade Europeia. É o con-junto de normas, principalmente princípios que as Administrações Públicas, nor-malmente estaduais, aplicam ao dar execução às normas de Direito Comunitário. É o ordenamento regulador da execução administrativa do Direito Comunitário.
O Tribunal das Comunidades vem desenvolvendo certos princípios como o da não discriminação na execução e o da eficiência, que obrigam as Administração Pública estaduais na execução do Direito Comunitário, integrando-se no sistema nomológico da União e dos Estados, fazendo parte do bloco da legalidade que obriga todas as Administrativo Público do espaço da União. O princípio da eficiência é expressão do princípio da fidelidade à Comunidade Europeia do art.º 5.º do Tratado da Comunidade Europeia, em termos que torna possível a realização da regulamentação comunitária. Este princípio exige que o Direito Comunitário se aplique efectivamente em todo o espaço europeu (vg. Acórdão 33/76, Acórdão 222/82, Acórdão Heylens de 15.10.87, Acórdão Johnson de 15.5.86, Acórdão 222/86 relacionado com a moticação). Ele exige, vg. que a transposição das Directivas se faça com clareza e transparência.
A repercussão do Direito Comunitário nos direitos estaduais resulta desde logo da harmonização causada pela jurisprudência do Tribunal das Comunidades, implicando estes como parte de um todo, muitas vezes com mudança de horizonte. Aliás as influências são recíprocas, com efeitos horizontal e vertical. O efeito vertical tem que haver com a influência do Direito Comunitário nos Direitos Administrativos estaduais e destes naquele. O efeito horizontal tem que ver com o facto de o Direito Comunitário agir como uma plataforma para a transposição de institutos de um direito nacional num outro direito nacional (fenómeno de spill-over) através da extracção de princípios de um direito nacional pelo Tribunal das Comunidades e, depois, a extensão da sua aplicação aos outros direitos nacionais. E através do efeito de harmonização jurídica, em que é notória a altera-ção ordenamental administrativa no Reino Unido, a partir de princípios afirmados pelo Tribunal da Comunidade, vg. o princípio da legalidade administrativa, da proibição de discriminação, da proporcionalidade, da segurança jurídica, da audiên-cia pública, e outros de carácter procedimental.
O Direito Comunitário não é um corpo jurídico separado dos direitos nacio-nais, pois interfere na conformação das instituições jurídicas nacionais, sendo certo que ele goza de supremacia.
Questão delicada chegou a ser a relacionada com a relação do Direito Comuni-tário e os direitos fundamentais consagrados nas diferentes Constituições estaduais, inexistindo um catálogo no direito da União sobre direitos fundamentais, embora haja disposições correspondentes dispersas pelo tratado em certos domínios: as quatro liberdades, a livre iniciativa empresarial, o direito sindical, o direito da igualdade, direito de petição, tendo de qualquer modo em geral que se ter presente hoje o art.º F do Tratado da União Europeia, que remete para os direitos funda-mentais de reconhecimento nacional e internacional, v.g. o direito de propriedade.
Inicialmente, o Tribunal das Comunidades não se considerou competente para apreciar ofensas causadas por actos comunitários contrários aos direitos fundamentais dos Estados (Acórdão de 4.2.59 e de 5.5.60).
Depois veio a reconhecer que os direitos fundamentais estão compreendidos nos princípios gerais do Direito Comunitário cujo respeito o Tribunal das Comunidades deve assegurar (Acórdão Stander, 12.11.69), afirmando em 1970 expressamente que os direitos fundamentais formam parte integrante dos princípios gerais de direito (Acórdão International Handelsgesellschaft 17. 12.70). O que significa que na Comunidade Europeia existe o mesmo nível de protecção dos Direitos Fundamentais que nos Estados membros, de modo que estes não podem inaplicar uma norma comunitária com fundamento de que esta ofende a Constituição estadual (Acórdão Nold, 14.5.74; Acórdão Defrennes III de 30.6.78, Acórdão Hauer de 13.12.79; na doutrina, Michael Schweitzer e Waldemar Hummer, Europarecht, Francoforte, 1980, pág. 188; Eberhard Grabitz, Kommentar, § 289 e 26, pág. 10). Se o direito interno não corresponde ao Direito Comunitário, seja aquele de criação anterior ou posterior, é inaplicável. O Acórdão Simmenthal, de 9.3.78, e a regra do primado do Direito Comunitário, ao dizer que os Tribunais nacionais estão obrigados a aplicar integralmente o Direito Comunitário e a proteger os direitos conferidos por este aos particulares, inaplicando aquele, dentro da teoria do efeito de bloqueio (sperrwirkung) ou da preempção do Direito Comunitário, ínsito em regulamentos e directivas, uma vez transpostas, e que leva à impossibilidade de criação nacional de normas posteriores, que as contradigam, sob pena de acção de incumprimento, nos termos do art.º 169.º do Tratado das Comunidades Europeias, havendo mesmo obrigação de derrogação normas internas contrárias, eventualmente existentes.
1.3. As incidências do Direito Comunitário no Urbanismo
O tratado da União não contém normas expressas referentes especificamente ao Urbanismo. Não é tarefa atribuída à União. Mas o Direito Comunitário interfere na matéria do urbanismo, tocando-a por vários ângulos fundamentais da sua realização. Desde logo, mas não só, o do ambiente.
Quais as incidências do Direito Comunitário do Ambiente no Direito interno?
Já sabemos que em geral o direito do ambiente e o direito do urbanismo se tocam e interpenetram. São vizinhos, que nem sempre se relacionam harmoniosa-mente, mas que em certos aspectos não podem deixar de se casar indissoluvel-mente. O Direito Urbanístico encontra-se hoje afectado pelo desenvolvimento do Direito Comunitário do ambiente, em termos de estudos de impacto, prevenção dos riscos industriais mais importantes, protecção de certas espécies animais, afectação dos solos, objectivos do desenvolvimento e ambiente urbano (Livro Verde sobre o Desenvolvimento Urbano, da Comissão Europeia de 1990; 5.º Programa de Acção para o Ambiente 1993-2000, e projecto das Cidades Sustentáveis), o enquadramento do direito de propriedade seguido pelo Direito Comunitário, as normas sobre a liberdade de circulação, de prestação de serviços e de estabelecimento fixadas no Tratado, as operações de urbanismo em face do direito da concorrência, as operações comunitárias em termos de cooperação transfronteiriça, os programas de apoio à renovação urbana (v.g. o Programa RECRIA em Lisboa, etc.), a acção comunitária em matéria de política regional e de ordenamento do território, etc..
As intromissões do Direito Comunitário, tal como as do Direito Internacional (que abordaremos mais abaixo), no urbanismo são muitas e significativas quanto ao seu alcance, além de que continuam a aumentar. Quer o Direito Comunitário quer o Direito Internacional Público vão encontrando o Direito Urbanístico com frequência, até porque se desmultiplicam cada vez mais, integrando objectivos mais alargados. Não há hoje domínios do direito público nacional que possa passar ao lado do direito europeu, independentemente de um dado tema concreto ser ou não expressamente previsto como atribuição da Comunidade ou em Tratados e Organizações internacionais. Há uma incontornável irradiação da sua força normativizadora através da via da afirmação, convencionada ou em termos de ius cogens, dos direitos fundamentais e de objectivos panorâmicos supra-nacionais, como ocorre há muito com o direito de propriedade, o princípio da garantia patrimonial ou o princípio da tutela judicial efectiva, tal como passou a acontecer, agora já mesmo por força dos próprios textos convencionais, com as atribuições comunitárias de protecção do ambiente. E se os direitos de fonte extra-nacional não impõem normalmente uma dada caminhada, dirigida de cima, ao Direito Urbanístico, criam seguramente limitações, balizas, conformadoras de muitas normas e soluções. Desde logo, por exemplo, a Convenção Europeia, dos Direitos do Homem influenciando o direito expropriatório, mesmo no plano urbanístico (pela sua aplicação aos bens fundiários), assim limitando as opções nacionais, funcionando a favor dos particulares, e o Direito Comunitário, sem pôr em causa aquelas (dada a comunhão de concepção, absorvida do Direito Internacional Público e das constituições estaduais, sobre o direito de propriedade), mas implicando também, em termos compensadores para o interesse público, sujeições urbanísticas dos particulares em nome da protecção do ambiente urbano.
Quanto ao mecanismo comunitário dos estudos de impacto, ele tem aplicação em diferentes procedimentos do urbanismo, em termos dos direitos dos Estados-Membros, tal como no uso de técnicas de zonamento, (vg. na criação de zonas de ordenamento concertado referidas no Código do urbanismo francês, art.º R.311-3), ou na instrução de licenças urbanísticas. E estes Estudos estão influenciados enormemente pelo Direito Comunitário, sendo enquadrados nacionalmente em aplicação da Directiva n.º 85-337, de 27 de Junho de 1985, referente precisamente à avaliação das incidências de certos projectos públicos e privados sobre o ambiente.
A legislação nacional tem de tomar em conta a problemática dos efeitos indirectos dos projectos, criando normas referentes aos estudos de impacto prévios às decisões administrativas, designadamente no campo do urbanismo.
No que se refere às preocupações referentes à ocorrência de riscos industriais, a Directiva Seveso, de 1982, veio obrigar os Estados a adoptar medidas de prevenção dos riscos causados pelas instalações industriais, o que implica desde logo, a imposição de limitações e a sujeição a exigências técnicas à ocupação dos solos, no licenciamento da construção e até mesmo interdições de construir.
A protecção de certas espécies animais selvagens ou ameaçadas, exigida por Directivas de 2 de Abril de 1979 e de 21 de Maio de 1992, impõem aos direitos nacionais que preservem certas zonas, mesmo à custa de medidas interditadoras da urbanização, podendo ocorrer anulações jurisdicionais de declarações de expropriação por utilidade pública instrumentais de urbanizações inconciliáveis com o direito comunitário ou anulações de classificações de certas zonas em termos que choquem com esse direito, quando as autoridades planificadoras permitam a ocupação dos solos para urbanização ou infra-estruturas, apesar de deverem considerá-lo como não urbanizável, por dever ser delimitados como uma «zona de interesse comunitário para as aves».
As implicações do Direito Comunitário do Ambiente vão ainda mais longe. O Tratado da União Europeia veio dotar as comunidades de poderes para tomarem medidas referentes à afectação dos solos (artigo 130.º-S), com claras repercussões portanto no Direito do Urbanismo. E o ambiente urbano tornou-se hoje uma das prioridades das instituições comunitárias para toda esta década, bastando ver o disposto no Livro verde da Comissão de 1990 e o Programa de Acção para o Ambiente 1993-2000, adoptado em 1.2.1993, com claras implicações nos Direito do Urbanismo dos Estados.
Com efeito, desde 1991, a União Europeia reorientou a política do ambiente para a promoção de objectivos de desenvolvimento sustentável. As políticas e acções ambientais da Comunidade a nível do mundo urbano passaram a ter assento no Direito Comunitário, com a previsão no Tratado da União Europeia da integração da protecção ambiental nas políticas sectoriais, que o origina a política ambiental urbana, com o avanço simultâneo do conceito de responsabilidade global e partilhada. A política estrutural da Comunidade Europeia modela, a partir de 1993 os fundos com objectivos ambientais. Em Março de 1994, aparece a iniciativa URBAN para levar à aplicação da uma gestão urbana sustentável. O próprio Livro Branco sobre o emprego «Crescimento, Competitividade, Emprego — Desafios e Pistas para o Século XXI» passa a interligar abertamente economia e ambiente. Tudo isto se relaciona com a agenda mundial, designadamente com teses da Cimeira da Terra de Junho de 1992, que merece uma análise do Grupo de peritos, no Capítulo II do respectivo relatório em termos de medição da aplicação dos seus princípios na União Europeia.
Este Grupo foi criado, em 1991, por proposta da Comissão, com a designação de Grupo de Peritos sobre o Ambiente Urbano. Foram-lhe definidas atribuições pelo Conselho, que vão desde o estudo da incorporação dos objectivos ambientais nas estratégias de planeamento urbano e ordenamento do território, apoio à Comissão sobre a inserção futura na Política Comunitária do Ambiente da dimensão urbana até à análise dos meios de intervenção comunitária para a melhoria do ambiente urbano. Em 1993, logo o Grupo apresentou o Projecto «Cidades Sustentáveis», visando a reflexão sobre a sustentabilidade dos estabelecimentos urbanos e a formulação de recomendações para influenciar as políticas da União, dos Estados, das Regiões e das autarquias, em cumprimento da Resolução do Conselho de 1991. A sustentabilidade urbana exige uma gestão e políticas locais de ambiente que satisfaçam as necessidades sociais e económicas dos habitantes das cidades, no respeito simultâneo dos sistemas naturais locais, regionais e globais, procurando resolver localmente os problemas em vez de os exportar para outros locais ou para o futuro, dentro de uma ideia de solidariedade de povos e gerações. O capítulo VI vem continuar o Livro Verde do Ambiente Urbano.
Em Maio de 1994, aproveitando a Primeira Conferência Europeia sobre o tema, realizada em Aalborg, na Dinamarca, foi lançada a Campanha Europeia das Cidades Sustentáveis, tendo-se realizado em Outubro de 1996 a Segunda Con-ferência em Portugal. O Relatório do Conselho Económico e Social serviu de base ao debate da Conferência «Para uma abordagem do desenvolvimento», realizada em Bruxelas, em Novembro de 1994. Versando também sobre a problemáticas dos núcleos urbanos pequenos, debruça-se sobretudo sobre as cidades, que mantêm uma linha de degradação, por falta de práticas adequadas de gestão do meio urbano, que a solucionem e permitam que elas cumpram a sua missão estratégica de patamar para um desenvolvimento sustentado regional e global (e não só, dado o seu papel-chave na economia europeia e mundial) em Estados que avançam para uma progressiva integração na União Europeia. Ele propõe aliás uma modificação profunda, mas não imposta em termos autoritários, do modo de vida urbano. E atribui às autoridades locais um papel de gestoras do ecossistema local, com a instalação de um ciclo auto-regulador, e não de transformação em linha dos recursos naturais em resíduos e poluentes.
Quanto à utilização do solo urbano, o Relatório, tal como os documentos da Comissão «Europa 2000 — Cooperação para o Desenvolvimento Territorial Europeu» e «Europa 2000 +, ...», reunindo as propostas para o desenvolvimento de um Esquema de Ordenamento do espaço urbano e regional na Europa, apontam como causas do crescente recurso ao transporte particular, ocupação de solos peri-urbanos, abandono dos centros tradicionais das cidades e redução da qualidade de vida, a descentralização das residências e emprego, com a suburbanização e separação crescente entre locais de trabalho e de moradia. O desenvolvimento sustentado exige, segundo o estudo em causa, o fim de uma visão limitada sobre o uso do solo, impondo-se uma integração das motivações ecológicas, aplicável a todos os tipos de desenvolvimentos urbanos, desde as cidades históricas até às áreas periféricas e às novas urbanizações, devendo identificar-se os objectivos ambientais logo nas fases de planeamento e ordenamento territorial, promovendo a ligação deste aos processos da Agenda 21 local, plano de desenvolvimento global saído da Conferência da Terra.
Mas o Direito Comunitário rege também no plano do direito de propriedade, reconhecido como um direito fundamental, que existe como tal nas Constituições dos Estados-Membros e o artigo 222.º do Tribunal da União Europeia não infirma. O Tribunal de Justiça Comunitário considera, (v.g. Acórdão Hauer, de 13 de Dezembro de 1979), que existe um princípio geral de Direito Comunitário segundo o qual se encontra garantido na ordem jurídica comunitária o direito de propriedade, de acordo com as concepções comuns aos Estados-Membros e o art.º 1.º do pro-tocolo I à Convenção Europeia. Ele reforça assim a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, incorporando-lhe complementos que interessam ao Direito do Urbanismo, como a indicação de que a protecção dos bens não se estende à protecção de interesses de ordem comercial, dado que à actividade económica é inerente o carácter aleatório, que não possibilita uma extensão da garantia do direito de propriedade, o que flexibiliza as opções indemnizatórias em casos de certos sacrifícios urbanísticos (arrendamentos ou perda de benefícios esperados de operações urbanísticas, devido a atrasos da Administração Pública, etc.).
O direito das liberdades comunitárias pode interferir com a liberdade nacional de impor quaisquer soluções legislativas ou decisões que bloqueiem o seu exercí-cio, como no caso de processos de autorização, no domínio do urbanismo comer-cial, se tal condicionamento comportar discriminações entre candidatos nacionais e doutros Estados comunitários, embora a jurisprudência comunitária (v.g. Acór-dãos Huiles Usagées de 7.2.85, e Comission/France de 26.2.91) admita restrições às liberdades de circulação, de prestação e de estabelecimento motivadas pela protecção do ambiente ou do património.
Quanto ao direito comunitário da concorrência ou das empreitadas e conces-sões de obras públicas, ele tem implicações no direito do urbanismo, pela sua aplicação às operações urbanísticas. Isto ou quando, implicando a sua realização por empresas, se coloquem questões de relacionamento financeiro entre entidades públicas ou sociedades particulares de economia mista, que podem funcionar com roupagem jurídica ao contornar das normas comunitárias sobre as denomi-nadas «ajudas de Estado», em que se integram os concursos financeiros das autar-quias, incluindo os atribuídos a empresas públicas. Não estando interdita a activi-dade empresarial pública, tudo está em saber se se trata ou não de operações a que um particular não se dedicaria nas condições do mercado, dado que o direito cmunitário o que pretende é impedir a restrição ou falseamento do jogo da concor-rência. Ou quando se realizem os referidos contratos administrativos deste tipo, que também lhe estão sujeitos (os contratos de concessão de montante superior a cinco milhões de euros).
No plano da política regional, a Comunidade tem encorajado a cooperação transfronteiriça, com ajudas financeiras, como acontece com o programa Intereg. Acontece, que em certos casos, as autarquias beneficiadas têm de coordenar as suas políticas urbanísticas e de ordenamento do território (e constituem às vezes empresas mistas para a realização de operações de urbanismo, como acontece por exemplo na costa mediterrânica, em Vintemille e Merton). Tarefa que o Direito Internacional europeu, hoje, permite que se faça directamente, através de acordos infra-estaduais sem necessidade de intermediação dos órgãos de soberania.
As políticas regional e de ordenamento do território desenvolvidas pela União Europeia podem influenciar as políticas nacionais de urbanismo. Há operações de renovação de bairros urbanos degradados, por exemplo, em Lisboa, Lyon ou Marselha, que se traduzem em projectos cofinanciados pela União Europeia, atra-vés do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FRDER), tal como permite o art.º 10 do Regulamento n.º 4254, de 19.12.88. As acções nacionais em matéria de urbanismo podem sofrer orientação europeia pela via de competências atribuídas pelo art.º 129.º-B e segs. do Tratado da União Europeia, no domínio das redes transeuropeias, etc..
1.4. A incidência do direito internacional
No que diz respeito ao direito internacional europeu, há tratados, sobretudo a Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem, de 4 de Novembro de 1950, mas também outras, como a Convenção Europeia para a Protecção do Património Arqueológico, de 1992, com incidências na regulação da matéria urbanística. Esta última obriga a delimitar zonas de reserva arqueológica. Quanto à CEDH, ela tem um duplo impacto jurídico, quer porque as suas normas têm efeito directo e se impõem às autoridades e tribunais nacionais, quer porque também cria órgãos internacionais para velar pela sua aplicação, incluindo um tribunal europeu dos direitos do homem.
O artigo 1.º do Protocolo n.º 1 tem repercussão directa no direito do urbanismo, dado que protege o direito de propriedade, ao não admitir que alguém possa ser privado dos seus bens a não ser por causa de utilidade pública e com respeito das condições previstas pela lei e princípios gerais do direito internacional, sem prejuízo dos poderes estaduais de regulamentar o uso dos bens, de acordo com o interesse geral ou para assegurar o pagamento de impostos, contribuições ou multas. A própria jurisprudência internacional já aplicou a normas a casos referentes ao direito do urbanismo.
Todo o direito português, além de receber as normas da Convenção, tem de ser interpretado de acordo com ela e a jurisprudência do tribunal por ela criado.
O artigo 1.º contém uma normação implicando vários princípios: um princípio geral de respeito pela propriedade, que implica que os atentados ao direito de propriedade não ultrapassem os limites exigidos pelo «justo equilíbrio entre o interesse público e a necessidade de salvaguardar os direitos fundamentais do indivíduo» (Acórdão do TEDH, Sporrong et Lönnroth, de 1982); a sujeição da privação da propriedade a uma razão de interesse público, no respeito pelas leis e princípios gerais de Direito Internacional Público, e acompanhada do pagamento de uma indemnização; e a sujeição a regulamentação do uso dos bens que implique restrições ao direito de propriedade sem obrigação de indemnização, que devem estar previstas pela lei e justificadas pelo interesse público.
Claro que a expropriação é um instituto que ultrapassa o Direito do Urbabismo, embora seja fundamental no ordenamento urbano. Acontece que a CEDH joga um papel de grande importância neste domínio, dada a natureza da função urbanística que implica frequentemente operações, que não são expropriações, mas que traduzem reduções ao conteúdo do direito de propriedade com tal significado que têm natureza de medidas, que eu designaria como medidas de feito equivalente, porque pelas suas consequências traduzem «expropriações de facto», e que por isso são de reconduzir, em termos da norma internacional em apreço, à privação da propriedade e não a uma simples situação de regulamentação do seu uso, implicando em princípio uma indemnização. Tal é imposto pela CEDH, no dizer do Acórdão Mellacher de 1989, quando o proprietário é «despido do direito de usar os seus bens, de os alugar ou de os vender». No caso Papamichalopoulos, a obrigação de indemnizar foi imposta também, precisamente porque, ao ocupar terrenos privados, a Administração impediu os seus proprietários de os usar, vender, dar ou hipotecar. Já quanto à questão de saber se as limitações urbanísticas que se traduzem numa diminuição significativa do valor de um terreno por privação de qualquer operação de construção, ela não mereceu do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a equiparação a expropriação de facto, num caso apreciado em 1993, em que o terreno em causa foi classificado como espaço arborizado. Em termos mais claros, o mesmo tribunal, em 1991, a propósito de normas urbanísticas que impediam a construção, apenas afastou a doutrina da expropriação de facto porquanto concluiu que era possível cultivá-lo ou dá-lo em garantia, não se desvalorizando total, mas só parcialmente. Parece assim que a jurisprudência europeia obriga a indemnização quando há uma desvalorização total, por interdição de qualquer uso. O que nem sempre acontece nas limitações urbanísticas, isto é, naquelas que não tenham como efeito prático a privação da propriedade. A convenção não vem, pois, pôr em causa globalmente o princípio da não indemnização, em situações de imposição de restrições urbanísticas (servindo de compensação para a Administração — embora à custa da injustiça individual — pela sua não recuperação das mais-valias da urbanização, precisamente inviabilizada pela aplicação deste princípio alternativo), contrariamente à doutrina americana do Acórdão Lucas de 1992, que consagrou o princípio indemnizatório quando um terreno fica privado de toda a utilização economicamente rentável por razão de interesse público.
Normalmente, as normas de urbanismo regulam o uso do solo e dos imóveis, como acontece com as referentes à interdição ou restrição à construção, constrangimentos que a Convenção só admite quando motivados pelo interesse geral, por exemplo por razões ambientais, e cuja definição reconhece em termos amplamente discricionários aos Estados: mas tais condicionamentos devem respeitar o justo equilíbrio entre o interesse a prosseguir e o sacrifício particular, sob pena de serem considerados manifestamente desrazoáveis. É o que aconteceu nos casos Sporrong e Lönnroth, privados durante 23 e 8 anos da faculdade de construir, devido à possibilidade de expropriação a favor da Administração. Isto tem implicações na configuração dos direitos administrativos de preferência ou em enquadramentos legais de reservas de terrenos a favor da Administração.
Além do artigo 1 do protocolo em análise, há outros artigos como o 6.º, §1, referente ao direito a um processo justo (vg. em relação a uma decisão administrativa de alteração de um plano de construção, etc.), o 8.º referente ao direito ao respeito da vida privada e familiar (que pode ser afectado por ataques ao ambiente, como ruídos saídos de uma estação de depuração construída próximo de uma habitação; ou por obras e instrumentos usados em certas operações urbanísticas, o que implica a obrigação de indemnizar), o art.º 13.º (direito a um recurso efectivo e, por exemplo, normas sobre prazos) ou o 14.º (discriminação na validação de licenças de construção), que não nos merecerão especiais considerações neste momento por traduzirem princípios de aplicação geral na Administração Pública, embora a respeitar também na urbanística e pelo Direito do Urbanismo.
Em face de tudo quanto se deixa dito, fica comprovada a interferência de fontes externas de direito na produção do direito nacional do urbanismo e, muitas vezes, a sua própria vigência directa na nossa ordem jurídica.
E estas normas não só tenderão a aumentar, como podem ser modificadas, o que exige o conhecimento do Direito Comunitário e do Direito Internacional e do labor das instituições que os criam.