SUPREMACIA DAS NORMAS SUPRANACIONAIS

SUPREMACIA DAS NORMAS SUPRANACIONAIS

 

§25. FONTES DE DIREITO E SUA APLICAÇÃO. PRINCIPIO DA SUPREMACIA DAS NORMAS INTERNACIONAIS E UNIONISTAS. PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA CONSTITUCIONALIDADE E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

 

A Administração pública portuguesa tem os seus princípios organizatórios e de actividade inseridos no texto constitucional.

Vivemos em Estado constitucional democrático, o que implica um conjunto de considerações que permitam fazer a ligação do direito constitucional e suas exigências ao direito administrativo.

No Estado democrático actual, a Constituição não um mero conjunto de linhas programáticas a juridificar pelo legislador ou a concretizar em políticas públicas pela Administração. É normação. Não só a sua criação deve ter eficácia imediata mesmo não exequibilidade ou aplicação directa, como cumprimento das normas constitucionais, tal como o controlo deste, assumem uma importância fundamental.

E isto não pode deixar de implicar que qualquer teoria de exercício e de limitação dos Poderes a nível nacional só ganha sentido numa abordagem constitucionalocêntrica.

Não significa isto que a tripartição clássica dos Poderes ou mesmo mais, aceitando a função política, designadamente a moderadora do Estado, tenha que perder interesse. E isto não tanto por corresponder ou não à delimitação material de distintas funções (que é, hoje, secundário na perspectiva garantística, reganhando sobretudo valor, no plano da eficácia organizacional do Estado), sendo certo que tal distinção não existe senão tendencialmente, com «confusão» das várias funções nos vários Poderes.

Mas porque hoje o heterocontrolo não deriva apenas da pluriorganicidade do Estado, em termos do exercício da soberania, mas porque há uma função básica que exprime a totalidade da soberania popular, de cuja expressão resulta a conformação concreta de todos os poderes, a sua importância e a validade dos seus actos. Porque a soberania está no Povo, os Poderes de Estado não são apenas Órgãos de Soberania. São Órgãos Soberanos, não poderes instituídos. Há aqui uma ideia de Poder e Função Constituinte que tornam fundamentais e superiores, no plano do exercício interno de poderes, as normas que criam.

Por isso, a Constituição é a Grande Norma, a Lei Fundamental do Estado. Todas as actividades necessárias ao desenrolar quotidiano da sociedade, criando normas e aplicando-as em concreto ou actuando para a sua concretização em geral, têm que a respeitar e aplicar. Isto é, os Poderes que dirigem o Estado são poderes juridicamente subordinados à Constituição, o que se exprime e cumpre na perspectivação teleológico-constitucional da sua actividade e no respeito do princípio da constitucionalidade.

Ou seja, as funções clássicas de MONTESQUIEU são hoje apenas sub-funções referentes à gestão corrente de Estado: sub-funções da Função Governativa (governação em sentido amplo, aqui usado). A própria função tida como a mais importante no Estado, a Função Legislativa, porque é uma função subordinante, também é uma função subordinada, porquanto a nomocracia e a nomogénese estão constitucionalmente definidas. Toda a função governativa - seja ligada ao Poder Legislativo, ao Poder Executivo ou ao Poder Judicial, ou seja, que satisfaça necessidades de enquadramento de conveniência  -é constitucionalocêntrica e, portanto, não tem sentido falar a este nível de uma função política ou governativa senão  como actos derivados da Constituição e, assim, passíveis de controlo aferidor do seu cumprimento. Neste aspecto, não haveria actividade anómica do Executivo e dos órgãos de soberania, visto que as actividades governativas são nomocêntricas, quanto mais não seja penduradas directamente na Constituição.

 

Quer a normação entregue pelo legislador à Administração Pública, quer a execução, interpretação e aplicação das normas pela Administração Pública e Tribunais, são actividades legitimadas e guardadas na Constituição, que aplicam. Classicamente, entendia-se que o Parlamento seria fiscalizador do cumprimento da Constituição e das leis que ele próprio elaborava, devendo não só perder a capacidade de controlar o Executivo, dada a evolução dos regimes democráticos para a partidocracia que acabou com a subordinação do Executivo ao Parlamento, ambos sujeitos a uma direcção política única.

E, de qualquer modo, os Parlamentos podem ser constitucionalicidas, liberticidas. Impõe-se o controlo da função governativa, para verificar a sua conformidade com a vontade soberana expressa na Constituição.

A Constituição, base do consenso social, do contrato social, só persiste pela função reconstituinte e actualizadora permanente do Tribunal Constitucional e dos tribunais em geral, que devem fiscalizar as actividades nomocêntricas bem como os actos que têm sido enquadrados como anómicos, não sindicáveis. Uma função reconstituinte porque elimina do ordenamento jurídico as normas que ensombram (revogam) a Constituição, actuando como legislador inconstitucional, ou seja, em nosso entender, tal como HANS KELSEN pensava, como «legislador negativo».

 

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Tema a destacar é o da supremacia do direito supranacional, internacional e unionista, e da Constituição e da eficácia das suas normas.

 

O Direito Administrativo é um subsistema normativo dentro do ordenamento jurídico global, que tem a sua base no DIP, DUE e Constituição, sendo certo que todo o direito positivo terá de se adequar a ela e interpretar-se a partir dela.

o DIP, o DUE e a Constituição contêm enunciados fundamentais de muitos ramos do direito., que  se impõem, aqueles a todo o direito de fonte interna, e o direito constituciona, não àqueles, mas a todo o restante direito de fonte nacional.

 

Quanto ao direito constitucional, OTTO MAYER, no seu Direito Administrativo Alemão, acentuava o carácter de permanência do Direito Administrativo em face do carácter passageiro do Direito Constitucional. E FRITZ WERNER não deixaria de proclamar que o Direito Administrativo era Direito Constitucional concretizado.

 

A Administração e o Direito Administrativo são uma realidade histórica, porque instrumento ao serviço de opções constitucionais, em cada momento assumidas pela soberania popular.

O Direito Administrativo constrói-se em grande parte a partir de parâmetros consensualizados na Constituição, a cujos postulados tem de se adaptar.

Aqui, tal como no DIP e DUE, e aliás com primazia relativa para estes, há princípios que se impõem ao legislador e, no caso do DC, tal ocorre quer na construção da Administração, como na conformação dos regimes jurídicos nas diferentes matérias, e posteriormente na actuação concreta da Administração.

E, dado o carácter jusprogramático da Constituição, há orientações dirigidas à Administração em diversos sectores, que cobrem as atribuições dos vários ministérios.

Normalmente não são normas de aplicação directa, porquanto dependem da interpositio legislatoris, e assim condicionadas organicamente e, nas suas exigências materiais, pelo estado de desenvolvimento do país.

De qualquer modo, toda a norma constitucional é obrigatória.

A sua aplicação é que pode não ser imediata.

No entanto, a questão da aplicabilidade directa continua, hoje, a provocar reflexões doutrinais inacabadas.

 

No Brasil, em face do artigo 5.º da Constituição de 1988, referente ao direito de acesso à informação administrativa, este direito é declarado de aplicação directa.

Com efeito, ressalvando as várias situações de excepção (que não devam resultar já de outros preceitos referentes à intimidade e honra das pessoas), ligadas à segurança nacional, apenas se deixa para o legislador, tal como em Portugal, a fixação do prazo máximo de resposta obrigatória ao requerimento de acesso.

Mas não fora a possibilidade de o cidadão recorrer ao «mandado de injunção» e a declaração da «aplicabilidade imediata» desta norma poderia ver-se paralisada.

É verdade que a questão da aplicabilidade de certos direitos proclamados na Constituição brasileira se complicou, com alguma doutrina e jurisprudência a ler desinserida a letra do § 1 do artigo 5º, que, apesar de colocado apenas no capítulo dos direitos e deveres individuais e colectivos, fala na aplicação imediata das «normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais (a que justamente se refere todo o título II), que logo a seguir tem o capítulo dos Direitos Sociais, a que aqueles sectores querem estender o mandado de injunção (que permite o suprimento pelo juiz da falta de regulamentação pelo legislador, apenas aplicável na situação em apreço, e a efectuar segundo parâmetros de equidade). Esta divisão doutrinal tem prejudicado o desenvolvimento da jurisprudência que, receosa das consequências da extensão do âmbito da sua aplicação, em vez de o clarificar, começou a corromper a própria construção teórica deste mandado.

Importa ainda referir que, no Brasil, o cidadão pode impugnar directamente qualquer agressão aos direitos fundamentais (à semelhança do recurso de amparo espanhol e de alguns países latino-americanos, bebido na experiência piloto da Constituição mexicana de 1917, e que tem geminação no recurso público suiço e nos recursos constitucionais alemão e austríaco), através do mandado de segurança (que acaba por se ir construindo em reacção à evolução restritiva do habeas corpus, acantonado à ofensa ou ameaça de violação da liberdade de locomoção).

 

Mas qualquer que seja a técnica garantística criada para obviar à falta da interpositio legislatoris, prevista na Constituição, e o sentido das declarações sobre a aplicabilidade inseridas na própria lei fundamental, a questão da eficácia das normas constitucionais mantém todo o seu sentido.

Dizer que certas normas são de aplicação directa significa reconhecer que outras o não são. Mas se a distinção tem sentido, só pode querer dizer que todas as normas têm valor jurídico. No entanto, há normas que não são passíveis de aplicação senão em termos mediatos, porquanto só podem ser aplicadas após a verificação de certas alterações, sejam elas de ordem programática (implicando inovações a executar pelo governo, com uma dada margerm de liberdade, dado que seria ilegítimo, o quer se poderia designar por um governo de Constituição, o confiscar da governação pela «geração» criadora da Constituição, sem prejuízo do respeito do fim pretendido, sob pena de inconstitucionalidade por desvio de poder legislativo), de ordem institucional ou simplesmente legislativa (muitas vezes, explicável para evitar uma excessiva regulamentação constitucional, outras para fugir à regidificação das regras de funcionamento, a ir fixando e alterando de acordo com as lições da experiência).

Mas se é assim, por mais hábeis que sejam as reflexões sobre o tema, só tem sentido falar de aplicação directa a propósito de uma norma que puder ser imediatamente aplicada, ou seja, que puder ter eficácia plena, por ela ter o enquadramento mínimo para a vivencialidade social que pretenda regular, porquanto se todas são normas jurídicas todas produzem certos efeitos directos em face do legislador (obrigado a cumpri-las), ou de outras normas (cuja conformidade àquelas e interpretação e integração à base delas se imporá). Neste aspecto, poderá dizer-se que, na ausência da atribuição de um poder de regulamentação concreta atribuído ao juiz e de lei regulamentadora com carácter geral, a norma ou é ou não é directamente aplicável por si mesma, independentemente da declaração que sobre a sua eficácia imediata o legislador constituinte puder efectivar, a qual, como o demonstra a realidade da sua não aplicação (em muitas situações declaradas nas Constituições como de aplicação directa ou imediata), até à criação da respectiva regulamentação quando esta não é elaborada em simultâneo com a própria lei fundamental.

 

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A Constituição encerra macroprincípios que implicam, explícita ou implicitamente, a Administração Pública e o direito administrativo.

As normas constitucionais têm força vinculativa. E mesmo as cláusulas gerais, como a do Estado de Direito Democrático, que integram a macro-estrutura normativizadora do sistema constitucional, traduzindo tecnicamente princípios gerais de direito, princípios de princípios, encarnando valores superiores da ordem jurídica: a liberdade, a justiça e a igualdade perante a lei, como valor superior do Estado de Direito; a Justiça Social e a Promoção da Igualdade, como valores ínsitos ao Estado Social; o pluralismo e liberdade de informação, activa e passiva, como valores ligadps á formação da opinião públiac e ao estatuto do cidadão, condição de participação e escolha, livre e esclarecida, do seus representantes, no Estado Democrático, e a unidade, a autonomia e a solidariedade, como valores que traduzem a ideia da realização adequada da vida de um Estado único mas com autonomias regionais e locais.

Estes princípios colocam questões de eficácia concreta (operatividade) e de coexistência.

Em termos de eficácia, como princípios gerais de direito, são autênticas normas jurídicas que se impõem como fonte de poderes dos vários poderes públicos, critérios interpretativos de todo o sistema jurídico, até das outras normas constitucionais, orientações para a actividade positiva de todos os poderes públicos e limites jurídicos a essa actividade.

Em termos de coexistência, o facto de alguns destes princípios chocarem entre si tem que ser superado, tendo presente que eles regem em simultâneo e com o mesmo valor jurídico, sem sobreposição, o que obriga a encontrar o ponto de equilíbrio entre todos num dado caso concreto.

A organização e a actividade administrativas encontram-se integralmente imbuídas e condicionadas por estes princípios, que são as suas autênticas bases jurídico-constitucionais, pelo que há que analisar as disposições constitucionais referentes ao Estado de Direito, Estado Social, Estado Democrático, Estado Autonómico e Unificação Europeia.

 

O Estado de Direito constitucional implica além do princípio da pré-determinação normativa, o da injunção normadora primária da Constituição.

A expressão Estado de Direito tem assumido historicamente um significado que tem evoluído. Deve-se a ROBERT VON MOHL a criação do termo Rechsstaat, que veio a cristalizar a concepção teórica de Estado do primeiro liberalismo alemão, com raízes em KANT, FICHTE e ALEXANDER VON HUMBOLDT, em oposição ao Estado de Polícia ou Estado de Bem-Estar, designações de Estado da monarquia absoluta que, no entanto, aparecia ligada a preocupações de felicidade e bem-estar dos súbditos.

O Estado de Direito aparecia exigindo que o Estado se limitasse a garantir a liberdade dos cidadãos, através da criação e manutenção de uma ordem jurídica adequada.

É um Estado que se define axiologicamente como garantidor da Liberdade e do Direito - portanto, um Estado limitado, não intervencionista.

O Estado de Direito é o antimodelo dialéctico ao modelo endemonista do Estado idealizado por CHRISTIAN WOLFF, e que perpassa a ideologia do despotismo iluminado.

Depois, ocorre um processo de desubstanciação e, portanto, de formalização do conceito, iniciado em meados do século com F.J.STAHL, que se aprofunda com o positivismo de LABAND e JELLINEK, no fim do século, culminando com HANS KELSEN, que esvazia o conteúdo originariamente liberal do conceito, agora confinado à identificação absoluta entre Estado e Direito, na preocupação de reduzir toda a actividade do Estado ao Direito.

Os juristas alemães do primeiro terço do século XX acabariam por caracterizar o Estado de Direito como aquele que é regido pelo princípio da legalidade da Administração Pública, em que esta não pode intervir na esfera da liberdade dos cidadãos senão com expressa habilitação legal e em que impera a divisão de poderes, a supremacia e reserva de lei, a protecção dos cidadãos mediante órgãos jurisdicionais independentes e a responsabilidade do Estado por actos ilícitos.

O desastre nacional-socialista revelou a insuficiência das técnicas jurídicas, ínsita ao Formalles Rechtsstaat, pelo que a doutrina do pós-guerra procurou criar um Materialles Rechtsstaat, dando àquele um conteúdo material complementar de natureza axiológica, a beber nas suas origens históricas.

O Estado de Direito aparece então concebido como um princípio material de ordenação da actividade estatal, dirigido a valores, entre os quais têm de sobressair o da garantia e protecção da liberdade pessoal e política, assim unificando a forma e o conteúdo na densificação do Estado de Direito.

Hoje, entre os princípios integrantes da ideia de Estado de Direito, afectando directamente a Administração Pública, temos, desde logo, o princípio da legalidade, o princípio da tutela judicial efectiva e o princípio da garantia patrimonial, além da imperiosidade de respeitar o princípio da divisão de poderes e as regras estruturais do sistema normativo que traduzam a Administração como organização e actividade ligada a um dos poderes e a sua subordinação aos outros poderes.

Outra dimensão desta exposição referente ao Estado nomocrático tem que ver com a submissão da Administração ao direito, em que importa tratar alguns tópicos explicativos, referentes às manifestações históricas do Estado de Direito em relação à Administração Pública.

 

Há uma relação entre acção administrativa e direito.

Mas será que essa relação é indispensável? Historicamente, essa relação nem sempre existiu. E além disso, há modelos diferentes de submissão da Administração ao Direito.

Com efeito, a Administração pode, teoricamente, não estar submetida ao Direito. Por exemplo, antes dos regimes democráticos, durante as monarquias absolutas, a administração actuava, de certo modo, arbitrariamente. Isso não significa que não houvesse regras.

Pode haver regras sem haver subordinação ao Direito.

Se há regras mas a Administração tem toda a liberdade de as fazer e de as mudar, se elas se criam para ter influência apenas no círculo dos administradores, é óbvio que não nos encontramos numa Administração submetida ao Direito.

Uma Administração submetida ao Direito é aquela em que as regras existem para a defesa do cidadão e, quando não são cumpridas, aquele tem o direito de reagir, se se sentir prejudicado por isso.

O chamado Estado de Polícia é o Estado em que a Administração, que nessa altura se designava Polícia, está submetida a uma dada regulamentação, mas não tendo essa regulamentação qualquer valor jurídico no plano exterior à Administração.

Era assim, ainda, a Administração no século XVIII, no tempo do Absolutismo, do Iluminismo ou do Despotismo Iluminado. Ainda hoje, por vezes, se encontram vestígios deste modo de actuar em certos documentos de valor interno, chamados circulares ou directrizes, que são documentos que têm, por vezes, repercussões, que não são neutras, na vida dos cidadãos, bem como nos seus interesses.

A Administração tem de ser objecto de controlo exterior. Não pode ser um simples assunto interno. Por contraposição ao Estado de Polícia surge-nos, assim, o Estado de Direito, em que é suposto reger totalmente o princípio da legalidade.

 

O Estado de Direito é característico dos regimes modernos, dos regimes democráticos.

O seu princípio fundamental é o liberalismo político, que nasceu com a Revolução Francesa que teve, desde logo, a ver com a ideologia da criação e defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, a ideologia de 1789.

 

A existência de separação de poderes está ligada à prevenção contra a queda na ditadura.

Os poderes devem ser divididos por várias entidades, de modo a não haver a hegemonia de uma só pessoa e, por outro lado, devem assentar na supremacia do Parlamento, órgão directamente legitimado pelo Povo. A lei, uma vez criada, tem de ser respeitada - é este o papel da Administração. É daqui que vem o hábito de chamar aos Governos o Poder Executivo. A Administração tinha, e ainda hoje tem, uma função essencialmente executiva, embora também já possa legislar. A Administração também pode criar regulamentos, mas estes têm que ser permitidos pela lei, nunca podem ser independentes desta.

 

O princípio da legalidade (positiva: só é legítimo actuar nas áreas em que a lei expressamente dá poderes para tal, sendo a lei que define os limites em que ser pode actuar), embora, de facto, não seja aplicado em relação à actividade prestacional e de fomento, senão na sua formulação de vinculação negativa, é fundamental para enquadrar e legitimar a Administração Pública.

 

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Mas, como já dissemos, existem também os princípios da primazia do direito supranacional e o princípio da constitucionalidade, ou seja, o princípio da supremacia do direito supranacional e da Constituição.

Quanto à Constituição é um conjunto de normas de imposição prevalecente no plano do direito de fonte nacional.

Todos os Poderes lhe devem respeito e, portanto, a Administração deve-lhe também respeito.

Tema importante é o da posição dos cidadãos perante normas inconstitucionais, e, em especial, sobre a inconstitucionalidade das normas administrativas e o sistema institucional de controlo pela Administração e pelos tribunais[1], matéria que melhor cabe ser desenvolvida na cadeira de Direito Constitucional e Direito Político.

Mas, sobre ela, pela sua importância, referiremos alguns apontamentos, com a nossa posição, no que essencialmente importa à Administração Pública.

 

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O regime geral das inconstitucionalidades é a invalidade na forma de nulidade de regime misto[2], enquanto segue os elementos caracterizadores da anulabilidade (as autoridades e os cidadãos devem obedecer à norma enquanto não declarada nula) e da nulidade (efeitos ex tunc, porque ab inicio inválida, pois a declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional retroage ao momento da sua produção: nulidade radical, de direito; excepto se o Tribunal Constitucional decidir diferentemente e com possíveis efeitos putativos, mas em direito constitucional determinar-se o respeito por expectativas razoáveis e com base em condutas públicas ou particulares a respeitar (n.º 4 do artigo 282.º), tal implica um desvio que revela uma nulidade não radical.

 

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Mas e qual a posição da Administração face a normas inconstitucionais e também de direito supranacional que seja chamada a aplicar em casos concretos ou a executar?

No que concerne à aplicação da Constituição pela Administração Pública, em geral (e mesmo em caso de normas de aplicabilidade directa ou de exequibilidade de per se, se acontece haver normas de desenvolvimento desconformes), tem-se afirmado a tese da não atribuição constitucional de poderes de inaplicação de normas aos órgãos administrativos[3], por força do princípio da legalidade, quando estas sejam inconstitucionais, perante o artigo 204.º, o qual só manda fazê-lo aos tribunais. E mais, Paulo Otero no seu último livro sobre a Legalidade, vai mesmo ao ponto de defender uma tese sobre a hierarquia das normas que implica a dualidade de vigências normativas sobre uma mesma matéria, ou seja, a existência de dois direitos, um aplicável aos cidadãos e pelos tribunais e outro aplicável pela Administração pública, na medida em que aqueles têm que aplicar a norma que em cada momento dever considerar-se vigente na ordem jurídica portuguesa, e aquela a norma que resultar dos princípios da posteridade e especialidade, sem curarem de saber qual a que é de valor superior em face de princípios da constitucionalidade ou supranacionalidade (DIP e Direito originário ou derivado da União Europeia, podendo e devendo desconhecer o impositivo princípio da primazia destas normas), tudo numa construção aberrante, totalmente alheia à ideia de Estado de Direito e da unidade da ordem jurídica no plano da sua aplicação material. Recentemente, no seu Manual sobre Introdução ao Direito, vem Freitas do Amaral tomar em toda a matéria das fontes e hierarquia as únicas posições que nos parecem aceitáveis e correspondem ao nosso ensino desde sempre.

 

Ou seja, e falando agora especificamente sobre a questão da aplicação ou não do constitucionalidade, tal posição dual é, pelo menos, numa dada leitura radical, totalmente questionável, pois a Constituição da República Portuguesa manda a todas as autoridades respeitar a Constituição e há um afloramento de um princípio que deve reputar-se geral, nos nºs 6 e 7 do artigo 19.º (não respeito dos limites dos poderes materiais e orgânicos em situação de estado de sítio).

 

Assim, parece não dever seguir-se totalmente por esta posição, desde que os actos dos distintos poderes possam ser controlados pelos tribunais, o que só não ocorre na actividade governativa: actos políticos, constitucionais ou de governo do Executivo.

 

Esta tese de exclusão por princípio não o permitiria nem sequer, pelo menos, quando haja direito de resistência, no caso de direitos fundamentais?

Somos de parecer que não há, por princípio, uma faculdade genérica de inaplicar normas com fundamento na invocação da inconstitucionalidade, mas (sem prejuízo de tal só dever caber aos órgãos máximos da Administração Pública, suscitada a questão pelos subalternos, e da consagrada sindicabilidade jurisdicional de todos os actos pelo destinatário da decisão, neste caso com inaplicação da lei ou regulamento) em casos limite de inconstitucionalidade manifesta ou quando a doutrina ou a jurisprudência já se venham pronunciando nesse sentido, isto é, desde logo quando os tribunais ou o Tribunal Constitucional, mesmo sem declaração obrigatória (porque neste caso é pacífico: não há aplicação, dada a sua eliminação do ordenamento jurídico), se pronunciaram já nesse sentido, a Administração Pública pode decidir os casos em apreciação, com inaplicação da norma considerada inconstitucional, notificando sempre do fundamento de suas decisões concretas os destinatários, para efeito de impugnação.



[1]  Ou seja, a inconstitucionalidade em geral, noção de inconstitucionalidade, o sistema constitucional de garantia da Constituição, a hierarquia das normas, inconstitucionalidade e ilegalidade controlável pelo Tribunal Constitucional de normas desconformes com leis ordinárias paraconstitucionais, tipologia da inconstitucionalidade e das formas de invalidade das normas inconstitucionais, inconstitucionalidade e desvio de poder legislativo; norma jurídica, imperatividade e meios de garantia de sua efectividade; sistemas de garantia institucional e o modelo hiperbólico português: caracterização geral, falta de recurso geral de amparo, a fiscalização difusa e concentrada, critérios substantivos e processuais de fiscalização, consequências da declaração de inconstitucionalidade e, por fim, a margem de sindicabilidade administrativa da constitucionalidade: a Administração Pública, princípio da legalidade e princípio da constitucionalidade, a Administração Pública perante norma declarada inconstitucional erga omnes, a Administração Pública e as situações de inexistência jurídica-constitucional, a Administração Pública e as situações de mera irregularidade orgânico-formal, a Administração Pública perante a normal figura de paranulidade da norma, Administração Pública e direito de resistência dos cidadãos no caso de matéria de Diretos, Liberdades e Garantias, os requisitos orgânicos gerais de ponderação administrativa da inaplicabilidade da norma, os requisitos substantivos da inaplicabilidade da norma, critério de invalidade manifesta, a Administração Pública estatal e a infra-estatal no caso da inconstitucionalidade orgânica, o caso da inconstitucionalidade formal, vícios de procedimento documentado, vícios de forma, o caso de inconstitucionalidade material manifesta, as situações consideradas na doutrina unânime, as situações já apreciadas pelo Tribunal Constitucional em fiscalização preventiva e sucessiva, as normas dependentes de leis de revisão constitucional com ofensa do clausulado sobre limites materiais, as normas e actos praticados com ofensa do artigo 19.º da Constituição, a Administração Pública e a apreciação jurisdicional de regulamentos e actos administrativos, a situação de regulamentos inconstitucionais ou ilegais em face de leis paraconstitucionais, a situação de normas e actos dependentes de leis paraconstitucionais declaradas inconstitucionais, a declaração de inconstitucionalidade e a modulação dos seus efeitos na actividade disciplinar e contra-ordenacional da Administração Pública, a interdição de indefesa procedimental e processual e o ordenamento jurídico português.

[2]   Vide síntese recapitulativa de suas características, embora chegando a conclusão distinta, MIRANDA, J. –Manual de Direito Constitucional: Constituição e Inconstitucionalidade. Tomo II, 3.ª Ed. (reimpressão), Coimbra: Coimbra Editora1996, p.372-373.

[3]   MIRANDA, J. -oc, p.373.